Sobre samaritanas pretensiosas

 

A culpa, o pecado, a indiferença social talvez a tenham feito ir buscar água em hora tão imprópria, mas nem a culpa, o pecado e a tal indiferença social fizeram com que ela parasse de “teologar” e de esperar pelo Messias. Nem mesmo convicção pessoal da fragilidade e do erro da sua vida amorosa. Dada a discursos teológicos e ainda por cima com uma vida pessoal pouco louvável, era pretensiosa essa samaritana sem nome.

Dessa pretensão se nutrem hoje muitas mulheres e homens em busca de alguma justiça para suas vidas. Esperançosos de esclarecimentos definitivos para questões controversas da alma e da matéria.

Em Cristo, imagino que todos encontram sua justiça. Imagino Jesus, sentado em uma assembléia de mulheres, de mulheres feministas falando a ele sobre seus conceitos de justiça, sobre a opressão masculina algumas vezes firmada em nome de Deus. Imagino os guerreiros Mau-Mau que lutaram pela libertação do Quênia no século XX anunciando a Jesus o ditado popular que criaram: “When the white man came, he had the Bible and we had the land. He told us to close our eyes and pray, and when we opened our eyes, they had the land and we had the Bible” (“Quando o homem branco vem, ele tem a Bíblia e nós temos a terra. Ele nos diz para fecharmos nossos olhos e orarmos e quando nós abrimos nossos olhos, eles têm a terra e nós temos a Bíblia.”).  Talvez Cristo dissesse: “Vocês não sabem o que falam! Quietos!” e de certa forma ele disse isso para a samaritana, mas disse mais. Bem mais. Respondeu aos seus anseios com poder, oferecendo a água que enfim vai saciar a sede, vai trazer a justiça.

Jesus certamente não teria medo de ouvir a denúncia que as mulheres feministas fazem, não se furtaria ao diálogo. Acredito que seria um encontro como o que ele teve com a samaritana. Não ignoraria erros e acertos do pensamento e da teologia criada para enfrentar a injustiça do machismo. Mas acho que ele ampliaria o olhar sobre a história da mulher ao lado da historia da redenção. Mas certo é que Jesus não silenciaria as mulheres, essas mulheres pretensiosas que erguem a voz por justiça.

Não iria trazer suas vidas pessoais à tona para desqualificar seus anseios e as perguntas que trazem, mas traria suas vidas pessoais à tona para lembrar quem elas são: mulheres vivendo nessa geração com trajetórias de vida complexas.  

Não posso deixar de pensar nas mulheres e meninas que se sentem acuadas quando se declaram feministas. Parece que a palavra significa algo como se declarar resistente, masculina, e o pior de todos os pecados “rebelde às leis de Deus” sobre o viver social da mulher, sua maneira de ser e vivenciar o seu feminino. Nas conversas informais ou nos sermões em ambiente cristão, não são poucas as vezes em que a pessoa, em especial a mulher, quando é qualificada como feminista é em tom de reprimenda ou para explicar a razão de um comportamento desviante dos padrões de Deus.  Certamente muitos de nós já testemunhamos debates serem encerrados, conversas rejeitadas e vozes silenciadas. A destruição de casamentos é um argumento recorrente para silenciar as vozes feministas e do feminismo. Afinal não queremos mulheres e meninas, futuras samaritanas, que tenham mais de cinco maridos. É consenso! Será apenas o zelo que gera o silenciamento? Talvez o zelo pela família e pela lei de Deus tenha sido o argumento dos discípulos e da sociedade da época para que mulheres como a samaritana fossem isoladas, sem ter com quem dialogar. À margem da sociedade e ao lado de Jesus. Pretensiosa samaritana…

Hoje samaritanas pretensiosas, estão espalhadas, teologando em busca das respostas do Cristo para o mundo contemporâneo, buscando água nas fontes não em horários em que encontros sociais são improváveis, mas ombro a ombro com aqueles que conhecem a fonte de vida eterna. Abusadas o bastante para dizer: Estamos esperando o Messias, ele nos esclarecerá, com licença, porque sigo em frente!

Nem a samaritana e nem as feministas do século XXI são as primeiras que pretensamente ‘questionam’ a ordem religiosa de seu tempo sobre as mulheres. Macla, Noa, Hogla, Milca e Tirza filhas de Zelofeade questionaram Moisés sobre os direitos da herança para as mulheres. Com uma pergunta direta: “Por que o nome de nosso pai seria tirado da terra por não ter filhos?”. E Moisés, diz a Bíblia, “levou a causa delas perante o Senhor” e o Senhor respondeu a Moisés “as filhas de Zelofeade  falam o que é justo” e Deus trouxe esclarecimentos, respondeu com justiça prática que interferiu na vida social da comunidade israelita (Números 27).

 E não foi pelas margens que elas enfrentaram as divergências de entendimento sobre a lei na vida social. Não silenciaram, e também não foram silenciadas. Em ato solene foram ouvidas. Em ato solene receberam justiça. É um bom exemplo para a nossa geração. Um desafio para toda a comunidade cristã.

Os discursos que nos silenciam e demonizam as perguntas do feminismo ou de qualquer outra corrente social que denuncie a injustiça e busque a libertação das pessoas limitam a experiência dinâmica que o evangelho propõe a cada nova etapa da história humana.

Há um lugar para as denúncias e para perguntas que o feminismo traz para a nossa prática cristã na relação entre homens e mulheres e há respostas de justiça vindas da parte de Cristo para organizar a nossa vida em comunidade cristã com base em justiça para as mulheres.


Raquel Barbosa é pedagoga e mestre em educação, estudou relações raciais e violência sexual contra a infância. Trabalhou com formação de professores no ensino superior e hoje trabalha com formação de pessoas pequenas na educação infantil, investigando como as diferenças de gênero e raça são concebidas pelas crianças.


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição institucional da ABUB, outra instituição ou de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

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