LUGARES DE HAGAR

Quando eu era criança, o pastor da igreja que frequentava perguntou a algumas pessoas, antes do sermão, qual seria sua personagem bíblica preferida. Muita gente respondeu Jesus, talvez com medo de desapontar o pastor e ao próprio Senhor, que estava, obviamente, de olho na sabatina. Eu respondi Paulo, para não querer soar muito óbvia, por causa, também, da rebeldia adolescente e porque, ainda muito jovem, achava a figura de Paulo uma mistura de mística com intelectualidade muito interessante. A maioria das pessoas, pelo que me lembro, escolheu ou Jesus, ou homens. Até mesmo as mulheres.

 

Acredito que hoje eu escolheria Hagar. Meu interesse se modificou a partir do meu próprio entendimento como mulher, como mulher negra e com o contato com teologias e leituras da Bíblia centradas em mulheres. A figura de Hagar é muito potente porque ela falou com Deus. Ela é uma preta que falou com Deus. Além disso é a mãe preta de uma linhagem de poderosos e teve sempre sua narrativa contada como a outra. Na realidade, a outra da outra[1], pois era aquela que não servia pra ser esposa, mas que servia para dar o primeiro filho e em seguida partir.

 

Para, como eu, escolher Hagar é preciso entender quem ela foi, sua importância e situar sua narrativa nesta África que estamos mostrando durante toda essa semana. Hagar era egípcia e foi uma mulher de múltiplas ações, poesia e lugares e queremos devolver a ela uma narrativa honesta. Porque a de escrava expulsa não é suficiente diante de toda sua grandeza. Este texto tem como referência os estudos de Salvina Teubal, sacerdotisa referência nos estudos sobre história de mulheres judias e Sarah e Hagar.

 

Hagar primeiramente tem um lugar de silêncio. Em Gênesis 16. 1-6 ela não pronuncia uma palavra. Sabemos que ela é egípcia e não hebraica e aceita sem questionamentos dar um herdeiro ao patriarca.

 

O primeiro lugar que Hagar ocupa é um lugar de uma pretensa insolência. Na sua aparição, após engravidar, o texto anuncia seu desprezo: “Ele possuiu Hagar, e ela engravidou. Quando se viu grávida, começou a olhar com desprezo para a sua senhora.” (Gênesis 16. 4)

 

Hagar não possui autoridade sobre seu destino. Ela foge e sua volta é exigida. O filho que a ela é prometido tem uma função. Durante o exílio no deserto seu filho quase morre de sede. Uma mulher com filhos sobrevivendo sozinha? A história de Hagar nos ensina sobre o conceito de agência e o destino de mulheres.

 

Um terceiro lugar que Hagar ocupa é no relacionamento entre ela e Sarah. O relacionamento de Hagar e Sarah retrata hierarquia e hostilidade entre mulheres. Hagar não é apenas subordinada a Abraão, ela também é subserviente a Sara. Isso é mais aparente no comportamento de Sarah em relação a Hagar. Embora Hagar resolva o problema da esterilidade de Sarah, Sarah aparentemente não sente nada por sua serva. Suas únicas ações em relação a Hagar são hostis e cruéis. Ela trata Hagar de forma dura e a expulsa depois que ela tem seu próprio filho. A presença de Hagar também serve para difamar Sarah. Em tempos em que discursos de competição entre mulheres são desestimulados é preciso cuidado para que tanto Sarah quanto Hagar não sofram um escrutínio nos púlpitos.

 

Também podemos nos voltar para o texto bíblico e observar quais são as mulheres tradicionalmente subordinadas nas narrativas do Gênesis, quais são os seus lugares. Elas são criadas, concubinas ou escravizadas. A expressão usada para descrever Hagar é shifhah, ela seria o shifhah de Sarah. Na Mesopotâmia antiga, bem como no Gênesis, algumas mulheres são encontradas no serviço exclusivo de uma esposa, mas não do marido da mulher. O termo shifhah, portanto, deve ser empregado apenas para uma mulher a serviço de outra mulher. Se caracterizado como shifhah ou amah (escrava), Hagar, portanto, não era a concubina de Abraão. Ser concubina imprime a perspectiva exclusivamente sexual para Hagar e nesse lugar ela não circula. 

 

Como explicar então a gravidez subordinada? É só pensar no contexto histórico e social, um patriarcalismo pautado em relações que conseguimos apenas imaginar.

 

Hagar também tinha uma descendência que foi anunciada, ela era egípcia. As mulheres desfrutaram de notável igualdade legal com os homens ao longo de grande parte da história do Egito. Embora houvesse uma separação distinta entre homens e mulheres em termos das funções públicas desempenhadas, essas funções oficiais foram relegadas aos homens parece mais uma questão de costume aceito do que um desejo consciente de manter as mulheres fora da política e do governo. A sociedade egípcia antiga era originalmente matrilinear. Mesmo em tempos dinásticos, a linha feminina era de igual importância para o homem em certos aspectos, notadamente em rastrear descendentes, heranças e elaborar um testamento. Este aspecto matrilinear será retomado por Paulo de Tarso no novo testamento.

