Pelos frutos conhecereis | Entrevista com pastora Silvia Nogueira | PARTE 2

Entrevista: Luciana Petersen

Finalizando a campanha #Eklesia, tive o prazer de conversar com a pastora Silvia Nogueira, oficialmente a primeira pastora da Convenção Batista Brasileira.

Nessa entrevista, que dividiremos em duas partes, ela nos conta mais sobre o reconhecimento comunitário de sua vocação, reações institucionais contra sua ordenação, as alegrias e lutas do ministério pastoral exercido por mulheres.

Mais do que uma entrevista, me senti imensamente pastoreada e acolhida pelas palavras da pastora. Como filha de pastor batista, foi muito significativo conhecer pela primeira vez uma mulher que ocupa um espaço que desde pequena me disseram ser exclusivamente masculino.

Agradeço pastora Silvia pela conversa e principalmente pelos caminhos desbravados, para que hoje tantas mulheres consigam dar um nome à sua vocação pastoral e abençoar a Igreja com tais dons dados por Deus.

LEIA A PARTE 1 DESSA ENTREVISTA CLICANDO AQUI

 

Continuação da entrevista

É uma espécie de esquizofrenia discursiva que a gente tem, sobretudo entre os batistas, em que a presença e liderança feminina é tão forte com a vida das missionárias, com as mulheres líderes da União Feminina… são figuras fortíssimas na vida das igrejas locais e da denominação. Ainda assim, a gente tem um duplo discurso, meio esquizofrênico. Valorizamos muito a vida das missionárias – pelo menos discursivamente, não tanto financeiramente – admiramos e tudo mais, mas existe um limite dessa atuação de liderança feminina que é suportável para essas pessoas. Na minha opinião são pessoas que ainda precisam se converter, nessas questões em particular. Em geral quando elas são machistas elas são também racistas, esses ódios caminham juntos. Não aceitam a figura de alguém que eles consideram inferior estar acima deles, mesmo que simbolicamente. Então a figura de uma pastora é abominável, a figura de um negro em posição de liderança é abominável.

Enfim, uma foi a reação desse tipo de gente e a outra foi a reação das lideranças institucionais. A parte mais difícil de lidar foi, sem dúvida nenhuma, com as reações violentas dessa galera. Mas a parte com maior peso e consequências sobre a minha vida e a vida da igreja foi obviamente a reação das lideranças institucionais. Estou falando da Convenção Batista do Estado de São Paulo, a Associação Batista do Ferreira – que regionalmente era onde a igreja estava, bairros da periferia da Zona Sul de São Paulo – e da reação da Ordem dos Pastores de São Paulo.

Quando saiu a publicação do Concílio, elas começaram a mandar cartas. Sobretudo a  Associação Batista do Ferreira, uma das primeiras cartas repudiando a convocação do meu Concílio. Depois recebemos carta da Convenção Batista do Estado de SP com o mesmo conteúdo, depois recebemos carta da Ordem dos Pastores da secção regional também com o mesmo conteúdo, depois recebemos carta da Ordem dos Pastores do Estado de SP com o mesmo conteúdo. Até porque, se eu não me engano, o mesmo que era presidente da Convenção de SP era presidente da Ordem de SP, o pastor José Vieira Rocha. Então o teor era de repúdio e obviamente ameaça de desligamento da igreja das instâncias denominacionais. Mas em nenhum momento no conteúdo geral dessas cartas havia a explicitação clara do motivo do desligamento. Até porque quando a igreja foi de fato desligada da CBESP, se você ler a ata pública, que saiu inclusive no Jornal Batista do Estado de SP, você não vê o motivo do desligamento de forma clara. Claro que isso foi um cuidado que eles tiveram para evitar uma série de outras possibilidades. A gente não faria nenhum apelo judicial, mas eles ficaram preocupados com isso e, portanto, evitaram ser claros exatamente.

