Fala sobre o teu cabelo, nêga!

Since naturally black is naturally beautiful
I must be proud and, naturally black and beautiful
Who always was a trifle yellow and plain, though proud before.
Now I’ve given up pomades
Having spent the summer sunning
And feeling naturally free
[…]
By a summer ocean of naturally woolly hair?

(Audre Lorde, escritora americana e feminista negra)

Resolvi falar sobre o meu cabelo.

Em uma das muitas entrevistas sobre seu livro Americanah, quando questionada sobre o que se tratava o romance, Chimamanda Adichie respondeu que tinha escrito um livro sobre cabelo. A primeira cena se passa em um salão de beleza, onde a protagonista, nigeriana estudando nos Estados Unidos, vai renovar seu trançado e acaba sendo confrontada por outras mulheres, também africanas, que invejam sua posição de ex-patriada universitária e com inglês sem sotaque. Ifemelu, a personagem também escritora como sua criadora, discute sobre cabelo muitas vezes no livro, além de amor e política. No texto da Chimamanda, cabelo é amor e política e neste meu também. Se parece exagerado dizer que na vida de uma mulher negra o cabelo tem uma centralidade, isso diz mais sobre o mundo e as relações sociais em que vivemos do que sobre a futilidade estética de uma mulher.

Sou uma mulher negra que passou por décadas de procedimentos químicos. É difícil dizer quando assisti a um alisamento pela primeira vez, mas sendo filha e sobrinha de mulheres que alisavam os próprios cabelos, já estava acostumada a participar dos demorados procedimentos, mesmo que em nossas cabecinhas de criança apenas as tranças fossem a solução. Foi só no início da adolescência que fui submetida ao meu primeiro tratamento químico, no quintal da casa de uma mulher negra também alisada, que dizia estar aplicando apenas um creme para “soltar meus cachos”. Lembro desse dia e do quanto estávamos contentes, minha irmã e eu, de não ter mais que passar por doídas sessões de desembaraço. Como prometido, nossos cabelos estavam mesmo mais soltos e “domados”. Lembrar desse momento me fez pensar que aquilo não foi torturante, e articulo esse pensamento a partir da leitura da escritora e feminista negra bell hooks¹ em seu texto Alisando o Nosso Cabelo (2005). Ela relembra que esses momentos em que as mulheres negras se reuniam para alisar e cuidar do próprio cabelo eram muito esperados, pois marcavam um período de transição entre ser menina (e viver de trancinhas e penteados) e se tornar uma mulher (fazer algum procedimento para usar os cabelos soltos). Para bell hooks, cujo próprio procedimento de iniciação era alisar os cabelos com o pente quente aos sábados, aquele encontro era um momento em que as mulheres negras se reuniam para conversar, como um ritual. Era um mundo íntimo, um lugar onde as negras eram acolhidas e compartilhavam a vida, enquanto meninas ouviam e aprendiam.

Coincidentemente, foi num sábado à tarde meu primeiro alisamento. Nunca fui tão elogiada como nos dias que se sucederam a isso. Meu cabelo estava brilhante e desembaraçado. Eu me senti bonita e teria essa oscilante sensação de satisfação trazida pelo alisamento muitas vezes na vida. Para arrancar meu sorrisinho de menininha negra era só elogiar meu cabelo. Meninas negras devem ser elogiadas. Enquanto viralizou um texto ano passado (How to talk to little girls, de Lisa Bloom) em que a autora nos desafiava a oferecer mais do que um “você é linda” pra uma garotinha, outro texto (Linda. Como você é linda! de Vanessa Rodrigues) relatava o desabafo de uma mãe, que, após saber do conteúdo desse primeiro texto, suplicou: “Não com a minha filha! Te peço, Vanessa, que continue, sim, elogiando a aparência da Manoela. Elogie seu sorriso, elogie suas roupas e elogie, principalmente, seu cabelo. Porque ninguém o faz. Se num grupo de amigas ela é a única menina negra, ela é aquela que ninguém lembra de elogiar. Você é uma das poucas pessoas que sempre diz que ela é linda. Deixa que do resto eu cuido”.

