O Gênero, as mulheres, os homens e a criação

A discussão acerca das relações entre homens e mulheres sempre foram objeto dos vários campos do conhecimento ao longo da história. Nos anos 1960 e 1970 os debates avançaram muito no campo das ciências sociais, de forma simultânea à emergência de vários movimentos sociais contestatórios. Nesse ambiente é que se formulou uma nova categoria de análise que foi chamado de sistema sexo/gênero. A categoria de gênero, se tornou fundamental para questionar a naturalização das diferenças, pensar novas relações entre homens e mulheres e novas estruturas de poder na sociedade.

Entretanto, vale dizer que não foi esse conceito que fundou os movimentos de mulheres, esses têm origens históricas anteriores à elaboração do conceito de gênero, e se constituiu a partir de ideias mais antigas de liberdade e igualdade universais. Creio que esse comentário inicial é importante para dizer que a ideia de gênero ajuda a explicar como se organizam as relações entre os sexos na sociedade, mas os movimentos engajados com a emancipação das mulheres o fazem ancorados em uma profunda noção de igualdade e liberdade, que é o que permite uma ação de justiça.

 

Mas o que quer dizer sistema sexo – gênero?

O sexo de um indivíduo é determinado por um conjunto de características biológicas de origem genética. A partir dessa soma de variáveis biológicas normalmente se identificam já no nascimento quem são os homens e quem são as mulheres. Quando falamos em gênero estamos nos referindo àquilo que conhecemos por masculino e feminino. Ou seja, um conjunto de características culturais e atribuições sociais do que significa ser mulher e homem, convencionadas socialmente e que sofrem variações de uma cultura à outra e ao longo da história.

O que é nomeado como feminino na nossa sociedade está associado à sensibilidade, afeto, doçura, cuidado, delicadeza, ao universo emocional, e tudo mais conectado ao mundo privado. Enquanto o masculino remete a valores como coragem, bravura, destreza, força, razão etc, elementos imprescindíveis para a presença e atuação na esfera pública majoritariamente ocupada pelos homens.

Quando falamos em gênero, nos referimos, portanto, a uma categoria de análise que nos ajuda a entender as relações entre homens e mulheres, e que o lugar de ambos na sociedade não vem determinado por nossa genética, mas sim por um conjunto de atribuições socialmente construídas.

Essa categoria surgiu da observação de que nosso lugar social como homens ou mulheres não é resultado de uma característica biológica, mas sobretudo um conjunto de ensinamentos sociais e culturais acerca do feminino e do masculino.

A francesa Simone de Beauvoir afirmou que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”¹. Com isso ela explicava que a biologia é usada para justificar para o lugar social das mulheres, e questiona esse determinismo, explicando que o que organiza as relações são as convenções do que é ser mulher ou homem e que, portanto, pode ser questionado.

 

Mas isso é um problema? Será que não coloca um pouco de ordem nas coisas não?

A questão é que essa divisão não corresponde a um simples reparto de atribuições, mas vem carregada de valores. O que é masculino – e todo o processo de socialização dos homens – os habilita a atuar no espaço público: na política, no mundo do trabalho, nas ruas e na religião são os detentores do poder e da palavra, na universidade, no exército… ou seja, todas as instituições socialmente valorizadas estão diretamente associadas aos homens como grupo social.

Por outro lado, as atribuições femininas estão mais associadas ao mundo doméstico, à procriação, às profissões de cuidado, às habilidades manuais, ou seja, tudo o que não é reconhecido como de interesse coletivo e portando de responsabilidade privada ou familiar, ou aquilo que quando faz parte do universo público, como certas profissões, é desvalorizado sendo mal remunerado ou sofrendo uma precarização dos seus direitos.