Seja como foi, a gente sofreu bastante pressão, de gente ligando para membros da igreja dizendo que perderíamos o templo da igreja; pressão sobre o pastor Antônio Carlos, que estava deixando a igreja mas estava acompanhando todo o processo até o final. Quando houve o concílio, tivemos em torno de 200 pastores, o pastor Vieira Rocha, os representantes da Ordem dos Pastores de SP foram até a igreja no dia, na tentativa de evitar a realização do concílio. Além das cartas, o gesto negativo em relação à minha ordenação aconteceu também com a ida desse grupo expressivo de pastores, capitaniados pelo pastor Vieira Rocha, para impedir que a igreja realizasse o concílio.

Fizemos então uma consulta com os pastores presentes, porque nesse grupo tinham pastores do interior de SP, da capital e um ou outro pastor de fora do estado de SP. No calor das discussões que foram seguindo, a gente precisou fazer uma consulta entre os presentes para ver quem estava ali para atender a convocação da igreja. A resposta foi que apenas 17 pastores estavam ali dispostos a fazer o meu exame.

Diante disso, o pastor Antônio Carlos solicitou a retirada dos outros pastores do templo da igreja e pediu aos 17 que tinham disposição em fazer o concílio permanecessem – é importante dizer que esses 17 pastores não eram necessariamente favoráveis. Mais tarde os pastores que saíram alegaram que a igreja “violou” o acordo que havia feito com os pastores presentes de não realizar o concílio. Não é bem assim, na verdade a consulta foi para perguntar, já que eles eram convidados à realização do concílio, quem estava disposto a fazer isso.

Ainda naquele dia, fui examinada por esse concílio. O presidente era um pastor da igreja da Pompéia. Fui examinada e aprovada por unanimidade por esse concílio. No 10 de julho recebi, então, a consagração e tomei posse como pastora titular da igreja. Na semana seguinte, a igreja foi desligada da Associação Batista do Ferreira, o motivo não foi muito claro, mas de que a igreja estava em desvio doutrinário. Na sequência, fomos desligados da Convenção Batista de São Paulo.

A gente acreditou que ali terminavam os impasses, mas é claro que não [risos]. Como foi tudo muito público – porque tem muitas pastoras vivem em comunidades fora de holofotes, quietinhas e esses impactos não são muitos visíveis – mas como nosso caso tinha ganhado repercussão nacional, sobretudo em São Paulo, os anos do meu ministério lá foram muito difíceis. Foi extremamente difícil por conta das reações externas, das lideranças institucionais e, por ser uma igreja relativamente antiga com membros ativos a nível denominacional, eles também eram muito assediados e questionados sobre minha presença lá. Foi muito desgastante para a vida da igreja, que na minha opinião é uma das igrejas mais corajosas e queridas que alguém poderia desejar participar, mas que foi uma igreja que sofreu bastante, assim como eu, as pressões do dia a dia e tensões externas.

A gente achou que tinha terminado ali, mas – porque o mal não dorme – na sequência eu recebi um telegrama da Convenção Batista Brasileira, que tem sede no Rio de Janeiro, dizendo que haveria uma reunião do Conselho e o assunto dessa reunião era o desligamento da Primeira Igreja Batista do Campo Limpo do rol das igrejas da Convenção Batista Brasileira. Na mesma hora eu liguei para a CBB, na época o presidente da Convenção era o pastor Fausto Vasconcelos, da PIB do Rio de Janeiro. Falei com a secretária dele, a Heliete, para confirmar as informações, e ela confirmou que haveria a reunião 4 dias depois da chegada do telegrama e de fato o assunto era o desligamento da igreja de Campo Limpo.

Não tenho nada contra o pastor Fausto, mas a gente tem um certo ranço de lidar com determinadas situações. Ele não me conhecia, nem eu o conhecia, só de nome. Ele não estava debruçado na questão com a voracidade que eu estava, porque eu era parte mais fraca do negócio. Eu estava indo pra cima na nossa conversa como alguém que exige direitos e justiça.

Nossa conversa não foi desrespeitosa em nenhum momento, mas foi uma conversa firme. Ele percebeu a firmeza naquilo que eu estava pedindo: se o assunto é o julgamento da Igreja de Campo Limpo, então que fosse dada a oportunidade à igreja de dizer o que aconteceu, ser questionada, que não fosse uma decisão sumária de exclusão sem ouvir a igreja. De tanto insistir, ele falou que levaria minha solicitação a seus pares e depois me telefonou dizendo que haveria uma comissão, composta pelo relator, que eu não me recordo o nome mas era do Seminário do Sul, juntamente com o presidente da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil e a Marlene, representante da União Feminina. Marcaram o dia da visita dessa comissão à igreja e a reunião do conselho para desligamento foi suspensa.