 

Falavam sobre o meu cabelo.

Mas de onde surgiu a prática do alisamento? Mesmo tendo vivido o movimento black power nos anos 70, e familizarizadas com as estéticas rastafari e hippies, que incluem dreadlocks e outros tipos de trançamento, intervenções visando alisar o cabelo negro se tornaram comuns no Brasil. Os primeiros alisamentos eram feitos mecanicamente (pente quente, chapas, ferrinhos), mas os produtos mais utilizados na década de 50 tinham em sua composição o hidróxido de sódio, que produzia ardência e sensação de sufocamento com seu cheiro forte. Nos anos 80, o permanente, feito com uma preparação de amônia e bigudins (argolas utilizadas para formar os cachinhos pós-química) era o procedimento mais procurado por mulheres negras que queriam tentar “arrumar o seu cabelo crespo”. Havia também um procedimento mais popular chamado “touca de gesso” em que o material do permanente era misturado a talco ou farinha de trigo e um pouco de condicionador, que era aplicado nos cabelos e posteriormente alisados com pente. As mulheres cujos cabelos não eram “domados” ou não tinham seus “cachos soltos” pelos permanentes afros, utilizavam o henê. No início dos anos 2000, a importação de produtos para alisamentos ocasionou uma explosão de “chapinhas” ou “escovas”, nomes novos que os procedimentos recebiam. Chapinha japonesa, escova marroquina, escova inteligente, escova progressiva, escova de aminoácidos, todas elas possuíam um fortíssimo químico em sua composição, responsável pela desnaturação momentânea da proteína capilar – o formol. Certamente você já ouviu ou já se submeteu a algumas delas. Eu também.

Lembro de como era dolorido, demorado e caro ter que se submeter a tudo isso. A atmosfera dos salões de beleza é algo apresentado desde muito cedo para uma mulher negra, mas não gosto, nem nunca gostei das horas que perdia lá. Por que eu me submetia espontaneamente a isso, então? Passava horas tendo minha raiz capilar analisada, encharcada de cremes que eu não sabia quais eram e nunca via a marca (acreditávamos nas deidades que eram as cabeleireiras, aquelas feiticeiras da beleza) e esticada violentamente. Aguentava como verdadeira heroína os minutos de ardência e as sequências de enxágue, neutralização, escova e chapinha. Meu couro cabeludo era sensibilizado durante horas, queimado quimicamente e pelo secador e chapinha. Eram horas respirando um vapor sufocante e umedecendo os olhos que ardiam, tomando água pra controlar a secura da boca. Eu, profissional e professora de química, me submetia a isso a cada três meses. Sim, porque não durava. Saía do salão com cabelos lisos (não haviam mais cachos), brilhantes e elogiáveis, que na semana seguinte não estavam mais assim. E mais, aquele ambiente de cumplicidade entre negras não existia. Eu frequentava salões caros e majoritariamente frequentado por pessoas brancas.

Engana-se quem pensa que a escolha era minha e que eu era a única responsável por estes procedimentos de tortura. Existe uma socialização padrão imposta que diz pras meninas muito cedo qual é o padrão estético mais bonito e celebrado. E esse padrão é o conjunto: magra, branca, traços finos e cabelo liso. Somos um país com alta porcentagem de pessoas negras ou pardas, temos nossa negritude celebrada como orgulho nacional e impressa na cultura, mas meninas e mulheres negras crescem ouvindo que seu cabelo não é bom. Por isso que alisava o meu cabelo. Ele não era bom. Meu cabelo crespo era ruim, pixaim, um fuá, uma buchinha. Repetia isso até em tom de brincadeira. E nós meninas e mulheres negras nos esforçávamos para transformá-lo num cabelo bom. A sequência martirizante que descrevi não foi uma escolha. Estamos inseridas nesse construto social que imprime um duo padrão de belo e bom versus feio e ruim onde os crespos pertencem à segunda categoria. Eu nem me questionava. Lembro que me peguei rindo quando, ao terminar uma aula, um aluno afirmou que eu estava “diferente”. Claro. No espaço de um final de semana a professora de cabelo preso com raiz alta e pontas quebradiças tinha passado pelas mãos da feiticeira-cabeleireira-química que tinha trazido de volta a maciez, o balanço, o brilho. Novamente seria elogiada, mas em meu couro cabeludo ninguém tocava, as casquinhas das queimaduras seriam notadas, ele estava em recuperação.

