Carmen Etel: a primeira reverenda da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB)

“O Senhor ficou comigo e me deu poder, para que por meio de mim fosse anunciada a sua mensagem” (II Timóteo 4:17)

Como cristã que está ainda fascinada pela tradição anglicana há quase três anos, gostaria de lhes apresentar um pouco sobre a história da ordenação feminina da minha igreja. Propositadamente, escolhi uma brasileira gaúcha que, dentre as anglicanas, não detém o cargo de maior prestígio, mas é uma coluna e inspiração para as ordenações femininas subsequentes. Acompanhem-me nesta jornada, que tive o prazer de compilar em algumas centenas de palavras.

Um pouco de história

A Igreja Anglicana não é muito conhecida no Brasil como são as demais vertentes cristãs, então um preâmbulo se faz necessário.

A história que nos contam na escola é que foi fundada pelo rei Henrique VIII que decidiu romper com a Igreja Católica para se divorciar da esposa e se casar com a amante – ou seja, fruto de um adultério, mais um pontinho de culpa para somar às mulheres. Porém, essa é uma versão no mínimo simplista, dizemos nós anglicanas e anglicanos.

Pensem comigo: antes de se instituir a Igreja Romana, existiam apenas cristãos sem denominação. Por onde os apóstolos passavam, paravam, e construíam uma “igreja” (o sentido mais original, como reunião de pessoas), que ganhava o nome do povo local. Na Grã-Bretanha, virou Igreja Celta: uma adaptação do cristianismo aos costumes, crenças e tradições da região. No século VI, já a mando da Igreja Católica, santo Agostinho virou o arcebispo de Cantuária e colocou a Inglaterra sob a tutela do Vaticano, com o intuito de converter os anglo-saxões. A despeito disso, por questões geográficas, a igreja nas terras inglesas tinha seu desenvolvimento bastante autônomo. Foi assim por quase 1000 anos, até que o Rei Henrique VIII, particularmente afetado pelas regras do catolicismo, decidiu proclamar a independência, instaurando a Church of England.

Em tempos de conquista de territórios, a Anglicana pautou sua conduta pela adaptação como peça fundadora e fundamental da sua estrutura, em vez da imposição, ao deixar que os povos colonizados contribuíssem com seus próprios valores e ideias. Atualmente, é uma das vertentes cristãs que mais cresce no mundo[1].

A primeira ordenação feminina

Antes de ser um consenso fruto de diálogo, a ordenação feminina foi fruto da necessidade. Em 1944, a Igreja de Hong Kong passava por uma situação singular, devido à falta de homens – que estavam lutando contra a ocupação japonesa – naquela província[2]. Os bispos da   decidiram, então, ordenar uma mulher. Florence Li Tim Oi[3] entrou para a história como a primeira sacerdotisa de uma religião cristã e como reverenda na Comunhão Anglicana, na Colônia de Macau – apesar de ter renunciado o título ao final da guerra, ela é um marco para o início de uma discussão mais ampla.

Desde então, ordenação de mulheres na Comunhão Anglicana é uma tendência desde a década de 70, intensificando-se após a virada do século XX. Atualmente, a maioria das   da Comunhão Anglicana[4] ordenam mulheres para uma das três ordens tradicionais, consagrando bispas, reverendas e/ou  . Outras províncias ordenam mulheres como diáconas e reverendas, mas não como bispas; outras, ainda, apenas como diáconas; e sete províncias não ordenam mulheres a qualquer uma dessas ordens do ministério[5].

Dentro de algumas províncias que permitem a ordenação de mulheres, a aprovação da legislação canônica, permitindo tal prática, é de responsabilidade das dioceses, seguindo a tendência de autonomias das dioceses em relação umas às outras.

O ministério ordenado de mulheres no Brasil

Em 1973, por ocasião do 24° Concílio da Diocese Sul Ocidental, de 4 a 7 de janeiro, em Santana do Livramento/Rio Grande do Sul, a irmã Maria Elvira Zimmermann Noble fez o primeiro discurso apologético em defesa da ordenação feminina na então Igreja Episcopal do Brasil. Doze anos depois, a IEAB aprova, em assembleia sinodal, o pleito da ordenação de mulheres.