Eu tinha a compreensão de que era importante guardar o máximo que pudesse de registro dessa história. Então eu fiz um dossiê de todo o processo, desde as primeiras cartas oficiais que fomos recebendo, nossas respostas e tudo mais, fiz uma pasta bastante grossa.

Quando foi umas 18h eles chegaram na igreja. Mas eu não estava sozinha na igreja. Como eu já tinha colocado essa conversa para a liderança e depois para a igreja, no dia que foi marcada a visita a igreja estava em peso lá. Eles levaram um susto quando viram isso, acharam excessivo inclusive. Mas você que ouviu a história sabe que faz sentido que a igreja, que tomou essa decisão corajosa, estivesse presente em todos os momentos em que isso fosse questionado.

Da comissão estavam o relator e uma outra irmã da União Feminina, que ficaram para ouvir a igreja. Então eles foram fazendo as perguntas, eu fui respondendo – com a minha pastinha escondidinha lá do lado – até que em um belo momento o relator fez a seguinte pergunta: “Se foi isso tudo (nós já ouvimos a Convenção de São Paulo), por que vocês estão tão preocupados com o desligamento da igreja?”. Aí eu abri a pasta e mostrei pra ele: “Porque nós recebemos um telegrama dizendo que a igreja seria desligada”, e mostrei o telegrama. Quando viu o telegrama, ele disse: “Então não tenho mais perguntas”.

Então eles saíram e ficaram de dar o relatório dessa conversa na Assembleia da CBB em Manaus, em janeiro de 2000. Fui a Manaus com mais quatro irmãos da igreja, chegando lá procurei o pastor Fausto, me apresentei e perguntei qual tinha sido o resultado do relatório, se a gente precisaria se pronunciar na assembleia para alguma coisa. E aí foi interessante que ele respondeu: “Não se preocupa não, tá tudo certo!”. Aí eu fui até o pastor que era relator da comissão e ele disse a mesma coisa. O relatório passou e a igreja permaneceu arrolada à Convenção Batista Brasileira, como é até hoje. É uma igreja que acabou fazendo que a própria Convenção reiterasse a autonomia da igreja.

E aí, ficamos. A igreja hoje é uma igreja que de vez em quando tenho notícias. Infelizmente não pude ficar muito tempo com eles porque adoeci. Dificilmente acho que uma outra pessoa na minha posição não adoeceria com aquilo que foi vivido. Na época eu tinha 30 anos e não estava preparada para o revés dessa violência simbólica que a gente sofreu, e eu sofria junto com a comunidade. E todo mundo nos primeiros ministérios erra em alguma coisa, e eu não fui diferente. A pressão externa sobre essa situação de afirmação de uma decisão vocacional comunitária foi muito desgastante e eu adoeci severamente e tive que deixar o ministério pastoral lá. Mas é uma igreja muito amada. É muito bonito, há uns 3 ou 4 anos eles fizeram um painel com a foto de todos os pastores e minha foto estava lá, eles me tratam com muito carinho e respeito até hoje.

Mas eles sofreram, eu sofri, essa foi na verdade a maior consequência da reação institucional sobre nós. Isso também construiu em mim outras sabedorias que são importantes nesse momento e que divido com outras mulheres, inclusive em liderança. Procuro ter uma pastoral bem engajada nesse sentido, não só no sentido da preocupação com as periferias, com os mais necessitados, mas o meu olhar em relação à questão de gênero foi impregnado desses aprendizados durante o processo que eu vivi em Campo Limpo.

Quando eu voltei para o Rio de Janeiro, fui capelã durante 1 ano e meio na Universidade Rural do Rio de Janeiro, em Seropédica. Depois disso, me engajei na educação teológica como professora e diretora de Seminário na região da baixada fluminense. Minha presença na baixada fluminense, na educação teológica, influenciando homens e mulheres em formação mas também pregando nas igrejas da periferia, foi naturalizando minha presença e a possibilidade dessa figura pastoral feminina, ou do ministério exercido por mulheres. Eu não gosto do termo “ministério pastoral feminino”, acho que soa como se o ministério pastoral exercido por mulheres fosse um ministério pastoral do “jeitinho feminino”. Na verdade ministério pastoral é ministério pastoral, exercido por homens ou mulheres. Eu prefiro assim.