 

Ah mas isso foi antigamente, agora as mulheres já fazem as mesmas coisas que os homens

Se bem é verdade que houveram muitas mudanças nas relações sociais de sexo, e em especial no comportamento das mulheres, também é real que as barreiras da desigualdade não foram removidas, só trocaram de lugar. De um lado, a esfera privada e seus valores foram parcialmente incorporadas ao universo público (vide todo o discurso de inteligência emocional no universo corporativo) mudando assim de sentido, por outro isso não aconteceu como resultado de uma ideia de ampliação da liberdade. A desigualdade ganha novos contornos por exemplo no crescimento da mercantilização dos corpos femininos, na precarização do seu trabalho, na violência contra as mulheres etc, e poderíamos seguir a lista….

Isso acontece porque há um sistema de organização social que se apoia nas desigualdades entre homens e mulheres chamado patriarcado. Patriarcado é, assim, uma estrutura de poder masculino que incide sobre as mulheres tanto individual como coletivamente.

 

¨à imagem de Deus os criou, Homem e Mulher os criou¨ (Gênesis 1:24-31 , 2:4-25 , 3:1-24)

Por muito tempo se acreditou que os primeiros capítulos do Gênesis tivessem sido a primeira parte a ser escrita na Bíblia. E, sim, é verdade que são manuscritos muito antigos, mas está provado que sua redação talvez tenha sido das últimas do Pentateuco. Nessa época (séc.VI a. C.), os judeus estavam a um passo de aceitar a religião babilônica, e necessitavam de princípios claros que os ajudassem a atravessar aquele momento difícil. Havia um ambiente de desconfiança generalizado que chegava até Deus a partir de uma ideia de que Ele era o responsável pelos males do passado e do presente.

Nessa linha, o texto tentava deixar claros alguns princípios, explicando que não era Deus o responsável pela injustiça e males do mundo, ao contrário, que Ele havia criado tudo com uma noção tão grande de harmonia que não havia nenhum propósito negativo em seu plano. Mais do que descrever a Criação, o texto está preocupado em mostrar as intenções de Deus para com a sua obra.

O modelo de Deus desde o Gênesis não é de dominação, mas de amor e zelo mútuos. Ele cria um conjunto harmônico no qual a mulher e o homem também têm responsabilidades no cuidado dessa obra. Deus cria a humanidade a sua imagem e semelhança, para administrar sua obra; os cria como homem e mulher, para fazê-lo em igual responsabilidade. A imagem e semelhança de Deus existe, dessa maneira, de forma relacional, na diversidade da humanidade.

Adão e Eva não só foram criados à mesma imagem e semelhança como foram igualmente envolvidos na mesma benção: os dois eram importantes. Mesmo em Gênesis 2, o valor de inter-relacionar está presente: no versículo 18, a ideia de ajudadora correspondente não remete à ideia de submissão como insistimos em dizer.  “Ajudante”, “auxiliar”, ou mesmo a ideia de ajudar e socorrer é empregada para o auxílio aos miseráveis e destituídos. A mesma expressão é usada com frequência no Antigo Testamento para falar de Deus trazendo ajuda para o seu povo.

Embora os discursos nem sempre expressem essa visão de que as mulheres são inferiores, na prática é isso que a maior parte das igrejas incorpora. Esse modelo apresenta uma visão que não é necessariamente bíblica, ao contrário nos provoca a pensar que esteja contra o plano de Deus para a criação. Teria Ele criado o mundo para que houvesse uma hierarquia entre suas criaturas? Ou para uma dinâmica relacional e coexistente?

Uma reflexão importante a partir do texto é pensar que os papéis de gênero, o trabalho para os homens (3:18-19) e a subjugação e procriação para as mulheres (3:16), são instituídos a partir do cosmos caído. Com a queda, o pecado entrou no mundo e também nas relações pessoais e sociais. O pecado rompe as relações entre as pessoas (3:7 e 12), das pessoas com Deus (3:11 e 24), e inaugura as estruturas injustas (3:17-19). O pecado impede que experimentemos uma vida na presença de Deus ao estabelecer relações de poder e hierarquias entre as pessoas.