Por fim (ou pra início de conversa) em 05 de maio de 1985, a IEAB realiza a primeira ordenação feminina ao diaconato, sendo ordenada Carmen Etel Alves Gomes, precursora dessa caminhada que foi seguida por dezenas de outras mulheres até a presente data[6].

A Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB) comemora, em 2019, 34 anos de ministério ordenado de mulheres. Passemos, então, ao legado da primeira ordenação feminina, com algumas incursões pessoais:

Carmen Etel, ontem e hoje

Carmen Etel Alves Gomes nasceu em Santana do Livramento, Rio Grande do Sul. É formada em Ciências Sociais e Teologia. Já atuou como presbítera em várias regiões do Brasil, e do mundo, e atualmente trabalha no Centro de Estudos Anglicanos em Porto Alegre e é Pároca na Igreja de Todos os Santos em Novo Hamburgo[7]. Nos anos 80, já pregava sobre novas teologias, utilizando-se da linguagem da práxis, consciência e fé política –  o que concedeu a ela o rótulo de padre vermelho, pela sua voz profética de denunciar as injustiças.

A reverenda trata o sexismo como pecado presente na sociedade que respinga, por óbvio, nas nossas comunidades, no contexto de uma cultura patriarcal. Apesar da boa relação histórica da IEAB com relação à ordenação de mulheres, ressalta que não há plena igualdade de gênero. Denuncia que uma mulher mesmo tendo uma ótima bagagem teológica, bíblica, pastoral – concorrendo com um homem, não ganharia a eleição. Não por falta de capacidade, mas devido ao patriarcado arraigado nas comunidades e na sociedade, porque nós mulheres sofremos cotidianamente quanto ao questionamento da nossa capacidade para cargos de liderança, ou mesmo da nossa sanidade. A luta toma proporções de saúde mental a ponto de duvidarmos de nós mesmas.

Sobre as demais ordenações cristãs, lamenta a invisibilidade da mulher no altar, devido a interpretações de textos da Bíblia que endossam a ideia de que mulheres não podem ser sacerdotisas. Isso se dá muito da nossa leitura bíblica, como se só fosse escrita por homens, embora tenhamos textos bíblicos de presença e participação proeminente da mulher. Afirma que, mesmo tendo na Bíblia um forte  [8], se consegue, com a   feminista[9], descobrir que Deus se apresenta na história da libertação usando as mulheres desde o início da caminhada do Êxodo. Nesse sentido, Redomas traz consigo muitos olhares femininos sobre a Bíblia e nossa caminhada com Cristo como mulheres numa sociedade machista.

Por isso Carmen acredita no ministério feminino, principalmente na missão fora do templo, junto das bases. Profetiza que mulheres vocacionadas contribuem para uma Igreja Profética, aberta, solidária e acolhedora em todos os sentidos: nós mulheres contribuímos quando somos vozes proféticas de denúncia dessa violência que estamos vivendo hoje, e  anunciamos a busca da construção de uma cultura pela Paz!

Existem tópicos, para Carmen, em que a contribuição da mulher é salutar, como na questão da prevenção e enfrentamento da Violência de Gênero. Além disso, para ela as mulheres ordenadas ainda ajudam na construção de uma nova teologia. Cita a Teologia Feminista de Ivone Gebara[10], a Hermenêutica de Fiorenza[11], e como a Hermenêutica Feminista abriu os olhos para nos permitir apropriarmo-nos dos “textos”, tornando-os como luzes para a caminhada de hoje.

Ainda, a reverenda entende que a linguagem patriarcal que se refere a Deus nas nossas liturgias é instrumento de condicionamento sutil que age para fragilizar o sentimento de dignidade, de poder e de autoestima da mulher: essa imagem de Deus Pai introjetada só tem contribuído para que a sociedade continue oprimindo a mulher, permitindo que os mecanismos de opressão contra esta pareçam corretos e adequados. Que Deus a Igreja tem pregado?

Deus: Pai e Mãe

Dito isso, importante ressaltar que, em 2015, a igreja Anglicana reformou seu Livro de Oração Comum, para uma linguagem mais inclusiva[12].