É claro que nem tudo são flores. Desde 1999 a gente está vivendo uma reação conservadora bastante forte, e não tem como nem supervalorizar nem menosprezar tudo que a gente viveu em Campo Limpo como se não fosse um elemento importante para essa reação conservadora. Por exemplo, em São Paulo foi criada uma “Ordem dos Pastores Clássicos”, de pastores que criticam a Ordem dos Pastores Batistas, acham que eles estão fugindo da palavra porque muitos hoje são favoráveis ao ministério pastoral exercido por mulheres.

É importante dizer que essas pessoas, quando têm possibilidade de falar desse assunto, chamam o ministério pastoral exercido por mulheres de heresia, assim como consideram que essas mulheres estão em pecado. No Rio de Janeiro também existe algo parecido, uma frente conservadora que tem como uma de suas bases a aversão ao ministério pastoral exercido por mulheres. Então vemos pipocando aqui e ali reações conservadoras organizadas.

O número de pastoras aumentou significativamente nesses 18 anos. Hoje somos 308 pastoras batistas no Brasil todo, segundo um mapeamento que acabou de sair da pastora Zenilda Regiani Cintra. Isso só entre as que a gente conhece, porque há ainda as que ainda não se deixaram conhecer. Há um crescimento grande no número de ordenações, muitas delas já nos moldes do que agora é solicitado pela tradição batista. Não temos nenhum pronunciamento da Convenção Batista Brasileira que interfira no processo da ordenação, masculina ou feminina. A CBB já decidiu que isso é uma decisão da igreja, ela decide quem quer como pastor. A Convenção já bateu o martelo nisso quando afirmou a autonomia da igreja nessa questão.

O que nós temos hoje de reação institucional clara, na esteira dessa reação conservadora, foi a mudança na forma de conciliar candidatos ao ministério da palavra. Só mesmo quem acompanha e tem posse dos documentos pode perceber que essa mudança aconteceu. Com a justificativa oficial de que os exames eram muito fracos eles mudaram a forma de conciliar, afunilando o processo e criando situações que, se a gente for pensar na questão das mulheres, vai percebendo um impeditivo a mais para que esse concílios aconteçam de forma frequente.

Vou te dar só um exemplo: um dos critérios agora é que tem que ter pastores com carteirinha da Ordem de Pastores Batistas do Brasil, e carteirinha com anuidade em dia. Estou falando isso porque pastor batista é pastor batista independente de ser filiado à Ordem ou não, mas nos novos critérios conciliares agora ele tem que ter carteirinha. E não apenas ter carteirinha, mas ter carteirinha em dia. Parece uma bobagem, mas tudo isso vai dificultando o processo das candidatas, porque se é difícil a gente conseguir juntar 7 pastores para examinar um candidato masculino, imagina juntar 7 pastores para examinar uma candidata mulher, pastores que atendam esses dois critérios, que não são tão horrorosos assim mas acabam dificultando o processo, entre outras coisas na forma de conciliar.

Isso é muito interessante de ser analisado, é um caso quase socio-religioso, um case. Porque ao mesmo tempo que você tem decisões aparentemente favoráveis e de avanço, você tem medidas de retrocesso. Por exemplo, foi decidido em uma das assembleias da Ordem que estaria no estatuto da Ordem a descrição “pastores e pastoras”. Isso é uma coisa boa? Sem dúvida nenhuma! É a naturalização de um processo e inclusão da presença de pastoras no meio batista. Do dia que foi decidido isso até hoje, levou-se um tempo imenso até que essa decisão fosse incluída no estatuto que está no site da OPBB e no Livro do Mensageiro, dos pastores.