Talvez uma coisa que muitas pessoas não saibam, é que nessa categoria de “cabelo ruim” em que os crespos estão inseridos, existem alguns que são mais ruins que os outros. Foi feita uma divisão de letras e números que é usada como classificação capilar e que varia de 1 a 4, sendo o primeiro número o extremo liso, e o último número o extremo crespo. A mulher negra cuja estrutura capilar se encontra na faixa 4 (o chamado kinky hair, cabelo que não forma cachos, extremamente encarapinhado) é aquela que mais se submete a alisamentos, pois é a primeira experiência a ser oferecida para ela. O que essa mulher fala sobre o próprio cabelo? Com quem ela fala? Quais são as mulheres que tem um cabelo como o dela que ela vê falando na televisão, nas redes, nos espaços de poder? Quais são as mulheres expoentes que tem kinky hair que você conhece? Será que elas “não existem” porque fomos treinadas a enxergar apenas um padrão?

Alguém falou do meu cabelo comigo. E era uma mulher negra como eu e que estava junto comigo naquela tarde de sábado do primeiro alisamento.

Depois de décadas alternando as técnicas, seu cabelo crespo não responde mais. Gasta-se muito em hidratações profundas e semanais, mas a verdade é que muita química faz seu cabelo cair, seu couro cabeludo se danificar e seu corpo acumular uma quantidade de formol que não conhecemos (as feiticeiras capilares dizem seguir as determinações da ANVISA que estabelece um percentual 0,02% de formol nos produtos capilares, mas sabemos que do momento da entrega pelo fornecedor até chegar nas cabeças das clientes, o produto passa por um “batismo”, onde mais formol é acrescentado). E a fidelização das clientes é importante para mulheres negras alisadas porque ao trocar de técnica, produto ou profissional, seu cabelo pode cair. Existem relatos de muitas mulheres carecas pós-química incompatível. Mudei de cidade, minha fiel feiticeira ficou.

Eu já falava sobre o meu cabelo com a minha irmã, que estava se informando bastante sobre um processo chamado “transição capilar”. Ela pretendia se livrar da química e estava estudando sobre o tema e entrando em uma comunidade de meninas e mulheres que trocavam informações sobre como se livrar dos procedimentos químicos e aprender a cuidar e gostar do seu próprio cabelo. Esse processo de transição dura meses, alguns até anos, e começa com o abandono total das escovas progressivas e insere na rotina da mulher negra uma sequência de hidratações, nutrições e tratamentos naturais visando restaurar a raiz e o corpo capilar danificado. Eu via o cabelo da minha irmã crescendo, ficando lindo e volumoso, lembrava daquela menininha-espelho da minha infância. Resolvi, no final do ano me submeter a um procedimento radical chamado bigchop que é um corte para retirar todo o cabelo submetido à química. Como o ritmo de crescimento de um cabelo alisado é muito lento, geralmente as mulheres negras que se submetem ao bigchop se veem com um cabelo curto, evidenciando um rosto que elas não conheciam há tempos, com uma textura esquisita. Muitas meninas relatam que se arrependem durante a transição ou depois do corte. Muitas se recolhem, tentam disfarçar. É um difícil retorno.

 

É preciso falar sobre o seu cabelo.

