REMINISCÊNCIAS DE UMA MULHER NEGRA PENTECOSTAL: QUANDO SE É, MAS NÃO SABE QUE É

Igrejas pentecostais formam o que há de mais complexo sociologicamente e teologicamente. Ninguém nunca consegue explicar à altura do que realmente acontece de dentro porque, definitivamente, é quase impossível montar o “modelo” de pentecostal em todas as suas dimensões. Isso é claro quando se olha para as inúmeras igrejas de esquinas com crentes diversos, com formas de falar próprias, formas de vestir próprias… Um caldeirão de gente, uma torre de babel em todos os sentidos, a fonte de inspiração do modelo neopentecostal. O estereótipo é alimentado por verdades, mas há fugas desse modelo pré-concebido. O pentecostalismo é cheio de mitos, e muitas das vezes se transforma em mito na boca de quem não conhece.  Em toda a pluralidade, uma coisa é certa: o pentecostalismo é a vertente do evangelicalismo que mais cresce no país, a galinha dos ovos de ouro da classe política, o interesse intelectual dos sociólogos e, principalmente, a religião professa de mais de 24 milhões de pessoas, de acordo com o censo divulgado pela Folha de São Paulo ainda este ano, em que a maioria é pobre, feminina e negra.

Cresci num subúrbio de Recife, sentindo a poluição debaixo do meu nariz, pulando poças por medo de cair nos canais abertos e sempre indo à igreja junto com meus pais. Culto de oração, ensaio das irmãs, culto de domingo, ensaio de ministério de louvor. Eu não entendia muito bem de muita coisa, mas foi nesse contexto efervescente de vida, com o quente do sol, o estreito das ruas, o alto das escadarias, e as pernas pretas das irmãs orando enquanto eu sorrateiramente brincava de me arrastar por debaixo dos bancos, que eu me fiz.

Fui crescendo com discursos que devem inflamar em qualquer igreja comum, discursos que prontamente seriam julgados como criados propositalmente por pessoas que leem a bíblia pela sua forma de enxergar a vida. E sim, o machismo que vem do machista que distorce a bíblia é proposital: a interpretação distorcida serve como fortalecimento de sua posição privilegiada. Mas o que falo aqui é de outro aspecto: quando a vítima absorve o discurso do opressor. Isso aconteceu quando um pastor negro disse ser pecado usar tranças no cabelo ou quando a maioria das minhas amigas negras (provavelmente muitas nem sabiam disso) formavam uma fileira gigante na igreja com seus perfeitos cabelos alisados, sentindo-se bonitas e apresentáveis em datas festivas. Eu fui escrava desse discurso por anos.  

Ser mulher negra dentro do movimento pentecostal tem todos esses momentos de amargo sabor porque a religião reflete a história do povo, e fatalmente nós somos um país cheio de preconceitos e ideologias que pregam o ódio. Como resultado dessa experiência de reflexão histórica, a maioria dos pentecostais abarca negros que absorveram o discurso racista e misógino e propagam em forma de estilo de vida e comportamento. Ou você pensa que não é racismo quando a menina considerada mais bonita da igreja é a única branca? Ou a que tem o cabelo mais bonito? Ou a que interessa mais os rapazes enquanto você é a amiga negra da menina branca bonita? Essa história é conhecida e contada em todos os setores: na escola, na faculdade, na roda de amigos, mas aqui é repetida em contexto diferente, um contexto de fé em que, ironicamente, a maioria em estatística compartilha dos mesmos processos raciais.

Eu nunca me perguntei acerca de lideranças femininas, ainda que limitadas, porque não achava que em outros contextos religiosos isso não fosse comum. Em igrejas pentecostais históricas ou que formam uma geração após essa primeira onda, o rigor de usos e costumes impera ainda, e de forma opressiva, o que marca um teor machista muito forte que também respinga em sutis hiperssexualizações de corpos negros. Ainda assim, para mim, quando mais nova, todas as igrejas seguiam a mesma lógica e permitiam, por exemplo, mulheres serem parte do ministério, líderes de grupos, pregadoras, e até líderes de igrejas como eu via comumente na minha denominação e em tantas outras. Não é bem assim em todo lugar, infelizmente.

Por este motivo, mesmo com todas as dolorosas experiências, é possível ver com alegria mulheres negras tendo grande relevância na igreja: são as que movimentam os trabalhos, as que promovem e lideram reuniões de oração, criam seus próprios núcleos de evangelismo, edificação e cultos nas casas. Se você for numa igreja pentecostal perceberá que a maior parte da dinâmica da igreja é promovida por mulheres. Há vida por causa delas, mesmo que elas não saibam nomear quem são em questões de raça e gênero.

Passei anos de minha vida no mesmo limbo: meu pai preto, minha mãe branca, eu uma incógnita sem história, sem filiação, apenas me resumindo em atividades religiosas sem reflexão da minha existência. Eu estava dentro da igreja, eu estava à frente de grupos, eu estava pregando em púlpitos nos cultos de jovens, mas eu não sabia do quanto que isso significava sendo mulher e negra, porque eu não sabia que era negra e nem do peso que isso fazia sendo mulher.

Talvez a maior falta dentro do pentecostalismo enquanto negritude e gênero more na falta de esclarecimento, consciência individual e autonomia intelectual. Eu sempre existi, elas sempre existiram e sempre existirão.

A força motriz que mora na preta que descia o morro, atravessava a rua e ia pra minha antiga igreja orar e reclamar comigo enquanto eu brincava por entre os bancos, é a mesma força que hoje mora em mim, mas que eu não sabia denominar. É uma força que persiste, que impulsiona, que nos traz perguntas inicialmente incompreensíveis acerca do estranhamento de pertencer, mas que nos faz escrever histórias incríveis, mesmo que não se tenha tanta dimensão da cor que carrega no corpo e nem do cheiro de sangue que existe a cada esquecimento de quem somos.

Ser é não é só ser, ser, no fim das contas, é saber que é.

 


Thaínes Recila tem 22 anos, é pernambucana, estudante de Letras e cristã pentecostal. Há pouco tempo se descobriu negra e essa tem sido uma das maiores aventuras desde então.

 

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