Então ao mesmo tempo em que as matérias vêm para o plenário, os pastores que são favoráveis ao ministério pastoral exercido por mulheres se manifestam e as decisões tomadas em assembleias são a favor do ministério, até elas serem práticas na vida e nos documentos oficiais da denominação, leva o tempo que eles querem que leve. Chega ao ponto de serem revistos e não chegarem nem a ser publicizados. Há estratégias conservadoras que acontecem junto com as decisões de avanço.

Você citou a questão de que agora tem estados do Brasil que aceitam a ordenação feminina, outros lugares que não… Não é uma questão da igreja poder ou não ter uma pastora, isso é a igreja que decide, não é o problema. O que cada estado precisava decidir é em relação a cada secção da Ordem dos Pastores a nível estadual, se elas vão aceitar a filiação de pastoras ou não. Por exemplo, aqui no Rio de Janeiro temos duas secções importantes: a da Ordem carioca e a fluminense. As duas decidiram pela filiação de pastoras, então em termos de decisão legal não há problema nenhum. Mas isso não significa que as candidatas ao ministério pastoral no RJ consigam realizar seus Concílios nos moldes que a Ordem quer para filiação, porque às vezes os colegas pastores não se mobilizam para estarem, por exemplo, nos Concílios.

Às vezes naquela região onde a igreja da candidata está só tem pastores contrários, eles não vão ao concílio. Então não realiza concílio. Se não realiza concílio, ou realiza com cinco ou seis pastores, não atende aos critérios da Ordem e elas não podem ser filiadas mesmo que o estado seja favorável a isso.

É claro que existem sim pastores que têm apoiado e realizado Concílios no estado do RJ. Aliás, o Rio de Janeiro é o estado que mais ordena mulheres, por conta desse grupo favorável que tem participado sim. Existem certas resistências, mas precisamos lembrar que há um grupo que tem realizado Concílios.

Hoje, nossa leitura é que temos aparentemente um avanço por conta dessas decisões. Muitos estados não votaram, alguns votaram contra a filiação, assim como temos estados que votaram a favor. É uma esquizofrenia institucional que a gente vive. Então a gente tem isso ao mesmo tempo que tem uma realidade que é resistente à nossa presença e à realização de concílios nos atuais critérios da Ordem de Pastores, justamente para que não haja filiação mesmo. Essa é a única leitura que eu posso fazer desse momento que a gente tá vivendo.

Eu e a pastora Zenilda Regiani Cintra, que hoje está em Brasília, estamos há uns 4 anos articulando esse grupo de pastoras que nós conhecemos na tentativa de a gente primeiro se apoiar nesse processo, para que a naturalização da nossa presença aconteça, dar fortalecimento ao dia a dia das colegas e ao mesmo tempo possibilitar que as candidatas ao ministério pastoral possam ter concílios que atendam o critério da Ordem e, portanto, possam ser filiadas nos estados em que isso é possível. Então a gente tem um cenário denominacional bastante ambivalente, em que duas realidades existem ao mesmo tempo, numa esteira de ondas conservadoras a nível mundial, que infelizmente os batistas adoram. É um momento de resistência.

Para favorecer essa visibilidade e fortalecer umas às outras, Zenilda e um grupo de pastoras idealizou o Congresso Brasileiro Eu Disse Sim. Esse ano vai ser no CIEM, simbolicamente uma casa de formação especialmente para moças. Não para ser pastoras, claro, para serem missionárias, cuidarem de crianças e tudo mais. Vamos realizar lá em setembro o nosso terceiro congresso. São congressos ainda pequenos em termos de número, específicos para quem é pastora batista ou vocacionada ao ministério pastoral. A ideia do congresso é que a gente crie uma articulação em que seja mais difícil que uma onda conservadora nos arraste nela. Ao mesmo tempo, nós já entendemos e temos dito às mulheres que o que define um pastor batista é o fato de uma igreja o reconhecer como tal.

A filiação da Ordem é legal, importante, facilitaria a vida mas não é o que legitima o ministério pastoral batista, seja de homens ou mulheres. Essa compreensão ao longo do caminho foi importante porque deu tranquilidade inclusive para que elas pudessem viver mais tranquilamente seus ministérios, sem aquele fantasma de que elas eram ilegítimas, não são. Há muitos colegas meus que não são filiados à Ordem mas são pastores batistas de igrejas batistas, então porque seria diferente conosco? A filiação à Ordem é uma coisa que estamos desejando e incentivando, mas ao mesmo tempo a gente tem dito que a legitimação ao ministerial é primeiro eclesial e depois, se a pessoa quiser, pode ser feita pela Ordem dos Pastores.

