Reconhecimento comunitário e ordenação feminina da Igreja Batista | Entrevista com Pastora Silvia Nogueira | PARTE 1

Entrevista: Luciana Petersen

Finalizando a campanha #Eklesia, tive o prazer de conversar com a pastora Silvia Nogueira, oficialmente a primeira pastora da Convenção Batista Brasileira.

Nessa entrevista, que dividiremos em duas partes, ela nos conta mais sobre o reconhecimento comunitário de sua vocação, reações institucionais contra sua ordenação, as alegrias e lutas do ministério pastoral exercido por mulheres.

Mais do que uma entrevista, me senti imensamente pastoreada e acolhida pelas palavras da pastora. Como filha de pastor batista, foi muito significativo conhecer pela primeira vez uma mulher que ocupa um espaço que desde pequena me disseram ser exclusivamente masculino.

Agradeço pastora Silvia pela conversa e principalmente pelos caminhos desbravados, para que hoje tantas mulheres consigam dar um nome à sua vocação pastoral e abençoar a Igreja com tais dons dados por Deus.

 

Luciana: Me conte sobre sua vida e trajetória

Primeiramente gostaria de dizer que eu sempre fico feliz em ver iniciativas assim como a de vocês [do Projeto Redomas]. A iniciativa de empoderamento feminino é sempre uma boa iniciativa, e se tiver esse recorte com a religião então, é excelente! Sempre que eu posso, apoio.

Eu me chamo Silvia Nogueira, tenho 48 anos, nasci no subúrbio do Rio de Janeiro, na cidade de Duque de Caxias. Tenho minha formação em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo, depois eu fiz Letras na UFF e recentemente concluí o mestrado em Educação pela UERJ. Tenho pós-graduação também em Gestão de Educação à Distância pela UFF.

Sou professora de português na rede pública de uma cidade no interior do Rio de Janeiro e trabalhei muito anos com Educação Teológica, especialmente nas periferias aqui do Rio de Janeiro.

Vou te dizer uma coisa em relação a isso que dá uma certa ideia de quem eu sou. Eu nasci em berço evangélico batista, cresci dentro da denominação batista da Convenção Batista Brasileira, me converti aos 12 anos de idade. Quando eu fui ficando adolescente compreendi a minha vocação. Naquele primeiro momento não consegui denominar ainda como pastoral, porque a gente só vem falando sobre isso recentemente; desde a minha infância a gente não tinha nenhuma referência discursiva sobre a possibilidade de uma mulher exercer o ministério pastoral.

Geralmente, para as mulheres que se sentiam “vocacionadas” – quando usavam essa expressão – era porque eram vocacionadas para missões, educação religiosa ou música sacra, os três grandes lugares das mulheres quando se falava de vocação. Quando eu fiz 17 anos, participei de um evento e compreendi que eu tinha uma vocação. Tive uma experiência importante para mim e comecei a dar mais atenção a isso na minha relação com a igreja a qual eu pertencia na época.

O início da minha formação foi em Campos dos Goytacazes no Seminário Teológico Batista Fluminense. Lá entendi que havia uma inclinação meu coração para trabalhar nas periferias. Não tinha nenhuma discussão teórica sobre isso naquele momento e eu não conhecia absolutamente nada em termos de literatura nessa área dentro da região. Mas o meu coração se inclinava para a periferia. Logo quando eu comecei o primeiro ano de Seminário, já avisei que o meu interesse era trabalhar como seminarista nas comunidades periféricas.

Eu fui realmente mandada para uma igreja de periferia, em uma vila no interior de Campos. Foi nessa igreja que, pela primeira vez, no contato com os irmãos enquanto seminarista eu ouvi alguém dizer que minha vocação era pastoral. A compreensão de que minha vocação era pastoral foi a partir de uma escuta comunitária na Igreja Batista em Morro do Côco. Foi ali que eu ouvi dizer que eu agia, vivia e me relacionava com eles como se fosse pastora.

Mas eu não prossegui os estudos no Seminário Fluminense, resolvi sair de lá para terminar minha formação na Faculdade Teológica Batista de São Paulo. Quando cheguei lá, já cheguei dizendo que minha vocação era pastoral. Então eu entro no seminário pela primeira vez sem nominar minha vocação ainda. Tanto que quando perguntavam se eu queria ser missionária eu dizia que não – eu sabia o que não queria ser, mas não conseguia dar um nome ainda para o que eu realmente queria, o que entendia que era pra ser.