Juliana de Norwich, da Comissão Nacional de Liturgia da IEAB, salienta que pequenas mudanças foram feitas de modo a refletir esse princípio de forma mais evidente, estendendo por meio da liturgia o testemunho de que a humanidade – independente de gênero – é feita à imagem e semelhança de Deus, Pai e Mãe: isso não é fruto do acaso, mas graças, sobretudo, pela oportunidade da reforma ter sido efetuada por uma comissão composta por uma maioria de mulheres.

Nas suas palavras, onde mulheres têm voz, podemos enxergar seus problemas de exclusão de maneira mais clara – algo que os homens só vivem em teoria, sem que seja experiência de vida.

Como podemos aprender com o exemplo de Carmen?

Às vezes idealizamos os exemplos importados, e ignoramos a riqueza das mulheres mais próximas a nossa realidade brasileira. Em pleno século XXI, ainda há a discussão sobre o papel que o gênero feminino exerce na hierarquia. Mesmo que a ela seja permitido e/ou incentivado estudar, muitas tradições cristãs ainda veem como inconciliável uma mulher no comando de uma congregação, visto que ela dominaria sobre o homem, independente de que ela possa ser mais estudada que alguns homens nessa função. Assim, à mulher resta ensinar – em silêncio, invisível, e com um sorriso impecável.

Carmen chegou onde chegou pela dor de suas ancestrais e pela luta de suas irmãs. Nunca foi um presente. É conquista histórica que fazemos nos ombros umas das outras, dando as mãos. Assim, por meio do seu exemplo, ela também possibilitou a abertura de portas na IEAB para outras reverendas, diáconas, presbíteras e, recentemente, a primeira bispa anglicana do Brasil (e da América do Sul), Marinez Rosa Bassotto[13] – que, aliás, é coautora em um excelente artigo sobre as mulheres e a eleição episcopal, para quem desejar mais aprofundamento[14]).

A Igreja deve repensar como se relaciona com as novas dinâmicas na configuração da sociedade contemporânea, uma vez que caíram por terra as funções limitadas ao gênero: mulheres trabalham, estudam, encabeçam seus lares, não precisam necessariamente se casar. Não obstante, a pressão da tradição, especialmente cristã, ainda oprime irmãs que buscam o sacerdócio feminino. Cada vez mais se faz urgente uma releitura dos textos bíblicos e da nossa forma de enxergar a Bíblia, que por vezes faz mulheres reprimirem seus dons para mestras e pastoras.

As sementes da isonomia de gênero plantadas na primeira metade do século, que viraram árvores no pós segunda guerra, estão dando seus frutos, inclusive no modo como enxergamos e experimentamos a liturgia anglicana, sendo que esta, por sua vez,    as demais vertentes cristãs.

Por fim, uno-me ao clamor de  n Etel, para que os homens também se empenhem em ajudar a quebrar o sexismo, uma vez que, invariavelmente, a construção de uma sociedade igualitária passa por todos os seus componentes.

Que a Ruah Divina[15] seja louvada e que muitos outros fatos sejam possíveis na história da ordenação feminina na IEAB!


[1] Para mais detalhes históricos, a Revista Superinteressante fez uma boa síntese. Disponível em <https://super.abril.com.br/cultura/igreja-anglicana-do-comeco-ao-fim/>. Acesso em 05 fev 2019.

[2] Cada província anglicana é liderada por um Primaz (arcebispo). São agrupamentos de várias dioceses, cada qual sedeada numa sé-catedral metropolitana, dirigidas por um bispos, sendo um termo administrativo-eclesiástico. Pode ser equiparado, guardadas as devidas proporções, com uma convenção batista.

[3] Li, Florence Tim Oi (1996). Raindrops of my Life. Toronto: Anglican Book Centre.

[4] A Comunhão Anglicana é a associação fraternal de igrejas nacionais de fé anglicana. Ela está diretamente relacionada à Igreja da Inglaterra, que é considerada a religião mãe do país. Não existe uma única “Igreja Anglicana” com autoridade jurídica universal, já que cada igreja nacional ou regional tem autonomia total.

