Sobre ser presente

Ler a Bíblia é um desafio, especialmente para nós mulheres. Não por que somos incapazes de compreendê-la, muito pelo contrário, embora alguns homens tenham-nos dito que não era algo para nossa cognição. A questão é que se trata de um livro atemporal, que não pode ser lido anacronicamente, e que tem textos muito complexos e por vezes com um tom machista. No entanto, a Palavra Sagrada aos cristãos também nos traz alguns bons exemplos de companheirismo entre as mulheres. Em especial, queria pautar o breve relato de Dorcas, ou Tábita, registrado em Atos 9:36-42.

“Em Jope havia uma discípula chamada Tabita, que em grego é Dorcas, que se dedicava a praticar boas obras e dar esmolas.

Naqueles dias ela ficou doente e morreu, e seu corpo foi lavado e colocado num quarto do andar superior.

Lida ficava perto de Jope, e quando os discípulos ouviram falar que Pedro estava em Lida, mandaram-lhe dois homens dizer-lhe: “Não se demore em vir até nós”.

Pedro foi com eles e, quando chegou, foi levado para o quarto do andar superior. Todas as viúvas o rodearam, chorando e mostrando-lhe os vestidos e outras roupas que Dorcas tinha feito quando ainda estava com elas.

Pedro mandou que todos saíssem do quarto; depois, ajoelhou-se e orou. Voltando-se para a mulher morta, disse: “Tabita, levante-se”. Ela abriu os olhos e, vendo Pedro, sentou-se.

Tomando-a pela mão, ajudou-a a pôr-se de pé. Então, chamando os santos e as viúvas, apresentou-a viva.

Este fato se tornou conhecido em toda a cidade de Jope, e muitos creram no Senhor.”

 

Das muitas coisas que se fala sobre Dorcas, é notório o seu exemplo de abnegação, de caridade cristã, que inspira mulheres e também homens – inclusive não sei se existe um exemplo masculino disso na Bíblia: as atitudes da mulher virtuosa de Provérbios 31 sempre apontam para uma fêmea que faz e acontece. Também tem o milagre de sua ressurreição, com suas devidas implicações (talvez o único relato nominal de uma mulher ressurreta). Acho, entretanto, um bocado “lugar-comum” frisar esse aspecto da sua vida, e ignorar o  quanto ela era amada pelas outras irmãs e dedicava parte do seu tempo, dinheiro, investindo a sua vida demonstrando o quanto elas são especiais, mas não apenas isso.

Lembre-se que estamos falando de viúvas, ou seja, mulheres sem marido e sem apoio financeiro, em uma sociedade mais patriarcal que a presente. Elas tinham de se reunir entre elas consigo mesmas  em torno da solidariedade e empatia, e contar plenamente com a caridade alheia. Uma das pessoas que se importou com ela foi Dorcas. Não se trata de uma história de uma mulher muito estimada que confeccionava túnicas e as presenteava não porque era uma designer de moda da época, e sim uma mulher que se fez presente na vida de outras mulheres, a qual marcou uma parcela delas suprindo suas necessidades não apenas físicas, mas relacionais. Não estamos falando de merecimento dessas mulheres, elas têm apenas um critério: viúvas. Pessoas carentes. E Dorcas tinha uma habilidade e um olhar atento às suas irmãs.

Nessa passagem, não temos relatos de um marido, nem em vida, nem na morte. Não vou aqui suscitar a existência ou não de um cônjuge, mas salientar que ele não é importante para a passagem, se existir. A centralidade desse exemplo bíblico é a mulher e outras mulheres, o próprio milagre da ressurreição pode ser segundo plano, porque a importância é a vida de Dorcas e suas atitudes em vida, tanto que sua morte foi sentida pelas suas irmãs. Por isso, para aproximar a realidade de cá com a nossa, eu nos questiono: com qual linguagem nos temos feito presentes na vida uma das outras?

Nós comunicamos o amor pelas nossas amigas de diferentes formas, entre conversas pontuais, diárias, atos de amor, serviço, rindo juntas ou mesmo chorando. Sejá lá o que for: quem está vivo, se faz presente de alguma forma! Demonstre seu afeto, irmã! Principalmente porque acredito que o propósito desse belo relato de sororidade é nos lembrar dos relacionamentos entre amigas que nos são tão caros e o que fazemos para a sua manutenção. Dar tempo é uma moeda tão preciosa ou mais que qualquer presente, e por vezes a vida e seus tropeços nos afastam de realmente viver os relacionamentos, e nos distanciam das pessoas que vão estar lá para segurar as barras pesadas que a vida traz, e de cujas barras você vai ter que segurar também.

Em suma, o moderno conselho de Dorcas que fica para nós é: demonstre seu afeto na amizade, estejam atentas às necessidades umas das outras, não morra para as amigas quando se relacionar, e pense no que você está plantando nos corações das pessoas ao seu redor, principalmente se a agenda for curta para conciliar diferentes níveis de compromissos. A vela não sabe o quanto ilumina, mas é lindo saber que gestos sinceros de acolhida são sementes que germinam com raízes profundas.


Cristina Alves, aluna de Ciências Jurídicas na UFRGS que ingressou no curso tardiamente para os padrões da turma. Licencianda em História, para tentar expandir além da bolha do Direito. Aprecia cafés e se aborrece com calor (e muitas outras coisas).


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.