Quando cheguei em São Paulo, diferente da primeira vez, eu já cheguei com a compreensão que minha vocação era pastoral. Aquilo que a Igreja já tinha dito sobre mim, eu achei que fazia todo o sentido, que realmente me encaixava no que eles estavam dizendo e aquilo que representava não apenas as funções, mas também a figura pastoral. Também fui procurar as periferias, que era onde eu me sentia útil. Em nenhum momento nas igrejas que eu fui depois de Morro do Côco eu omiti a minha vocação, achei que era um processo de conhecimento de mim mesma e sinceridade. Além disso, também fui ganhando leituras na área de Teologia da Libertação, Teologia da Missão Integral e textos de sociólogos que até então não conhecia.

Foi nesse espaço de serviço como seminarista que eu fui convidada no penúltimo ano de minha formação pela primeira Igreja Batista em Campo Limpo, pelo seu pastor na época, para ser seminarista da igreja. Cheguei lá dizendo que minha vocação era pastoral e foi muito interessante, porque apesar de inicialmente surpreso, ele não colocou nenhum impedimento ao exercício de uma atuação mais pastoral. Muito pelo contrário, logo no início ele me deixou cumprindo as férias dele durante um janeiro inteiro, com atendimento em gabinete e toda a agenda que ele fazia. Quando ele voltou das férias perguntou à igreja e a mim se havia interesse em permanecer como seminarista auxiliar ao ministério pastoral, e tanto a igreja como eu dissemos que sim. Fiquei lá por dois anos, como seminarista do pastor Antonio Carlos de Melo Magalhães.

Nesse processo, o pastor entendeu que o tempo dele na igreja em Campo Limpo já havia terminado. Comunicou a igreja, que por sua vez instaurou um processo de sucessão pastoral. A comissão de sucessão pastoral foi que disse que não havia necessidade de convidar ninguém externo, porque já tinha uma seminarista ao ministério pastoral na vida da igreja, que a igreja apoiava e acreditava, e por que não a seminarista suceder o ministério dele?

Foi esse processo que eu sempre digo que foi o meu concílio e consagração pastoral. Foi uma experiência comunitária, não a experiência de um pastor querer me ordenar – muito pelo contrário, houve bastante resistência de muitos pastores (não do pastor Antônio Carlos, é claro) – mas não foi nem um pastor nem eu mesma querendo me ordenar, mas uma experiência comunitária dentro de um processo natural e belíssimo na vida da igreja. Então minha experiência como pastora oficialmente e efetivamente foi aí. Meu Concílio foi realizado no dia 26 de junho de 1999 e no dia 10 de julho a minha consagração e posse como pastora titular da Primeira Igreja Batista em Campo Limpo, em São Paulo.

L: Que interessante esse processo, principalmente porque parece ter sido muito natural, da própria Igreja te legitimando enquanto pastora. E você foi a primeira pastora batista consagrada, certo? Explique um pouco como foi o processo institucional da Convenção Batista Brasileira de aceitar ou não a ordenação feminina. Pelo que eu sei atualmente cada estado do Brasil decide por aceitar o ministério pastoral exercido por mulheres ou não… mas em que pé exatamente estamos?

Sim, o meu concílio e consagração foi oficialmente o primeiro na CBB.

É um pouco chato, mas preciso explicar mais ou menos como funciona [a estrutura batista].

Existem batistas em outras convenções como a Batista Nacional, Aliança de Batistas, batistas independentes… mas em relação à Convenção Batista Brasileira, existe um sistema de governo que é o congregacional. Isso está na declaração doutrinária da CBB, nos princípios batistas, que são históricos, e está de certa forma no estatuto e na filosofia da CBB quando ela fala sobre a igreja, que o sistema batista é congregacional. Portanto, a congregação decide sobre os rumos que vai tomar e essas decisões são soberanas sobre a vida da igreja: uma vez tomadas, elas precisam ser acatadas pelos de dentro em particular.