 

L: Que conselho você daria para as meninas e mulheres que se sentem vocacionadas, mesmo nesses ambientes que às vezes são tão difíceis, em meio a tantas opressões institucionais?

É sempre impactante quando a gente ouve uma narrativa como essa.

Eu sou batista desde criança, meus pais são “batistões”, como a gente chama. Eu conheço outras denominações, seus documentos e em nenhuma delas eu encontro a tranquilidade interna de pertencer a não ser aos batistas. Eu acredito nos princípios batistas da forma como eles se apresentam.

Eu não tenho nenhum tipo de problema com a denominação, nem em ser batista, eu ainda acredito no nosso modelo. Por incrível que pareça, eu sou uma pastora até bastante tradicional e sou muito feliz em me identificar como batista da Convenção Batista Brasileira.

O que a gente vê quando ouve uma narrativa como a minha e de muitas outras pessoas, homens e mulheres, narrativas doloridas em suas relações institucionais, é que o problema não é a instituição e a denominação enquanto ideia. O que a gente enfrenta são pessoas, irmãos e irmãs que ainda não compreenderam completamente aquilo deveriam compreender sendo cristãos. Infelizmente a gente dá de cara com essas pessoas que estão em cargos de liderança, tem poder de decisão sobre algumas coisas que afetam a gente significativamente. Eu acho que a gente tem orado muito pouco pela nossas eleições nas assembleias. A gente deveria fazer um movimento de oração antes das assembleias para que as decisões e eleições correspondessem um pouco àquilo que está mais próximo à justiça de Deus. Não é questão de gente capaz em termos administrativos, mas gente que seja discípulo e discípula mesmo.

Eu sou muito questionada sobre por que não me filio à Ordem, já que eu posso fazer isso. Eu digo que não vou dar esse poder a uma instituição que meu relacionamento institucional com ela – não com seus membros, mas com suas lideranças – não é um relacionamento que reconhece onde errou. Acho que no dia que a Ordem dos Pastores reconhecer que é uma coadjuvante no processo de ordenação, talvez eu me filie. A minha resistência tem a ver com o fato de dar publicidade a uma coisa que eu acredito do fundo do meu coração, por ser batista: de que a igreja batista, a congregação, é soberana sobre qualquer processo que diz respeito a ela, sobretudo dos seus ministérios e do trânsito ministerial. Esse poder que é da igreja eu não quero dar nem à Ordem nem a ninguém mais. Isso não quer dizer que eu tenha rancores, coisas mal resolvidas. Eu ouço por aí de vez em quando: “Você está muito magoada!”. Não é mais isso, eu já estive bastante magoada no momento em que estava me recuperando inclusive fisicamente do que vivi, mas o Senhor tratou comigo já há muitos anos. O fato de resistir e hoje é ter a clareza que o problema nunca foi a denominação nem suas instituições, esse não é o problema dos batistas… O problema dos batistas são algumas lideranças que se comportam muito longe daquilo que Jesus gostaria que se comportassem.

Não fique com uma má ideia da sua denominação, porque nós a construímos historicamente em cima dos valores mais belos que a humanidade já ouviu: a ideia de liberdade e fraternidade. Nem esses camaradas, nossos irmãos e irmãs, podem esvaziar a beleza da nossa denominação.

Esse movimento de articulação de pastoras junto com a pastora Zenilda Regiani Cintra aconteceu a partir de um convite que ela me fez. A gente na nossa conversa foi chegando a consensos. A princípio ela acreditava piamente que a gente precisava conseguir a filiação das colegas, que era algo extremamente importante. E aí quando eu chego para esse relacionamento com ela e falo que para mim o maior valor é o da igreja, que precisamos novamente colocar o poder onde tem poder, que é a igreja, ficamos um bom tempo procurando um consenso entre essas duas coisas. E acredito que há dois anos encontramos, e por isso nos apoiamos. É a importância da gente, tanto incentivar as filiações quanto compreender que, mesmo que a gente não tenha a filiação, a compreensão que a legitimidade primeiro é da igreja, e essa legitimidade da igreja tem valor denominacional sim.