O sexismo e o patriarcado excluem as mulheres da comunhão humana e eclesiástica e por isso são um pecado coletivo contra as mulheres e contra Deus. Várias mulheres, teólogas ou não, têm usado uma perspectiva de gênero como uma lupa para olhar de perto nossa vivência da espiritualidade cristã e descobrir dimensões que requerem discernimento e mudança, para que essa espiritualidade seja mais fiel ao Espirito da vida.²

É essa fala profética que hoje nos ajuda a pensar como as tradições cristãs foram empobrecidas ao longo dos séculos pela ausência das mulheres e nos desafia a viver uma fé plena, que olhe para o conjunto da criação.

¹ BEAUVOIR, Simone O segundo Sexo.
² BEDFORD, N. La porfía de la Resurrección. Capitulo 6: La espiritualidad cristiana desde una perspectiva de género.

Referências:

-BEDFORD, N. La porfía de la Resurrección. Capitulo 6: La espiritualidad cristiana desde una perspectiva de género.
-Haubert, K  A mulher é inferior? In A mulher na Bíblia.
-Kurz,R. O eterno sexo fragil.
-La Bíblia de Nuestro Pueblo. Texto: Biblia del Peregrino: Luis Alonso Achökel. Comentários: Equipo Internacional. (2009) Ediciones Mensajero
-Bíblia Tradução Nova Versão Internacional

 


Sarah de Roure foi parte da Aliança Bíblica Secundarista e depois da Aliança Bíblica Universitária até 2005. Historiadora de formação, é militante da Marcha Mundial das Mulheres e atualmente trabalha para a organização britânica Christian Aid.


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

Atualizado em 22/12/12017

7 thoughts on “O Gênero, as mulheres, os homens e a criação

  • 5 de novembro de 2015 em 14:42
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    Que ESPETÁCULO! Há muitos esperava por um texto assim! AMEI! Queremos mais!

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  • 5 de novembro de 2015 em 19:16
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    Parabéns Sarah. Belo texto e reflexão, mas não poderia deixar de realizar algumas considerações, se me permite: (1) há de se ter cuidado com todo argumento que tende a radicalizar qualquer defesa. Dizer que os papéis são dados exclusivamente por construções sociais é pecar contra a obviedade daquilo que se manifesta em meu corpo e no seu. O fato empírico da “gestação”, por exemplo, e a gama de contingências de primeira ordem ligadas a ele, não é uma construção social. Nesse sentido, o aspecto biológico deve sim ser considerado nas discussões, que nem por isso, isentará o homem da co-responsabilidade (bônus e ônus), jamais! A indiferença desse dado é inclusive a promoção de uma sexualidade masculina caída. (2) Vou pular as críticas ao existencialismo (Beauvoir) são muitas e já superadas naquilo que apregoa de liberdade incondicional. Fica a sugestão a leitura do artigo de Isaiah Berlim sobre liberdade negativa e positiva que encerrou essa discussão no âmbito da filosofia e que alega um monte de implicações no ordenamento social e no âmbito da justiça formal. Somente as ciências sociais ainda pensam nisso, porque afinal de contas, há uma massa a ser alimentada pelo que parece quase autoajuda. (3) Há estudos de psicologia experimental e tese evolucionária que sugerem traços distintos entre os gêneros observados ainda nos primeiros meses da criança. Foi realizada uma pesquisa na Noruega, tido como o país mais igualitário, que pode ajudar nesse sentido. O problema é quando isso se torna desculpa para excluir e tal desculpa não ocorreu somente no caso de mulheres. (4) Outra questão é que o “cuidado” é tido como traço distintivo da ação feminina sobre o mundo e considerado por muitas feministas. Disso surgiu a única teoria da justiça com papel preponderantemente feminina na história do pensamento que é a “ética do cuidado” (A. Jaggar; A. Nye; R. Tong; J. Charvet). Há críticas no modo como ele se realiza, mas não sobre sua base. Se as mulheres não estão “cuidando”, pode ser pq já assumiram uma indiferença própria da queda, na qual reconhecem somente nos homens. (5) sobre o que se chama erroneamente de ‘patriarcado’ sugiro ler Eva Illoy. Dizer que é patriarcado é desconsiderar a engrenagem minimamente necessário para ao funcionamento das famílias humanas, observadas também em primatas maiores. As sociedades isoladas como índios nos ajudam muito a pensar sobre isso. O que é o patriarcado quando se tem somente que realizar a manutenção mínima da vida quase que somente biológica? Leve isso para as primeiras sociedades (6) “Adão e Eva não só foram criados à mesma imagem e semelhança como foram igualmente envolvidos na mesma benção: os dois eram “importantes”. Verdade. É isso aí. Mas nem, por isso, deixaram de ter ‘tarefas’ diferentes. “Sede fecundos e multiplicai” e disso originaria um monte de diversas tarefas ao humano (eva-adão). A família é antes do Estado e às vezes esquecemos disso. (7) Sim, a igrejas precisam falar sobre isso, mas não poderá ser nos mesmos termos da sociedade secularizada. O ponto de partida diferente faz chegar em lugares diferentes.