Ao longo do processo – só aqui no Brasil estamos há uns 150 anos – nós criamos a Convenção Batista Brasileira, que é uma espécie da abstração, pois é o agrupamento fraterno das igrejas cooperadas, que cooperam com essa ideia de somar forças para a evangelização e o avanço do evangelho, em especial das igrejas batistas em solo brasileiro. Claro que como toda instituição ao longo do caminho a gente vai se perdendo, tendo outros interesses e agregando outras funções.

Até hoje a CBB, na figura de seu secretário executivo, seu presidente, sua diretoria jurídica e das assembleias da convenção que acontecem uma vez por ano – isso seria a materialidade da Convenção Batista Brasileira, mas ela é em si uma ideia. A gente se organiza a partir dessa ideia com certos compromissos e responsabilidades dentro dela. O mais importante deles é a manutenção do espírito de fraternidade entre nós e cooperação em favor de missões. Outra questão importante é a manutenção da identidade batista de acordo com aquilo que nós levantamos como nossa identidade.

Então a CBB tem a clareza de que nenhuma decisão que ela toma em assembleia ou a partir de seu Conselho Administrativo pode ferir a autonomia da igreja local e soberania dela em suas decisões. Os motivos de exclusão do rol das igrejas cooperadas à convenção em geral são os desvios doutrinários. A princípio a única coisa que faria você não fazer mais parte do agrupamento fraterno, sendo batista, seria um desvio doutrinário ou não querer mais. Desvio doutrinário é algo que precisa ser considerado por um colegiado que avalie exatamente em que as pessoas feriram os princípios batistas.

Ao longo desse caminho todo, sobretudo em 1999 na assembleia da CBB, já havia sido tomada uma decisão sobre a soberania da igreja na decisão de escolha de seus ministros. Uma coisa que sempre existiu, mas foi ratificada nesta assembleia, é que a consagração ministerial era uma decisão da igreja. Já havia uma “sacramentação” do que era um princípio comum entre nós, de que a igreja é soberana para decidir aquilo que desejar, desde que não fira o conjunto doutrinário da Convenção.

A Ordem dos Pastores Batistas do Brasil, assim como a União Feminina Missionária, Junta de Missões Nacionais, etc, são organizações satélites da organização CBB. Elas pertencem à Convenção, ao mesmo tempo que são pessoas jurídicas separadas. O satélite mais afastado dessa estrutura é justamente a Ordem dos Pastores, que é em tese um ajuntamento fraterno de pastores batistas que se identificam e zelam por essa identidade batista entre os ministros evangélicos.

Historicamente, os pastores membros da Ordem dos Pastores são convidados pela igreja para conciliar seus candidatos ao ministério pastoral. Veja bem, é um aspecto da tradição batista mas não é uma obrigação batista. No aspecto da tradição, o que todo mundo sempre fez foi isso: quando existe um candidato ao ministério pastoral, seminarista na vida da igreja, que deseja ser pastor e é confirmada essa vocação na vida da igreja local, o pastor daquela igreja convoca um Concílio de pastores. Esses pastores podem pertencer, e geralmente pertencem, à Ordem dos Pastores Batistas, como filiados. Eles vão atender o pedido da igreja e examinam o candidato. Se o candidato for aprovado por aquele Concílio, é consagrado com imposição de mãos ao ministério daquela igreja.

E aí tem um ganchinho: somos consagrados em particular por causa de uma igreja, mas no momento que nós somos consagrados naquela igreja batista, somos automaticamente alçados à condição de pastores batistas denominacionais. Em que sentido? Se um candidato X ou Y sair da igreja dele como pastor e for para qualquer outra igreja batista, ele será reconhecido em qualquer outra igreja, como pastor batista. Essa é a nossa tradição.

O que aconteceu em 1999, o ano do meu Concílio?

Meu concílio foi em junho, mas em março o pastor Antônio Carlos havia anunciado que deixaria a igreja e foi eleita via assembleia local uma comissão de sucessão pastoral. Quando eles decidiram sobre o meu nome e levaram para a igreja, também poderia acontecer que a igreja, em assembleia, rejeitasse meu nome. Acontece que a igreja não rejeitou meu nome. Ao não rejeitar meu nome, ela sabe que o processo que vai enfrentar é um processo de Concílio, absolutamente natural e que ela já tinha enfrentado com outros seminaristas.

