Como meu romance virou um roteiro de filme de terror gospel

Nós crescemos ouvindo histórias Disney e suas princesas e príncipes, mesmo dentro da igreja. Os nossos príncipes além de terem tudo o que os outros têm, também precisam ser crentes e engajados na comunidade eclesial. Quanto maior o título melhor. Vai de assíduo, passando por líder de juventude, ministro de louvor a seminarista e pastor (se for ABUense inclua também os cargos da ABUB). Esse tipo de coisa repetida mil vezes faz a gente acreditar que “ser de igreja” é o bastante, estar em algum ministério já tá bom já, e se for envolvido em algo missionário… nossa, tá morto de bom! Comigo foi assim.

Nem todo mundo gosta de filme de terror, então dê preferência pra ler este texto durante o dia, porque este é do tipo que inicia com um “baseado em fatos reais” pra já começar dando medo. Vou contar pra vocês como se cria um roteiro de filme de terror:

 

1°) Crie um sério crime no passado

Tudo começa com um fundo musical de sessão da tarde e aquele old but gold “nunca senti isso por ninguém antes” acompanhado do relato de o quão insuficientes foram todas as namoradas anteriores, o quanto elas eram vadias (sim, às vezes é bem “direto” assim) e o quanto elas tinham sido muito cruéis enquanto ele era apenas um garotinho ingênuo que amou demais. De todas as ex, a pior era Júlia. Júlia não só era cruel, mas ainda o cercava para o lembrar das crueldades que ela fez pra ele e eu não gostava de Júlia.

 

2°) Comece o personagem principal tão grande quanto possível

Meu primeiro namorado me fez acreditar que não existia alguém mais incrível que ele em todo o mundo. Ele era aquele tipo crente-virgem-missões-urbanas-descolado. Em nosso primeiro papo ele falou que estava pensando em ir num programa de missões na África, mas estava em dúvida e por isso tinha trancado temporariamente um curso de psicologia. Agora ele era crente-virgem-missões-urbanas-descolado-e-que-fazia-faculdade. Além de tudo era músico, era uma banda inteira em um homem só e também compunha músicas (claro que eu ganhei algumas composições). Ele também gostava de crianças, queria três filhos: Sophia, Judith e Heitor. Quando começamos a namorar ele teve até um papo super sério com meu irmão, que na época tinha dez anos, para explicar o que significava ele entrar em nossas vidas agora e o quanto ele gostava de mim.

 

3°) Crie uma fraqueza para o personagem principal

Como ele não podia ser perfeito, ele tinha alguma coisa nunca conversada abertamente da qual precisava de alguns remédios para dormir a noite e crises depressivas. Como motor gerador disso tudo havia uma história de um passado não-tão-gospel onde ele e o primo encheram a cara e estavam correndo a cento e tantos por hora na infinita highway e bateram o carro. Enquanto ele estava lá todo ensanguentado o primo saiu para pedir ajuda, foi atropelado e morreu.

 

4°) Crie um ambiente isolado do qual os personagens não podem fugir

Agora o nosso personagem tem que viver com a culpa e a minha função de auxiliadora idônea que eu havia sido criada para ser era de entender, relevar as ausências desses períodos de bad e ser responsável por segurar a barra. Afinal, sou eternamente responsável por aquele que cativo (ou “aquele que me coloca em cativeiro”). Ele precisava de mim. E eu começava a entender que eu tinha sorte de ter alguém como ele na minha vida. Mesmo com os problemas (cada um tem os seus) ele ainda era o cara mais incrível do mundo. Eu era sortuda. Eu precisava dele. E a dependência era firmada.

 

5°) Apresente o monstro e seu verdadeiro poder ao longo do enredo

Com o tempo algumas atitudes foram se intensificando. Comentários de o quanto fulana era incrível seguidos de um “você podia ser assim também” iam fazendo parte da rotina. Nesse momento era Marina. Marina era incrível e descomplicada. Ao contrário de mim. Todos os dias eu era pesada, medida e considerada insuficiente.

Gustavo começou a conversar bastante com Marina e a passar mais tempo com ela. Minhas reclamações eram respondidas com o clássico morde e assopra “você está louca, neurótica… não é possível que você, sendo a pessoa que eu mais amo no mundo duvide disso… vai se tratar, depois fale comigo…”. Neste momento minha auto-estima já estava estilhaçada e eu questionava como um namoro com um garoto crente podia ser tão ruim. Eu via as mensagens que eram trocadas com Marina, não porque eu invadia a privacidade dele, mas porque ele me enviava “por engano” e era cruel, ele não falava daquele jeito comigo fazia meses.

Os momentos agradáveis juntos foram ficando mais raros e o último deles que me lembro se transformou em uma tentativa de estupro. Nesse dia eu pedi pra ele ir embora da minha casa e tive febre a noite toda, levei um bom tempo pra conseguir falar sobre o que aconteceu com alguém.

