Sou uma dissidente da cultura da pureza

Aos 15 anos eu poderia ser a garota propaganda da cultura da pureza. Escolhi esperar, prometi no altar em prantos a minha vida e corpo ao Reino, desviei de todos os pensamentos impuros, disse não aos poucos pedidos de ficadas que recebi, fiquei o mais longe possível da pornografia, não ouvi funk proibidão, avancei as cenas de sexo nos filmes, promovi a castidade entre os amigos e não me masturbei. Se alguém perguntava: e os namoradinhos? A resposta era sempre: “Não estou pronta para ter um relacionamento agora”. Não usei decote, nem minissaia ou maquiagem. Li os livros aprovados, fui aos cultos e retiros, fiz anotações de pregações, respondi a todos os apelos no final de ministrações e curti as páginas no Facebook.  E fazia tudo de coração, me entreguei de verdade, confiei totalmente que era a coisa certa a fazer, afinal os riscos eram muito altos (inferno) e a carne muito fraca (os hormônios da adolescência), pelo menos foi o que me disseram.

Depois de ler o título e o primeiro parágrafo, você deve ter projetado alguns possíveis desdobramentos: (1) a garota encheu o saco da igreja, desviou e saiu transando com meio mundo; (2) engravidou na adolescência; (3) ih, é lésbica/bi/pan/etc; (4) casou virgem mas teve uma vida sexual frustrante e se divorciou ou (5) foi abusada. E claro, de certo modo, todas essas possibilidades configuram dissidências da cultura da pureza e são mais comuns do que a propaganda evangélica fundamentalista nos faz acreditar. Mas meu caso é outro.

É que, aos 25 anos, eu ainda poderia ser garota propaganda da cultura da pureza, já que sou branca e virgem, morando na casa dos pais, ainda neste eterno esperar. Eu dei certo, sou bem educada, sei muito de bíblia, ainda não me sinto confortável em roupas sexy, na maioria dos dias ainda gostaria de ser mãe, fiz faculdade, tenho um trabalho estável e uma ótima relação com meus pais. Eu dei certo? Até hoje nunca namorei, nem entendo direito o que é libido, sou tão desconectada do meu corpo que “resistir a tentação” nem é mais necessário porque a tentação nem floresce, me tocar é um esforço do qual tenho preguiça, usar o.b. é dor e pesadelo, arriscar um beijo é um pânico, apresentar alguém pros meus pais é um ataque de ansiedade.

A doutrina cultura da pureza deu certo demais. Passou do ponto, passou do “normal” e provém daí a minha dissidência. As pessoas tendem a achar que a igreja evangélica é repressiva quanto a sexualidade, mas é somente uma cultura obcecada com o sexo que poderia produzir tantos refinados regulamentos de como ele deve se dar. É como diria Foucault, o poder muito além de repressivo, é produtivo. E eu sou um produto desta tecnologia, a cultura da pureza.

Ih, citei Foucault. Vocês estão ouvindo? É o evangélico fundamentalista digitando! Ele está escrevendo de um jeito condescendente (espero que seja esse, porque a outra opção é de um jeito agressivo) que o problema na verdade sou eu, claro. Veja, talvez não tenha orado o suficiente, talvez não converteu o coração a Deus verdadeiramente, talvez seja feia e insuportável por isso ninguém te quer, talvez seja insubmissa, talvez tenha problemas espirituais ou, Deus nos livre, psicológicos. E sabe porque consigo prever todas essas respostas? Porque existe uma fundamentalista em mim, a doutrinação que deu certo. 

Acontece que o “normal” da cultura da pureza não é o estado que me encontro. O normal, neste sentido normativo, não é algo comum e sim específico, afinal a retórica evangélica é de remar na contramão do mundo, do considerado normal. E o normal é algo muito complexo em suas articulações, pois é uma geringonça desenhada para tirar o humano do ser. 

E talvez você se pergunte, qual é o procedimento “normal” ou pelo menos desejável na cultura da pureza? Em primeiro lugar, a heterossexualidade, talvez um dos maiores ídolos da igreja evangélica brasileira, depois do dinheiro. Você cresce sem falar sobre sexo ou apenas o minimamente pra saber que não pode ficar mexendo “lá”, mas aí quando faz 12 anos começa a ser bombardeado com uma teologia dos perigos sexuais, que a gringa chamou de purity culture e gente traduziu porque faz sentido para nós também. O ensinamento é o seguinte: tudo que é sexual, fora da relação hétero-matrimonial, é pecado. Porém, esse seu corpo criado por Deus que possivelmente tem desejos, curiosidades, mudanças deixa de ser visto como ápice da criação e passa a ser visto como carne que apodrece. A carne é fraca. O corpo é inimigo.