É claro que pelo inusitado da minha figura, sendo mulher, já havia uma certa desconfiança de que talvez a gente ouvisse alguma coisa que não gostasse muito. Mas ninguém tinha ideia do que a gente iria enfrentar a partir do momento que tornou público que haveria um Concílio para aquela igreja. E foi muito interessante que as pessoas que, durante o processo, mandaram cartas, foram lá pessoalmente, ligaram, denunciaram alguma coisa, em nenhum momento estavam preocupadas com o fato de que eu assumiria a igreja como pastora titular. Nunca foi essa a questão. Eles queriam impedir que a coisa acontecesse nessa prerrogativa de ser pastor batista. O problema era o Concílio e a consagração, não era o fato de que a igreja tinha me escolhido como pastora titular, mas a questão de passar por uma ordenação que me caracterizaria como pastora batista, sendo oficialmente a primeira da História.

E aí tem um parênteses importantíssimo. Historicamente, eu sou a primeira pastora batista da Convenção Batista Brasileira, oficialmente falando. Isso significa que eu sou a primeira mulher que passou por um Concílio e consagração dentro da tradição batista, nos moldes da tradição batista e que assumiu o ministério pastoral local. Isso não quer dizer que não havia pastoras antes, exercendo ministérios pastorais de formas diferenciadas. Pastorear igrejas é uma coisa que as mulheres fazem há muito tempo, mesmo entre os batistas. Por exemplo, você já deve ter visto missionárias dirigindo comunidades de fé. Elas são missionárias em termos de título e de parte das funções que ela exerce, porque foram lá desbravar um campo. Mas no momento em que uma congregação se reúne e ela toma conta dessa congregação, ela é pastora daquele lugar.

A vida das missionárias é uma realidade meio ambígua. Elas são plantadoras da igreja e enquanto não vem um pastor oficialmente, elas são pastoras daquela igreja em termos de função. Mas não são no sentido de reconhecimento titular dessa função. Assim como há, por exemplo, esposas de pastores que em determinados momentos pastoreiam a igreja no lugar de seus esposos. Assim como temos também mulheres que fizeram seminário e quando suas comunidade de fé ficaram sem pastor por um determinado momento, porque elas eram líderes naturais na igreja e tinham formação teológica assumiram a presidência da igreja – aí chamam de presidente, né? – mas estavam no fundo exercendo funções pastorais na vida da igreja. Então eu sou oficialmente a primeira pastora reconhecida como tal, mas isso não quer dizer que as funções pastorais não tenham sido exercidas por mulheres ao longo do tempo na vida da Igreja Batista.

A gente [Igreja Batista em Campo Limpo] não imaginava que teria todo esse desdobramento que teve. Sabia que teria uma coisa ou outra, mas realmente não sabia o tamanho que seria.

Todo o desdobramento que a gente recebeu foi a partir da publicação do Concílio no Jornal Batista, o que não era nada irregular, porque se você abrir hoje o Jornal Batista vai encontrar lá convocação de Concílios, uma coisa relativamente natural. Quando essa publicação saiu, começamos a ter os primeiros reveses. Começaram os primeiros telefonemas, correspondências, e-mails, visitas – tanto a nós como liderança quanto a membros da igreja.

E aí eu queria fazer uma distinção entre duas coisas que aconteceram: uma coisa foi a reação violenta de pessoas que não tinham necessariamente nenhuma relação direta com as lideranças denominacionais, mas que se sentiram tão ofendidas com a convocação de Concílio que reagiram de forma violenta conosco. Só para você ter uma ideia, por duas vezes aconteceram atos de violência mesmo. Primeiro, [depredaram] meu gabinete. Segundo, alguém tentou jogar uma cadeira em cima de mim. Fora as agressões verbais, que é esse discurso de ódio que você deve ver a rodo por aí, vindo de qualquer um que se posiciona de forma preconceituosa, seja ela machista, racista, etc. É aquele mesmo conteúdo de discurso e ação violentos que essas pessoas, mesmo cristãs, têm contra aquilo que elas acham abominável.


Leia a segunda parte da entrevista com Silvia Nogueira


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

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