Corpos que conquistam o Reino | Raabe

Nós sempre ouvimos falar que nossos corpos foram consagrados e devem glorificar a Deus em primeiro lugar, mas o que podemos fazer quando a religião nos diz que nossos corpos não honram a Deus dado o nosso cenário, nosso passado ou nossos atos do presente, que, sim, precisam ser transformados pelo Eterno?

Contexto Histórico

A história de Raabe se encontra em Josué, capítulo 2, onde a narrativa acontece após a saída do povo de Deus do Egito. Passada a morte de Moisés, o povo é guiado por Josué.

Para que chegasse à Terra Prometida, Josué e o povo escolhido precisariam enfrentar a terra de Jericó. Ou seja, para fazer morada em Canaã, Jericó era o primeiro grande obstáculo. O interessante aqui é que na época, as cidades eram formadas dentro de grandes muros, cujo objetivo era proteger a cidade e seu povo.

Com toda certeza não seria da noite para o dia que Josué passaria com um grande exército pelos muros de Jericó. Na verdade, não havia nem a possibilidade. Por isso, o líder do povo de Deus enviou dois espias para que conhecessem o território e colhessem informações sobre a cidade e seus governantes. 

Interessante pensar onde exatamente os espiões entraram para conseguir essas informações: um prostíbulo. Onde mais teriam tanto contato com viajantes, comerciantes, soldados e homens do rei? 

E lá, encontram Raabe, uma prostituta, cuja presença de dois homens na sua casa fez com que chegasse aos ouvidos do rei de Jericó a suspeita de que havia espiões em sua terra. Raabe, então, tinha o dever com sua nação de entregar os homens de Josué ao seu rei. Em um ato de coragem e uma fé que Raabe ainda não conhecia por experiência própria, ela mantém o segredo da estadia dos soldados hebreus. 

Raabe, que não teria motivos para esconder esses homens em sua casa, declara que o que a fez dar abrigo e esconderijo foi ter ouvido o que o Deus de Israel havia feito (Josué 2:8-21). Pense que Raabe estava neste local, já citado, onde inúmeros homens passavam diariamente. Esses homens com certeza traziam histórias e informações sobre os feitos do Deus de um povo que foi liberto. Raabe não conhecia esse Deus nem esse povo, mas me dou a liberdade de imaginar uma Raabe que se maravilhava ao ouvir sobre os feitos do Eterno em prol de seu povo escolhido.

Poderia, talvez, Raabe se pegar pensando como seria ser amada por um Ser assim? Que poderia libertá-la do jugo e da dor? Poderia libertá-la de seu Egito particular, onde era imperativo que desse seu corpo àqueles que pagavam por ele? 

O corpo de Raabe, aquele que foi usado, muito provavelmente violado ainda na sua infância, foi o corpo que não só escondeu, como protegeu os homens de Israel e os manteve seguros a fim de que voltassem e contassem a Josué sobre a terra que viram. 

Raabes do nosso tempo

Quantas vezes temos contato e conhecimento de corpos que são renegados e os repelimos em vez de atraí-los? 

Alguns dados de 2018 podem ilustrar a realidade de mulheres e meninas que vivem da prostituição no Brasil:

Quando olharmos e refletirmos sobre estes números, espero que possamos pensar em quantas Raabes fazem parte dessa estatística. A grande maioria é de mulheres que sofreram abusos quando meninas; parte é de membros da comunidade LGBTQIAP+ que foram expulsos de casa e não tiveram a oportunidade de outras formas de sustento; parte, também, de mulheres que precisam sustentar seus lares e não encontram outra forma, que não a prostituição, para prover, pelo menos, uma refeição diária. 

Nós temos Raabes em nosso dia a dia que precisam ouvir sobre as maravilhas do Deus de Israel. Existem Raabes que estão sedentas por “esconder” servos de Deus em suas casas como testemunho de sua fé e da sua necessidade de consolo do Eterno.

O início de uma história de reconciliação

Lembro até hoje, quando mais nova, encontrei o nome de Raabe na linhagem de Jesus, no primeiro capítulo de Mateus; capítulo este que eu sempre pulava por achar menos importante – como se fosse possível passagem menos importante na revelação das palavras do Eterno – mas o espanto e o pavor, no melhor dos significados, em ver o nome de Raabe ali me traz à memória como Deus nos usa da maneira e quando ele quer.

Para além, Raabe é a única mulher presente na “galeria” de heróis da fé (Hebreus 11:31) porque teve plena convicção, fé, sobre quem Deus é, sobre o que ele fez e faz, e sobre seu amor e graça para com aqueles a quem Ele tanto ama.

À Raabe pertence uma história de glória, reconciliação e recomeço. Como poderia, no contexto em que vivia, um corpo renegado pela sociedade e pela religião ser parte da conquista da terra prometida? Como um corpo cujo valor era calculado por moedas poderia estar na linhagem do filho do Deus vivo? Do ventre de Raabe, houve vida que gerou vida até que o nosso Redentor estivesse entre nós, como homem, como carne, para a remissão dos pecados.

Meu desejo é que as Raabes do nosso tempo tenham a oportunidade de conhecer, ouvir e testemunhar o que Deus fez e continua fazendo em nosso meio. Que a elas seja dado o privilégio de ter, sempre perto, o conforto e o consolo dos braços do Deus de Hagar, Raabe e Maria. Que possamos oferecer às Raabes do cotidiano a paz que excede todo o entendimento e o conhecimento sobre a graça que diz que nem altura, largura ou profundidade podem nos afastar do nosso Senhor e Salvador. 


Gabriela Leite é nascida e criada na igreja batista, ama fazer parte do que Deus está fazendo no Brasil, e escreve sobre música, literatura e religião. Está nas redes como @gbrlaleite.


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

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