E aí se constrói a ideia da santidade e pureza, ambas recheadas com ideologias racistas e misóginas. Se você é santa, você vence e o prêmio é um relacionamento maravilhoso, uma união abençoada que deve já começar sabendo que o objetivo é casamento. Tem que começar meio que já sabendo que vai dar certo, pedir aprovação dos pais e do pastor. Orar antes de começar a namorar, pedir a confirmação divina. Depois tem que namorar com o mínimo de toques possíveis, mas já conversando como vai ser a criação dos filhos. Já que os homens são seres sexuais e cheios de “instintos” a responsabilidade de manter o namoro “santo” é das mulheres, você tem que dizer não, sua vontade não importa. Para noivar, tem curso – o curso que ensina como faz dar certo o casamento – para ser aprovado precisa confessar em arrependimento para o pastor se já quase chegaram nos finalmentes. Aí vem o casamento, tudo muda aparentemente, agora você é uma mulher completa, tem um marido, uma família, logo vem os filhos. No casamento o sexo é chave e já que os homens são seres sexuais e cheios de “instintos” a responsabilidade de manter o casamento “fiel” é das mulheres, você tem que dizer sim, sua vontade não importa. Daí pra frente é felizes – com Jesus – para sempre, é o que dizem.

A cultura da pureza instaura uma metodologia refinada para algo tão fluido quanto a sexualidade. Eu absorvi muito bem, entendi muito bem. Compreendi todos os passos, as consequências dos erros e as bênçãos prometidas. Fiz tanto esforço pra caber na caixinha que podei alguns pedaços de mim, podei o desejo, as borboletas no estômago, as descobertas, os sentimentos. E era agora que eu deveria estar colhendo os doces frutos, não? 

Só que eu ainda estou aqui, esperando. E não estou esperando apenas o amor romântico, esperando alguém. Estou esperando por mim mesma, esperando pela alegria em viver o amor e a sexualidade, esperando pela coragem de enfrentar meus monstros, esperando o sentir incontrolável que derruba todas as paredes mas… Sentido apenas a culpa cristã da ex-santidade e a vergonha de ser esquisita. Esquisita pros cristãos, esquisita pros pagãos. 

Na parábola, o semeador vai derrubando as sementes em vários terrenos. O meu era fértil e recebi a semente do amor, mas a cultura da pureza era o agrotóxico que transformou o sentir em pecado.

Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
— só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?  

A Serenata, Adélia Prado  

13 thoughts on “Sou uma dissidente da cultura da pureza

  • 27 de setembro de 2021 em 16:46
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    Que texto, irmãs!! Q texto! Uma produção adoecida da sexualidade (ou falta dela) nas nossas igrejas.. fui expulsa da liderança aos 22 anos qdo namorei um homem de fora da igreja. Entendo bem disso. Virei psicóloga. E às vezes uma paciente crente me escapa quando ouso dizer q ela pode desejar.. beijos e mais beijos pra vcs!!

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  • 27 de setembro de 2021 em 21:34
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    Nossa, me identifiquei demais com esse texto. Tbm aprendi a reprimir toda a minha parte sexual e sentimental por causa da cultura da pureza. Perdi todas as poucas oportunidades que tive de me relacionar com boas pessoas. Hoje tenho 28 anos e nunca namorei ou explorei minha sexualidade. Hoje não consigo sentir mais nada, não consigo me apaixonar, amar ou sentir desejo por alguém. Me travei tanto que me tornei “assexual”.

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  • 28 de setembro de 2021 em 13:52
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    Estou cada vez mais convicta que a comunidade de mulheres inadequadas ao sistema fundamentalista, deixa de ser Eva para tornar-se serpente. Deixa de ser receptora de mandamentos e passa a ser emissora de questionamentos. Deixa de ser parelha com inércia adâmica, para se mover, ainda que só, além dos limites impostos. Faz uso da palavra, e crê que através dela é capaz de modificar irreversivelmente as estruturas do mundo. Promove dialogo onde antes havia apenas uma estática ordem totalitarista. E apesar de sempre taxada de “triste, louca ou má”, sabe que “querer ser livre é também querer livres os outros”, dessa forma não é capaz de viver sua vida, sem se preocupar com a emancipação de Eva. Garantias? Apenas que as duas receberão os piores castigos por essa empreitada audaciosa. Muito obrigada pela coragem e pelas palavras @projetoredomas, texto maravilhoso!

