Por mais Marias Madalenas entre nós | Maria Madalena

O texto do Evangelho de Lucas, capítulo 24 versos 1 a 12, menciona Maria Madalena não apenas como aquela que após a crucificação vela o corpo do Cristo com outras mulheres e se preocupa em dar-lhe dignidade através do uso das especiarias (cuidados mortuários da cultura da época), mas também como testemunha da ressurreição e aquela que recebe a incumbência de anunciar este fato aos demais discípulos.


Algo que chama a atenção nessa história, é o fato de que, ao dizer o que havia ocorrido, no caso o “sumiço” do corpo por causa da ressurreição, a palavra dela foi imediatamente desacreditada. Diz o texto no verso 11 que os que ouviram consideraram sua fala como desvairada, que aquilo lhes parecia loucura. No entanto, se olharmos com mais cuidado, veremos que Maria Madalena e as outras mulheres não foram desacreditadas por pessoas desconhecidas. Isso ocorreu com os discípulos que conviviam com ela há 3 anos já, pessoas que supostamente já eram parceiros de caminhada!


O convívio intenso de 3 anos pode revelar muito sobre alguém, ainda mais nos termos em que a jornada de Jesus com os seus discípulos se deu, ou seja, enfrentando desafios diários e múltiplos como por exemplo viajar por estradas perigosas, dormir em lugares inóspitos, ter que lidar com inimigos políticos e religiosos agressivos, colocar a vida em risco por quebrar diversas regras sociais que tolhiam as mulheres da liberdade de ser, enfim…
O grupo de discípulos de Jesus que tinha presenciado a liderança de Maria Madalena dentre as demais seguidoras do Cristo, sabia que elas eram figuras com as quais se podia contar. no qual as mulheres eram parte não só integrante mas fundamental visto serem elas que os sustentavam financeiramente, na verdade, elas os sustentavam utilizando seus bens para o cuidado e a expansão do mistério itinerante do Messias.


Quem caminhava com o Mestre sabia que as mulheres tinham adquirido má fama por acompanharem aquele grupo de homens que não eram seus familiares, por jornadas longas a lugares desconhecidos, pernoitando onde encontravam lugar, se alimentando do que tinha disponível e vivendo como nômade contestador da ordem numa sociedade colonizada, ou seja, tendo a violência do império sempre a espreita e num momento as mulheres só tinham segurança através da estabilidade e da pertença familiar. Se assim não fosse, se tornavam párias na sociedade.


Maria Madalena, mesmo sabendo que sua decisão em seguir ao Mestre lhe traria uma possível morte social naquela comunidade em que às mulheres cabia o lugar do interior da casa, decide dedicar sua vida ao projeto do Cristo. Ela o segue, lidera outras mulheres, está presente nos milagres, ouve os ensinamentos, serve ao coletivo com seus bens, presencia a crucificação sem arredar pé (diferente dos homens que se esconderam aterrorizados) e, após tudo isso, recebe a missão de levar adiante a mensagem da vida que se renova. Testemunhar da ressurreição do corpo do Cristo e a revolução que isso causa no corpo social que se nutre de suas palavras é tarefa sublime e coube a uma mulher, sim, a uma mulher anunciar.


Ela coloca seu corpo, de maneira autônoma e livre, a serviço da Boa Notícia de que Jesus não trata homens e mulheres a partir dos parâmetros patriarcais que subordinam e subalternizam, que subestimam e silenciam. Pelo contrário: Ele não apenas permite que elas estejam junto como dá a elas funções essenciais para a continuidade do movimento, respeitando a mulheridade de cada uma. Jesus valoriza corpos femininos que com liberdade vivem sua espiritualidade independente de como a sociedade irá lê-las pois Ele vêm o real valor de cada mulher.


Maria Madalena foi escolhida para testemunhar não por um acaso mas de acordo com uma intencionalidade que valoriza a diversidade, que honra a feminilidade e que, acima de tudo, não amaldiçoa o corpo. Que o redime, que o ressignifica, que o humaniza. Se o próprio Deus encarnou para que vivamos plenamente nossa humanidade, sem demonizar o que nos torna gente, quem somos nós para negar esta obra perfeita de sua criação?


Colocar as mulheres e seus corpos no lugar da dignidade que propõe o Evangelho muda o mundo pois não apenas os corpos das gentes mas também o corpo da terra e o corpo social estão interligados a potência geradora de vida e esperança que há no corpo. A encarnação do verbo nos ensina muito sobre isso, pois o Deus que se fez carne no ventre de uma jovem suburbana numa colônia desimportante do Oriente Médio, se identifica com as vivências e as experiências de gênero de cada uma de nós de maneira inclusiva.


Não há distanciamento do Deus que ouviu as aflições do seu povo escravizado no Antigo Testamento e do Deus que, em Cristo reconciliou consigo o mundo e não revogou a diversidade, pelo contrário, tornou a mesa da celebração e da comunhão acessível a todos, todas e todes. Sim, todes sim pois no amor grandioso de Deus há respeito, há inclusão, há compreensão das identidades mesmo que dissidentes. É tudo gente e gente é a paixão do Cristo. Deveria ser a paixão da igreja também.


Para que isso ocorra, para que outras Marias Madalenas não sejam colocadas à margem da história mas sejam testemunhas públicas da graça e da bondade que estraçalha todos os grilhões sociais e religiosos, cabe a nós, que conhecemos a libertação promovida pelo Evangelho, abrir novos espaços, ampliar vozes, dar mais visibilidade atraves dos nossos ambientes de micropolítica e somar nossos esforços aos de quem labuta por essas que são nossas irmãs.


Não se esqueça: toda vez que uma Maria Madalena vier anunciar com palavras e gestos e sorrisos e danças a redenção do Eterno através do corpo que frui a vida, ouça-veja-dê-as-mão-e-entre-no-bailado! Sejamos rede de apoio, afeto e confiança; construamos para os corpos-casa que caminham conosco lugares de segurança emocional para que haja autonomia para viver e ser. Parecer-se com o Cristo demanda alteridade e desejo de comunicar, de tornar comum, de ser comum – coisa que Maria Madalena fez com os discípulos e com as discípulas do Mestre. Que possamos aceitar o desafio de ser comunidade de comuns, enredados na mesma teia de benquerença.


Priscilla dos Reis Ribeiro é Mestranda em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro onde sua área de interesse é Antropologia e Indigenismo; Mestre em Teologia Histórica pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Pós-graduada em Educação pela Harvard Graduate School of Education, Licenciada em Música pela Uni-Rio. É ecoteóloga feminista indigenista e articuladora de Direitos Humanos em diversos coletivos.


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

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