Passei por todos esses sentimentos, mas encontrei em outras mulheres negras – minha irmã primeiramente – um refúgio de encorajamento. Aqui vale um adendo. Enquanto muita gente pode pensar que tudo isso é exagero ou sentimentalismo, eu afirmo que seu cabelo, mulher negra, é político. Em um ensaio intitulado Is Your Hair Still Political? (2009), Audre Lorde, escritora e feminista negra americana relata que, ao tentar passar férias no Caribe teve sua viagem cancelada por causa do seu cabelo. Ela estava com dreadlocks e foi perguntada se era Rastafari. Sobre o impedimento ela diz que “Ele [funcionário que a liberaria para viajar] não me perguntou se eu era uma assassina. Ele não me perguntou se eu era uma traficante de drogas, uma pessoa racista ou se eu era membro do Ku Klux Klan. Em contrapartida, questionou se eu era seguidora da religião Rastafari”. Ela segue falando que os preconceitos são impressos no corpo e no cabelo das pessoas negras, das pessoas negras que usam adereços no cabelo, das pessoas negras que usam adereços no cabelo e que tem um tipo específico de fé. Seu cabelo diz quem você é e pode te impedir de transitar. Mas isso não é culpa sua. Esse nosso país que celebra uma certa ancestralidade afro em sua cultura, não admite criminalizar seu racismo estrutural, nem se responsabiliza por ele. Seu cabelo é político sim, porque ele faz parte de um corpo negro revolucionário. Seus traços fortes, seus lábios grossos, seu nariz achatado, seu cabelo armado e sua cor escura, mostram pra todas as pessoas que racismo é achar que esse corpo negro – seu – é abjeto, indesejado, não é belo e não pertence a este mundo. Seu corpo e seu cabelo negro incomodam, portanto são políticos.

E as mulheres que entendem tudo isso e ainda querem se submeter a alisamentos? Mulher negra e alisada, fale. Fale sobre seu cabelo com outras mulheres, com outras mulheres negras, tente entender suas motivações e porquês e fuja das imposições até mesmo entre pessoas negras.

Quase um ano depois do meu bigchop eu não só falo sobre o meu cabelo, como eu posso tocá-lo, sentir a textura, perceber o quanto ele mudou. Como o volume varia, como ele acorda amassado apenas de um lado e bem pra cima de manhã. Como tem crescido saudável e livre. Agora a feiticeira sou eu, preparando os combinados nutritivos, estimulando, cuidando. O meu cabelo sou eu. Encontro várias mulheres negras crespas e cacheadas na rua. Em muitas das vezes trocamos olhares de admiração. A cada uma delas eu ofereço o meu sorriso. Nêga, fale sobre seu cabelo. Comigo, com as outras, com o mundo.

¹bell hooks solicita que seu nome seja escrito sempre em minúsculas

Para saber mais:

ADICHIE, Chimamanda. Americanah. Editora Companhia das Letras, 2014

hooks, bell. Alisando o nosso cabelo. Revista Gazeta de Cuba – Unión de escritores y Artistas de Cuba, janeiro-fevereiro de 2005. Tradução do espanhol: Lia Maria dos Santos. Retirado do blog coletivomarias.blogspot.com/…/alisando-o-nosso-cabelo.html

LORDE, Audre. I am your sister – Collected and unpublished writings of Audre Lorde. Oxford University Press, 2009

RODRIGUES, Vanessa. Linda. Como você é linda!. Disponível em: <http://blogueirasfeministas.com/2014/10/linda-como-voce-e-linda/>

BLOOM, Lisa. How to talk to little girls. Disponível em <http://www.huffingtonpost.com/lisa-bloom/how-to-talk-to-little-gir_b_882510.html>

 


Paloma Nascimento dos Santos é professora de Química, mulher negra e feminista interseccional. É assessora auxiliar da ABU Sul e articuladora da Rede Fale. Pernambu-cana-de-açúcar.


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

Atualizado em 22/12/2017

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