Imagem Preta e Semelhança Crespa – E viu Deus que isso era bom!

Uma das lembranças que carrego da minha infância é de minha mãe penteando os meus cabelos crespos, eu sentindo uma dor danada na cabeça, e, em seguida, o pente quebrando nos meus fios. Naquela hora odiei o meu “cabelo ruim”, odiei a dor que estava sentindo na cabeça, queria ter um “cabelo bom” igual ao da minha mãe, lisinho que não segurava presilha.

Essas e tantas outras memórias da minha infância ou adolescência se ligam no desejo de querer se diferente do que eu era, acreditava que com outro cabelo, uma boca e olhos menores eu seria mais bonita, seria a menina mais bonita da sala. A verdade é que quem nós somos não é apenas reflexo da nossa subjetividade e intimidade, mas também da sociedade/do coletivo ao qual pertencemos, é, por isso, que o processo de enxergar a nossa identidade, o nosso “eu”, os nossos traços estéticos têm a ver com o ato de se reconhecer no outro (HALL, 1997 apud WOORDWARD 1997, p.8).

Não era possível eu me ver como menina negra bonita, pois em nenhum lugar eu tinha uma referência de menina negra bonita, seja na televisão, livros ou qualquer outro produto cultural que consumia na época eu não me via, não era representada, afinal, a nossa identidade está diretamente ligada com sistemas de representações, que por sua vez são definidas por quem detém o poder (WOORDWARD, 1997, p. 11), é a partir daí que padrões são criados, que estereótipos são perpetuados, pois quem é dominante tem a autonomia e liberdade de definir quem será excluído ou incluído, qual identidade será aceita e qual não será.

E qual é o padrão que é aceito? O padrão é ocidental, elitista, eurocêntrico e branco (SODRÉ, 1999, p. 21), logo, a nossa necessidade de ser aceito nos leva a buscar incansavelmente esse padrão, é daí que milhares de mulheres negras passam por experiências capilares fortíssimas mesmo com pouca idade, inclusive foi almejando esse padrão que medidas públicas foram criadas em meados do séc XIX no Brasil para embranquecer a população.

A nossa identidade enquanto indivíduos negros não é aceita, é invisibilizada, é silenciada e é negada todos os dias, porque estereótipos são um elemento-chave de violência simbólica (HALL 1997 apud CARNEIRO 2010, p. 114). Violência essa que aparece de forma muito sutil quando várias vezes, eu ainda criança, saia mesmo que com meus cabelos presos, e encontrava um conhecido na rua que dizia algo como: Seu cabelo é cheio, né?, seguido de uma cara meio controversa. Sim, meu cabelo era cheio. Segundo ouvi uma vez, era igual ao da bruxa Keka e se era de bruxa nem tinha como ser bonito. Não, meu cabelo não era bonito. Cabelo bonito era liso, era loirinho, era aquele igual ao da Barbie.

É assim, que nós, mulheres negras, crescemos odiando a nossa estética, quem nós somos e a nossa própria identidade apenas para sermos incluídas e tidas como belas pelos padrões que são impostos a nós. O nosso olhar se condiciona a rejeitar os traços e a beleza que o próprio Deus fez em nós.

“Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.” Gênesis 1:27

Não aceitar quem nós somos é não reconhecer que somos imagem e semelhança do próprio Criador. Pessoalmente, todo esse processo de se aceitar enquanto mulher negra é cheio de feridas e dores, porque quando a gente não se aceita, a gente não consegue se ver e isso também interfere no modo como nos relacionamos com Deus.

Desta forma, a Igreja precisa ser um espaço de acolhimento dessas dores; nós mulheres negras cristãs ansiamos por uma Igreja que está atenta as feridas que temos por não estarmos nos padrões e por vivermos numa sociedade racista.  Paulo fala em sua segunda carta a igreja de Corinto que por meio de Cristo todas as coisas são reconciliadas (II Co 5:18-19), acredito que isso também inclui a nossa estética. Somos convidadas por Jesus a olhar para quem nós somos, para a nossa própria identidade e amá-la em Cristo, portanto, que a comunidade cristã possa ser um ambiente que procura caminhar ao nosso lado na luta contra os estereótipos que são imputados a nós pela sociedade que excluí a mulher preta e pobre, e tantos outros grupos minoritários.

Que a Igreja de Cristo possa ser um espaço de inclusão e de amor, semelhante ao que Jesus nos ensinou, que nós mulheres negras também possamos ajudar para tornar isso real, seja promovendo debates sobre cristianismo, racismo e estética em nossas comunidades de fé ou grupos missionários, seja falando de racismo na EBD para as crianças, seja participando de grupos de militância negra ou até criando projetos pessoais.

Há quase três anos criei junto com uma amiga, também cristã o Por Mais Turbantes Nas Ruas. O projeto busca a partir da Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino de cultura afro-brasileira e africana nas escolas, promover discussões sobre empoderamento, racismo, representatividade e identidade negra. O que fazemos é muito pouco frente a necessidade emergente de empoderar nossas crianças pretas, incentivando-as a se amarem e se aceitarem.

Um exemplo claro disso foi quando em uma oficina contando história sobre uma princesa negra, convidamos uma aluna negra, gorda, para ser a protagonista, ela não quis, ficou no cantinho se escondendo; a gente chegou mais perto, conversou, insistiu, mas ela não quis. Lembrando dessa experiência penso que talvez ela não tenha ido não só porque era tímida e tinha vergonha, mas talvez, principalmente, porque ela não se via naquele papel, naquele espaço, ela não parecia com nenhuma princesa que conhecia, não podia então ser princesa.

Meu desejo é que meninas negras, adolescentes negras, mulheres negras, reconheçam que são lindas, que sua pele, seus lábios, seus olhos, seus cabelos são lindos, foram feitos pelo o próprio Deus, Ele fez tudo parecido com Ele, Ele fez e viu que era bom. Saber disso acalma as minhas dores, me dá paz, me deixa feliz.

BIBLIOGRAFIA

CARNEIRO, Sueli. O negro na TV pública – Descontruindo narrativas colonizadas. In: ARAÚJO, Joel Zito (org). O negro na TV pública. Brasília: FCP, 2010

SODRÉ, M. Claros e escuros: Identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes,
1999.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 4ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2000.


Rita Romão, 23 anos. É mulher preta, pobre, periférica, cotista, estudante de publicidade. Amante de turbantes, de gente e de uma boa conversa.


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição institucional da ABUB, outra instituição ou de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

 

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