[5] Há uma seção muito interessante na Wikipédia para fins comparativos sobre isso. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ordena%C3%A7%C3%A3o_de_mulheres_na_Comunh%C3%A3o_Anglicana#cite_note-83>. Acesso em 05 fev 2019.

[6] 33 Anos de Ordenação Feminina na IEAB: Fatos marcantes nessa história. Informativo CEA. Disponível em <http://www.centroestudosanglicanos.com.br/portal/mural-cea/informativo/328-33-anos-de-ordenacao-feminina-na-ieab-fatos-marcantes-nessa-historia.html>. Acesso em 05 fev 2019.

[7] Em 2015, a reverenda Carmen concedeu uma excelente entrevista ao Conselho Nacional das Igrejas Cristãs do Brasil – CONIC, que serviu para orientar este breve artigo, disponível em <https://www.conic.org.br/portal/noticias/1432-ordenacao-de-mulheres-na-ieab-entrevista-com-carmen-etel-gomes>.  Acesso em 05 fev 2019.

[8] Tendência para colocar o masculino como paradigma das narrativas, neste caso, bíblicas, como se Deus viesse apenas ao homem, estando a mulher em segundo plano. O termo foi cunhado pelo sociólogo americano Lester F. Ward em 1903.

[9] Hermenêutica é a ciência ou técnica que tem por objeto a interpretação de textos, como as Escrituras Sagradas. A hermenêutica feminista, por sua vez, vai de encontro ao androcentrismo na medida em que ressalta que todos os textos são produtos dessa cultura patriarcal, por isso, ela defende que as questões levantadas pelo estudo feminista podem restituir a participação das mulheres na história cristã primitiva. Basicamente, dá voz às mulheres a partir do ponto de vista de uma mulher naquele contexto.

[10] Ivone Gebara é filósofa, religiosa e teóloga. Ela lecionou durante quase 17 anos no Instituto Teológico do Recife – ITER. Dedica-se a escrever e a ministrar cursos e palestras, em diversos países do mundo, sobre hermenêuticas feministas, novas referências éticas e antropológicas e os fundamentos filosóficos e teológicos do discurso religioso.

[11] Elisabeth Schüssler Fiorenza é teóloga e biblista feminista. Romena, nasceu numa família alemã e, depois da Segunda Guerra Mundial, cresceu na Alemanha, onde se tornou uma das primeiras mulheres católicas a se formar em teologia, doutorando-se na área da Bíblia.

[12] Linguagem Inclusiva: O que é isso? Disponível em  <http://liturgia.ieab.org.br/2015/03/26/linguagem-inclusiva-o-que-e-isso/>. Acesso em 05 fev 2019.

[13] Igreja Anglicana em Belém sagra a primeira bispa da América do Sul. Informativo CONIC. Disponível em <https://www.conic.org.br/portal/noticias/2594-igreja-anglicana-em-belem-sagra-a-primeira-bispa-da-america-do-sul>. Acesso em 05 fev 2019.

[14] Ver mais em A ELEIÇÃO EPISCOPAL NA DIOCESE MERIDIONAL DA IEAB. Disponível em  <http://www.umeab.org/noticia/elei-o-episcopal-na-diocese-meridional-da-ieab> . Acesso em 20 mar 2019.

[15] No relato da Criação, “a Ruah de Deus (em hebraico, Ruah é feminino) pairava sobre as águas”: trata-se de uma bela imagem da matriz ou útero originário fecundo de tudo quanto existe; tudo é amorosamente acolhido, fecundado, gestado, carregado neste grande ventre cósmico que podemos chamar divino: “Deus”. Para mais informações, ver <http://www.ihu.unisinos.br/42-noticias/comentario-do-evangelho/568252-sabta-ruah-o-sopro-que-nos-une>. Acesso em 19 fev 2019.


Cristina Alves tem 27 anos e é acadêmica de Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS, não que isso queira dizer alguma coisa. Possui algumas tatuagens e muitas opiniões, apesar de refrear melhor sua língua ferina hoje/atualmente que há alguns anos.


Revisão por: Bianca Ramires

 

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