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  • 20 de julho de 2016 em 22:07
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    Confesso que fiquei assustada com a falta de comentários indo contra ao que foi escrito e até mesmo um chamado das moças mais velhas da igreja pela qual são membras.
    Moças, com todo carinho, vocês se desvirtuaram veemente do que dizem as escriturass oO Com falas sutis, quer dizer, sutis não…vocês apoiam o feminismo, o qual é contraditório à fé que dizem professar.

    “… o lugar de ambos na sociedade não vem determinado por nossa genética, mas sim por um conjunto de atribuições socialmente construídas.” Oi? Vocês estão afirmando que aquilo que somos ” sensibilidade, afeto, doçura, cuidado, delicadeza, ao universo emocional” foi colocado pela sociedade e não pelo próprio Deus? Moça, você está indo contra a própria criação( Que por sinal, é maravilhosa) e dizendo que isso é mera construção social? Quanta blasfêmia :/ E ainda dizendo que a construção social foi feita por homens? Patriarcado? Sugiro que estude tanto a bíblia como história de forma mais profunda. Me recuso a acreditar que um bom estudo faça alguém nutrir ideias tão contraditórias.

    Agora, você parte meu coração. Você cita nada mais do que Simone de Beauvoir “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”… Oi? Deus não cria homens e mulheres? Se você for nessa linha você defende também o homossexualismo, afinal, alguém com genitálias masculinas, pode tornar-se mulher e vise-versa. Você está defendendo a mesma mulher que disse frases como “Era-me mais fácil imaginar um mundo sem criador do que um criador carregado com todas as contradições do mundo” e Não são as pessoas que são responsáveis pelo falhanço do casamento, é a própria instituição que é pervertida desde a origem. Simone,possuia amantes, era adepta da poligamia, simpatizante do comunismo e atéia…

    “Por outro lado, as atribuições femininas estão mais associadas ao mundo doméstico, à procriação, às profissões de cuidado, às habilidades manuais, ou seja, tudo o que não é reconhecido como de interesse coletivo e portando de responsabilidade privada ou familiar, ou aquilo que quando faz parte do universo público, como certas profissões, é desvalorizado sendo mal remunerado ou sofrendo uma precarização dos seus direitos.” Oi ? Que? Moça, você desvalorizou uma dona de casa. Não adianta dizer que não. Você simplesmente passa para papel de juiz e qualifica o que é trabalho digno ou não. Como se ter filhos e educar cidadãos direitos fosse inútil… vai entender.

    Quem disse lhe disse que patriarcado é anti bíblico? Anti bíblico é um homem destratar sua mulher e filhos, abandoná-los, usar sua força para oprimi-los…isso é anti-bíblico. Igualdade é perante Deus e não na divisão de papéis.

    Ah, moça….oro por vocês e para que Deus traga juízo sobre a divulgação de pensamentos errados e distorção de sua palavra. Que o Espírito Santo traga iluminação ao conhecimento desse projeto.

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