Cantos e dissonâncias – A vida da mulher negra musicista

Hoje é dia 31 de julho, e só agora consegui parar para colocar no papel algo que me foi pedido a mais ou menos 4 meses atrás. O ser mulher tem dessas coisas, principalmente quando se tem família constituída. Na maioria das vezes abrimos mão daquilo que mais gostamos em função do que tem maior significado para nós.

Formada em Música, totalmente apoiada financeiramente e afetivamente pela Igreja Batista de Aquidabã em Cachoeiro de Itapemirim – ES e por minha família, descobri a música, e me descobri como alguém que queria fazer desta a minha carreira.

Fiz do ambiente da Igreja o meu primeiro lugar de atuação. Para mim, os melhores momentos da vida foram passados nesse ambiente. Muita música, muitos amigos, muita risada, choro e emoções.

A tão questionada discriminação parecia não existir, pois a música tem esse poder. Ela une as diferenças. Médicos, juízes, professores, domésticas, garis, dentistas e jornalistas, negro, branco… quando se unem em um só som, ouvimos o coro. Deus não discrimina. Ele distribui talentos a quem ele quer.

Mas no dia a dia da mulher musicista é que podemos perceber como as coisas são. Às vezes somos maltratadas sem ao menos saber o motivo. Normalmente pelos três fatores: mulher, negra e inteligente. E quando você dá certo, as pessoas costumam duvidar.  

Quando se é casada, com filhos e se tem um repertório para preparar, é uma batalha travada entre prioridade e prioridade. Família é prioridade, mas a música também é.

Olhando pra trás, fico pensando como as coisas foram possíveis nas circunstâncias em que vivi. Até no memorial da América Latina já tive o prazer de me apresentar com o coro, participei de cursos na Sala São Paulo, na Casa de Rui Barbosa. Conheci grandes regentes, tive professores de ponta e tenho uma família linda. Isso é o que Deus faz quando O reconhecemos como a única fonte inesgotável de todo o bem.

As discriminações existem, e vou relatar apenas algumas que me marcaram desde a infância:

– Na escola (com nove anos de idade) quase furei um menino com uma caneta do meu pai  pois ele me chamou de bombril por causa do meu cabelo. Depois disso ele passou a me respeitar, mas nunca admirei aquela professora pela conivência com o bullying.

– Naquela época as carteiras eram em dupla e a professora me colocou pra sentar ao lado da menina mais rica e loira da classe. Assim que sentei, a menina pediu pra me afastar porque ela “estava quase caindo”. Chorei muito naquele dia.

– As piadas eram sempre frequentes e sempre fingia que não entendia ou não ouvia.

– Aos sete anos, por causa do cabelo falaram que eu tinha piolho. Dessa vez eu gostei. A professora averiguou todas as cabeças e o piolhento era o acusador. 

– Sempre os melhores lugares eram para as outras, mas não ligava. Isso me deu força para me tornar o que sou hoje. O único lugar que ninguém tomava de mim era nas audições. Sempre era a última e muito bem aplaudida… bons tempos em que eu tinha tempo para estudar muitas horas de piano.

Mas o que achei o cúmulo do absurdo, a uns cinco anos atrás, foi quando indo ministrar aulas de piano numa casa dentro de um condomínio classe média, à pé naquele dia. Uma mulher me parou e perguntou se eu conhecia alguém pra trabalhar na casa dela porque ela estava precisando de empregada, se eu não queria trabalhar. Respondi com delicadeza, mas fiquei intrigada com o porquê de uma pessoa negra não poder andar a pé sem ser confundida com trabalhadora braçal. 

– Já fui barrada de entrar em um condomínio, mesmo sendo cadastrada anteriormente. Sabe quando duvidam de você ser quem você é?

– Já acharam que eu não tinha dinheiro pra comprar os produtos de uma determinada loja. Sabe aquela cara de descaso? Pois é… quem perdeu foi a loja e a vendedora porque comprei em outra.   

– Sabe aquelas piadinhas por causa da sua religião? “Por que você é calma e trata as pessoas com delicadeza?” Comentam que você é mole e acham que você é surda.

Mas atualmente com a criação e aplicação de leis contra o racismo e discriminação as pessoas estão pensando mais. E na idade em que estou, não tenho tempo a perder com esse tipo de pessoas. Para mim é mais fácil ignorá-las.

No entanto a luta continua por aquelas meninas que estão vindo. Elas precisam saber que são preciosas. Que são lindas. Que são capazes e precisam manter o foco em seus ideais, independente do mundo exterior. O cabelo é lindo, né Luciana*? Você que está me fazendo gostar do meu cabelinho crespo. E, se existe algo que ninguém pode tomar da gente é o talento, o corpo, conhecimento e a fé. Ninguém é dono de ninguém. Afinal de contas, Deus nos fez diferentes e é isso que torna o mundo mais interessante e belo.

Meu agradecimento então vai para meu pai, meu primeiro professor de música por nos incentivar aos estudos e não permitir que eu trabalhasse enquanto estudava. À minha mãe, por ter sido a minha principal professora de todas as matérias,  principalmente convivência humana. Ao meu querido esposo com quem tenho aprendido a enfrentar de cabeça erguida as lutas pessoais, aos meus filhos que complementam a nossa vida e a Deus que é a fonte de toda  força.

* Luciana Petersen, filha de Silvana e editora do Projeto Redomas.

Silvana Ribeiro Petersen, bacharel em Música Sacra pelo STBSB (1986). Atua como professora de música e pianista co-repetidora na Escola Municipal de Música em Arujá – SP. Como o currículo é extenso, peço licença para fazer uma homenagem à minha ex professora de canto Hora Diniz Lopes, que hoje partiu, deixando um grande legado. Para o lar onde ela foi hoje, não existe solidão. Ela está nos braços do Pai.


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição institucional da ABUB, outra instituição ou de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

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