O que essa articulação de pastoras batistas quer não é e nunca será a criação de uma Ordem de Pastoras. Longe de nós tal coisa. A gente acredita que a Ordem de pastores existe, está aí. Acho inclusive que ela vai, em um caminhar histórico, se a gente continuar resistindo, se ajustar ao desejo das igrejas. Então não é meu interesse, e se um dia alguém levantar essa coisa de “Ordem de Pastoras” eu não estarei junta apoiando, pode ter certeza disso. Estamos neste momento nos fortalecendo na nossa caminhada ministerial. Muitas pastoras fazem trabalhos maravilhosos e estão muitas vezes isoladas em suas regiões porque há colegas pastores contrários que as isolam. A função do nosso movimento é minimizar um pouco disso, em um primeiro momento.

Em um segundo momento, é também um movimento de atenção às vocacionadas ao ministério pastoral. Uma das coisas bonitas que a gente tem promovido é que haja a possibilidade dessas meninas e mulheres confessarem que têm a vocação pastoral, porque por muito tempo até a confissão disso foi negada. A coisa às vezes é tão difícil de ser vivida, que a pessoa não consegue nem confessar que essa é a vocação que ela vê em si mesma. É um trabalho de reconhecimento de que, caso ela tenha recebido esse dom do Senhor, que reconheça que essa é sua vocação. A gente trabalha para que isso seja feito cada vez mais tranquilamente.

E eu não consigo ver nenhum outro caminho a não ser o caminho da igreja. Se alguém, homem ou mulher, diz que tem essa vocação pastoral, precisa estar na igreja dele vivendo essa vocação para que a igreja o reconheça ou a reconheça. Porque sem reconhecimento de igreja, nenhum ministério vai longe. Não pode isso ser a decisão de um pastor que viu uma menina na igreja e só porque ela é líder e ele é favorável ao ministério pastoral, ordena a menina. Isso não existe. O mesmo serve para os meninos, o que é muito comum. Às vezes o menino é líder na igreja, fala bem, o pastor supõe que ele é pastor, mas o menino não é pastor, e aí ordena o sujeito. O que a gente precisa, na verdade, é ter pastores e pastoras com reconhecimento comunitário. Eu creio piamente nisso, que o reconhecimento precisa ser comunitário. Que essa vocação precisa ser vivida na comunidade porque é essa comunidade que vai dar a segurança necessária em um tempo de tanta insegurança.

Muita gente teme essa questão e diz que é heresia, mas é aquela história dos frutos: “pelos frutos conhecereis”. Há frutos que são indiscutíveis. Eles precisam ser colocados à disposição. Então meu conselho, primeiro, é tentar verbalizar que tem essa vocação; segundo, viver essa vocação na igreja a ponto da igreja a reconhecer. Terceiro, se a igreja reconhece, é construir uma relação com a liderança que favoreça a convocação de concílio. Se isso não acontecer, a pessoa sabe que vai levar um bom tempo sem prosseguir na sua caminhada vocacional. Algumas inclusive mudam de igreja por perceber que não há espaço nenhum para que isso aconteça em um futuro próximo. Em um quarto momento, eu acredito que se for possível cumprir os critérios da Ordem para filiação, eu não vejo nenhum problema em relação a isso.

Nenhuma história de vida é uma história de vitórias apenas. Na verdade a gente tem muitas histórias de derrota na nossa vida. Porque a vida é luta, mas ela é bonita demais pra viver. Não esquece disso não. Eu tenho visto um conjunto grande de jovens, sobretudo meninas, preocupadas com a questão de gênero, empoderamento feminino… Isso super me alegra, vocês são uma geração de engajamento super parecida com aquela geração inicial da década de 60. Eu já sou de uma geração que, embora tenha uma paixão em relação a isso, consegue sentar com a diferença com mais tranquilidade… Vocês também vão chegar a esse patamar [risos]. Mas eu acho bonito demais, necessário, parabéns por isso.


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

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