Tudo que afro

Quando eu tinha cinco anos, meu cabelo era uma fralda branca de algodão com uma tiara por cima. Ficava na frente do espelho imaginando como eu seria se parecesse uma princesa. Eu sonhava em ter o cabelo liso, comprido, já que o meu, crespo, doía para pentear e ninguém sabia como arrumar. Minha mãe, minhas tias e primas alisavam o cabelo. Todas as mulheres que eu achava bonitas alisavam o cabelo. Quando o meu crescia, me levavam à barbearia da esquina para fazer o “Joãozinho”. Eu tinha cinco anos e me sentia feia.

No meu aniversário de seis anos, minha mãe me deu um alisamento de presente. Precisou de retoque. Ardeu. Fez feridas. Mas eu tinha ficado linda! Meu cabelo balançava, era bem visto na escola, todas as meninas começaram a falar e andar comigo. Eu não me sentia mais feia e era aceita. Uma ou duas vezes por semana meu cabelo era lavado e escovado. Quase sempre, orelhas e nucas queimadas. Eu não podia ir à piscina, tomar chuva, colocar a cabeça toda debaixo do chuveiro, brincar como todas as outras crianças da minha idade. Até ficar suada estragava o cabelo. Mas eu era bonitinha, então valia a pena.

Chegou a adolescência. Algumas meninas da escola, que não gostavam de mim, me seguiam pelos corredores para jogar água no meu cabelo. Muitos cantavam o funk “ih, choveu, cabelo encolheu todinho”, modinha da época, enquanto passavam por mim. Me colocavam contra a parede para me fazer confessar que aquele cabelo não era natural. “Fala que tem cabelo duro, fala que teu cabelo é pixaim”. Eu não falava. “Meu cabelo é assim, é liso”, eu mentia por vergonha. Várias ameaças de briga porque eu não admitia. Algumas meninas me defenderam das mais velhas e não me deixaram apanhar. Eu sempre ia para casa com medo.

No ensino médio eu me destacava pela inteligência. As pessoas não tinham mais problema com a minha aparência, não havia mais perseguição por parte dos colegas, muito embora eu não me sentisse bonita. Quando se aproximaram meus dezoito anos, cansei daquela rotina louca de tentar parecer algo que eu não era. Parei de alisar e de escovar. Os alisamentos eram caros, as cabeleireiras passavam as duas horas falando como meu cabelo era difícil e eu nunca podia cuidar dele sozinha. Fiquei sete meses em transição (processo que eu desconhecia), com a raiz crespa e as pontas lisas. Não sabia o que me esperava. Não sabia como era meu cabelo. Não conhecia ninguém que tivesse passado por essa “crise de identidade” (era assim que as pessoas próximas a mim chamavam).  

Dia 26 de abril de 2013 fui ao mesmo salão em que havia alisado pela primeira vez. Cortei, de novo, o “Joãozinho”. Não sabia o que fazer com aquele cabelo que Deus havia me dado. Minha família não me apoiou. Vieram questionamentos acerca da minha orientação sexual. Me compraram brincos, lacinhos, roupas mais coloridas. Meu crespo não formava cacho. Fui testando produto atrás de produto, me sentindo cada vez mais feia, deslocada, sozinha. Sendo tia do ministério infantil, a adaptação com as crianças também foi difícil. A maioria delas reclamava de como eu parecia um menino, que antes estava melhor, que era estranho ser meio careca.  Eu relevava. Até que, um dia, uma criança se recusou a sentar no meu colo. Quando perguntei a razão, ela disse “minha mãe falou que seu cabelo tem piolho”.

Não sabia a motivação de tanta gente me tratando como se eu fosse uma aberração. Minhas fichas caíram aos poucos. Fui percebendo o significado do racismo e me percebi mulher negra. A partir do momento que todos os pingos foram colocados nos is, eu me fortaleci. Eu soube que haveria de lutar. Que o cabelo era instrumento da minha resistência, da minha expressão. Que ser crespa era o que Deus escolhera para mim. Que ser negra e crespa também é ser a Imagem e Semelhança do Criador. Que, mesmo tendo consciência das violências simbólicas, eu teria que acordar todos os dias me dizendo que ser o que sou é lindo, e que, mesmo assim, me forçariam a crer no contrário.

Agora, minha função é mostrar para as pessoas próximas a mim que a estética negra tem imenso valor. É transpor a representação do Cristo branco. É ressignificar o que aprendi durante toda a minha vida, dando ao bullying sofrido o nome que ele merece: racismo.  É fortalecer a autoestima das crianças que são deixadas de lado sorrateiramente pela cor da pele ou pela textura do cabelo. É colecionar bonecas pretas.  É lutar para que os eventos de beleza nas igrejas evangélicas não incentivem a cultura do embranquecimento. É me enxergar nos espaços de poder, de destaque, de prestígio. É ser linda, cotidianamente, à moda do que em mim é natureza. E é amar tudo o que, em mim, como flor, nasce e cresce afro.


Zainne Lima da Silva é mulher negra, estudante de Letras e trabalha no USP Mulheres. É uma das escritoras da coletiva literária Entre Irmãs e milita pelo Feministas Cristãs de São Paulo.


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição institucional da ABUB, outra instituição ou de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

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