Gradativamente Gustavo não quis mais saber de Jesus e eu, nas palavras dele, era fanática e ele dizia não entender porque estava com alguém assim (embora fosse bem parecida com quem ele era um ano atrás). Então ele me fez acreditar que precisava de mim pra se lembrar de seu amor por Jesus. Se eu saísse da vida dele, ninguém faria isso por ele. A família dele era toda desmantelada, quem ele tinha era eu. Eu era a tábua de salvação. Eu era o messias na vida de Gustavo.

A gastrite me acordava todos os dias. Eu não tinha apetite. Eu, que não sou baixinha, estava pesando 45 quilos e as idas ao hospital ficavam mais frequentes. Em uma dessas eu acordei no meio da noite com um amigo do meu lado chorando. Eu não sabia mais o que fazer. Era como ser dependente de uma droga.

A primeira tentativa de término foi falida. Na segunda ele me contou que após a minha primeira tentativa ele tentou se matar. No dia em que eu estava preparada para a terceira tentativa Gustavo me contou que estava com leucemia e mais: não queria tratamento. Dizia que apenas ia prolongar a dor, tinha alguma história triste de algum parente que havia morrido de câncer e que queria que nos casássemos e tivéssemos logo esses filhos. Era o mínimo que eu podia fazer por ele.

 

6°) Na batalha final, a personagem que era coadjuvante precisa lutar não apenas com o monstro, mas também com o monstro em si mesmo

Em um papo com um amigo – em um dos raros momentos em que eu conseguia me abrir – ele, cansado de me dizer “cai fora Bino, é uma cilada” falou uma frase óbvia que balançou o meu mundo: “você não é Jesus” e eu ouvia como se fosse uma novidade “Deus não te criou pra ser capacho de porta. Você, feita imagem e semelhança dele, não pode ser submetida a um relacionamento assim. Vai ter que tirar força do útero sim pra dizer não pra esse cara, dá a mão pra Jesus e vai. Sua dignidade tá em Cristo é ele quem diz quem você é ou não, não outra pessoa, muito menos uma que vai te diminuir pra poder te controlar. Você não nasceu pra que que um homem/namorado/marido recebesse seu “seja feita tua vontade”. Sua vontade não é dele.

 

7°) Final duplo: Isto implica uma aparente morte ou desaparecimento do monstro, permitindo ao público recuperar seu fôlego – seguido de um retorno súbito do monstro.

No dia em que finalmente consegui terminar o namoro e viver para o que Deus me criou, para a liberdade e dignidade, eu pude ir aos poucos retomando minha rotina normal. Por mais um ano após o término eu ouvia constantes chantagens emocionais e tentativas de “retomada do controle” por parte dele. Quase dois anos depois, descobri que ele nunca começou um curso de psicologia, nunca houve um acidente de carro onde um primo tivesse morrido e, além de outros vários “nunca existiu um *insira algo que ele tenha contado aqui*”, ele também não tinha leucemia. Alguns meses depois do nosso término ele começou a namorar Marina, embora me mandasse mensagens de que era eu quem ele amava de verdade, e me dei conta, na mesma época, que eu tinha sido a vítima após Júlia. Júlia é minha soror, minha irmã. Ela devia ter sido tão maltratada como eu fui. Por isso ela o assombrava. E Marina seria a próxima. Eles também já terminaram. Não sei o quanto durou o namoro deles, mas Marina também é minha soror, minha irmã.

 

8°) O Mal espreita.

Eu não sou uma pessoa ingênua que deixou alguém me fazer de trouxa. Eu sou só mais um caso de uma mulher que foi silenciada e teve sua integridade e dignidade violentada em todos os sentidos. Eu fui abusada espiritualmente por alguém que me convencia diariamente que eu carregaria a culpa pela falta de fé dele. Eu sou um ser integral. Se minha eu-mente sofre, meu eu-corpo também sofre e vice versa.

Eu oro todos os dias pra que Deus me faça uma mulher simples como uma pomba e astuta como uma serpente pra que eu perceba os sinais e fuja, pra que eu possa abrir os olhos das minhas irmãs para elas verem que apesar de parecer ser um caso pesado e que as pessoas tendem a tratar como caso isolado, no começo meu caso também não era “nada demais” e qualquer caso “comum” de abuso pode virar um caso bizarro destes. Também oro para que Cristo me dê forças e para que pelo seu nome eu possa exortar esses meninos e homens que utilizam de um sistema marcado pela Queda, ou até mesmo o nome de Deus, para rebaixar meninas e mulheres e as moldarem segundo sua podre vontade.

*Os nomes foram trocados para proteger a privacidade dos envolvidos.

 


Autora anônima.


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

Atualizado em 22/12/2017

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