 

Hagar também ocupou um lugar de ser protagonista de uma espiritualidade feminina. Muitas implicações resultam de suprimir esse importante fato da história de Hagar. Mais, ignora a experiência religiosa dessa mulher, sugerindo que os encontros místicos com a divindade são prerrogativas dos homens. No entanto, de acordo com as narrativas, Hagar experimenta uma epifania (manifestação) e uma teofania (revelação). Suas experiências espirituais no deserto têm implicações de longo alcance para sua história.

 

Os episódios místicos de Hagar registram a única vez na Bíblia que um deus recebe um nome, e o nome é dado por uma mulher. O deus de Hagar é um deus que a conhece e que a aborda em termos familiares: “Para onde você vai, Hagar?” ele pergunta com a terna preocupação de um parente amoroso. Hagar pode estar perdida no deserto, mas ela não está sozinha, seu protetor divino está por perto. As características de escrava ou da concubina não têm influência nas teofanias vivenciadas pela matriarca. 

 

Talvez o desserviço mais profundo perpetrado no(s) cristianismo(s) tenha sido a dissociação da mulher de sua própria experiência religiosa feminina. As matriarcas bíblicas desfrutavam de práticas rituais e experiências espirituais separadas das dos homens. Precisamos conhecê-las e elencá-las, estudá-las em nossas comunidades. A experiência religiosa pessoal é diferente para homens e mulheres. O poder, historicamente, foi atribuído a um gênero, o masculino, porém no que diz respeito à esfera religiosa, para as matriarcas bíblicas, o poder não depende do sexo, não tem uma perspectiva bélica e a natureza da experiência mística não pode ser separada de sua fonte. Mas nós conhecemos esses lugares muito pouco.

 

Hagar, em sua experiência religiosa vivenciou afeto, foi chamada pelo nome, foi perguntada, teve a possibilidade de responder, dialogar e nomear. Experiência de mulher, experiência de uma mulher preta que falou com deus.

 

Paulo de Tarso também localizou Hagar. Em Gálatas 4. 22-31 ele escreve: 

 

Pois está escrito que Abraão teve dois filhos, um da escrava e outro da livre.

O filho da escrava nasceu de modo natural, mas o filho da livre nasceu mediante promessa.

Isso é usado aqui como uma ilustração; estas mulheres representam duas alianças. Uma aliança procede do monte Sinai e gera filhos para a escravidão: esta é Hagar.

Hagar representa o monte Sinai, na Arábia, e corresponde à atual cidade de Jerusalém, que está escravizada com os seus filhos.

Mas a Jerusalém do alto é livre, e essa é a nossa mãe.

Pois está escrito: “Regozije-se, ó estéril, você que nunca teve um filho; grite de alegria, você que nunca esteve em trabalho de parto; porque mais são os filhos da mulher abandonada do que os daquela que tem marido”.

Vocês, irmãos, são filhos da promessa, como Isaque.

Naquele tempo, o filho nascido de modo natural perseguia o filho nascido segundo o Espírito. O mesmo acontece agora.

Mas o que diz a Escritura? “Mande embora a escrava e o seu filho, porque o filho da escrava jamais será herdeiro com o filho da livre”.

Portanto, irmãos, não somos filhos da escrava, mas da livre.

 

Este lugar, da escravização da divisão faz parte de uma teologia que recusamos. Entende-se que há um contexto e um desejo do autor da epístola em marcar uma diferença que seria importante politicamente para quem recebesse essas palavras à época. Mas finalizamos com um último lugar para Hagar, o lugar da recusa. 

 

Continuar estudando e escolhendo narrar Hagar é por confiar na potência de sua vida e sua história. É ter um compromisso com um projeto de recusar sempre o lugar de escravizada, de mulher usada com função sexual, de preta oprimida, mulher rival e cruel; e enxergá-la como uma sacerdotisa, aquela que nomeia e fala com Deus, alvo de promessas e mãe de nações. 

 

Portanto, irmãs, não somos filhas da escravizada, mas somos filhas da preta, da mãe de nações que falou com Deus.

 

QUESTÕES PARA REFLETIR

 

  1. Você já parou para pensar que na narrativa sobre Sarah e Hagar existe um destaque nos aspectos mais cruéis facultados às mulheres? Competição, inveja, ciúmes. Como recontar essa história excluindo essas violências?

 

  1. Reflita nas experiências religiosas das mulheres da Bíblia. No que elas diferem das dos homens e como elas podem nos ensinar sobre um relacionamento com o divino a partir do feminino? O que ganharíamos ao observar essas práticas e adaptá-las às nossas vivências?

 

  1. Pense sobre os lugares que Hagar ocupava. Quantos deles eram lugares confortáveis, poderosos, importantes? Quantos desses lugares estão reservados para mulheres negras nos espaços de fé hoje?

______

[1] Ser “a outra da outra” dialoga com o conceito da mulher negra como o “outro do outro” de Grada Kilomba. Sara seria a outra de um homem, por ser mulher e Hagar, a outra da outra, por ser uma mulher negra.

Referências

TEUBAL, Salvina. Ancient Sisterhood: The Lost Traditions of Hagar and Sarah. Swallow Press, 1997.

TEUBAL, Salvina. Hagar the Egyptian: The Lost Tradition of the Matriarchs. HarperCollins, 1990.

 


Autora: Paloma Santos


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.