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  • 29 de setembro de 2021 em 09:21
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    Obrigada por esse texto! Ainda é extremamente difícil abordar isso na igreja, e a gente sabe… Mas nos deparamos com os fatos, com a forma que isso ficou em nós, que carregamos, mesmo depois de termos conhecido “um outro evangelho” ou termos saído da igreja é doloroso.

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  • 29 de setembro de 2021 em 13:46
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    É complicado, confesso que com o amadurecer, tenho entendido melhor sobre mim e meu corpo, sobre o que gosto e o que eu quero do futuro. Sou uma mulher jovem, independente e madura , que não se permite relacionar com homens não cristãos e ao mesmo tempo, sente que os homens cristãos são meninos que ainda não cresceram e nisso, sinto que estou deixando de viver os melhores anos da minha vida esperando por alguém. Em contrapartida, não me sinto confortável com uma vida longe dessa cultura da pureza. Olha, uma roda de conversa (mesmo que online) sobre isso, seria incrível kkkkkk precisooo! Confesso não concordar totalmente com o texto, mas tem pontos que precisam ser discutidos nas igrejas, com toda certeza!

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  • 30 de setembro de 2021 em 10:48
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    Excelente reflexão! Me assustou ver minha história e pensamentos descritos no texto. É exatamente assim que me sinto: esquisita. Agradeço a partilha e estaria disposta a participar de uma conversa sobre o assunto, como propôs a colega acima.

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  • 10 de outubro de 2021 em 12:41
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    Li o texto, estou ainda digerindo…. me identifiquei em vários aspectos 🥺

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  • 4 de janeiro de 2022 em 00:06
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    Ler esse texto foi como participar de uma seção de terapia que nunca me dei ao luxo de fazer – até porque, é claro, que testemunho eu daria pra uma psicóloga não cristã? Como seria julgada por uma psicóloga cristã? A conservadora que há em mim berra me acusando por esses sentimentos. Obrigada por tanto. Como gostaria de uma roda de conversa sobre o assunto…

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  • 9 de janeiro de 2022 em 06:07
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    Eu cresci e constituí família assim. Hoje eu sofro tanto com as oportunidades desperdiçadas. Dá vontade de morrer às vezes de tanto remorso pelos amores não vividos por causa dessa maldita cultura da pureza.

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  • 17 de fevereiro de 2022 em 05:33
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    Vou confessar, as lágrimas rolaram dos meus olhos – de indignação e dor.
    É como ler minha própria história exposta na internet, e tudo isso pq encontrei esse blog de forma totalmente aleatória e abrupta.
    Não, eu não concordo com muitos pontos abordados porém concordo com tantos outros, principalmente com o fato de que esse tema precisa, necessita ser abordado nas igrejas!!!
    Esse ano completo 25 anos, me identifiquei cm praticamente tudo
    então repito: essa jovem do texto sou eu?!

    ok
    Agora, depois de mais calma, posso dizer: meu eu egoísta não importa realmente!!!
    Na real penso em tantas jovens mulheres que acabaram largando a Cristo pq vivenciaram situações difíceis durante toda uma infância e adolescência, e não obtiveram suporte, ninguém as ajudou.
    e eu nem tô falando de submissão, tô falando da falta de instrução e sabedoria dos líderes religiosos (mts vezes líderes mulheres mesmo) sobre a vida de meninas, jovens.

    ahh esse assunto rende..

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  • 10 de abril de 2022 em 19:31
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    Que texto incrível! Ainda sofro os impactos do que essa cultura fez na minha vida, me senti a menina do texto, 25 anos, solteira, virgem depois de um relacionamento de anos falido, onde grande parte da culpa é dessa cultura onde fui inserida, hoje tento me livrar das marcas que me causou! É bom se sentir identificada com mais meninas, hoje com muita terapia tenho tentado superar esses traumas! Deus abençoe vocês

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  • 3 de outubro de 2022 em 21:19
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    conheci meu ex- esposo na minha epoca mais fundamentalista de igreja, com apenas 19. Namoramos em santidade por 4 anos, incluindo o noivado. Fizemos tudo de acordo com a igreja na esperança da recompensa no matrimonio. Chorei e sofri por anos (7 pra ser exata) sem libido, prazer, ou compreençao pois fomos ensinadas a servir nossos homens antes mesmo de conhecermos a nos mesmas.

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