Por uma indignação sagrada: A esposa de Jó

Então sua mulher lhe disse: “Você ainda mantém a sua integridade? Amaldiçoe a Deus, e morra! ” (Jó 2:9 NVI)

Introdução

A história de Jó é uma narrativa intrigante. Expressões populares como “paciência de Jó” mantêm acesa uma tradição anterior à escrita do texto que hoje temos acesso. Neste estudo voltaremos nossas lentes para uma figura obscura dessa história, quase sempre demonizada pela sua fala, e propor alternativas para essa personagem, a esposa de Jó. 

 De antemão, cumpre destacar que a Bíblia é um livro formado por múltiplas tradições. Diferentemente do que imaginamos e somos levados a crer, o texto bíblico foi moldado por uma miríade de vozes distintas, oscilando entre consonância e dissonância. Além disso, frequentemente, os livros que lemos como sendo uma unidade narrativa foram escritos em momentos completamente diferentes e com objetivos muito distintos, sendo o livro de Jó um desses casos. Sandro Galazzi, biblista, nos recorda que os trechos da narrativa da história de Jó são de momentos descoincidentes, um deles muito antigo, cuja datação é absolutamente imprecisa e que talvez seja resquício de uma lenda ou mito antigo, e outra parte do texto mais recente, alocada ali em meados do século V anterior a nossa era cristã

Outra questão importante que Ivo Storniolo traz para nossa mesa de debates é  a figura de um justo sofredor como mito recorrente em outras literaturas mesopotâmicas, e que o conto, ou a narrativa de Jó talvez tenha sido influenciada por culturas vizinhas. O livro de Jó, de fato, nos coloca diante de perguntas fundamentais da fé, quais sejam: O que faz com que coisas ruins aconteçam com pessoas boas? Qual o motivo de uma pessoa justa sofrer? Como lidar com um Deus que permite que coisas terríveis aconteçam com pessoas que o temem e o amam?

Estas perguntas estão no cerne da discussão do livro de Jó, operando com as construções teológicas daquele momento histórico, sobretudo uma formulação corriqueira à época, e bastante presente em outros textos bíblicos que é a teologia da retribuição. 

Precisaremos nos demorar um pouco na teologia da retribuição pois, ainda que pareça algo muito distante de nós, ela se atualizou e se alastrou pela nossa compreensão da bíblia e ora se apresenta com uma faceta meritocrática, ora se desdobra em uma teologia da prosperidade mais agressiva que promete bênçãos em troca de fidelidade absoluta. 

A teologia da retribuição é um pensamento teológico muito presente no texto bíblico. Em nossa breve digressão para investigar tal construção, vamos passear pelo livro de Salmos, um compilado com alguns exemplares desse pensamento. Vejamos o que diz o Salmo 1:

“Como é feliz aquele que não segue o conselho dos ímpios, não imita a conduta dos pecadores, nem se assenta na roda dos zombadores!

Ao contrário, sua satisfação está na lei do Senhor, e nessa lei medita dia e noite.

É como árvore plantada à beira de águas correntes: Dá fruto no tempo certo e suas folhas não murcham. Tudo o que ele faz prospera!

Não é o caso dos ímpios! São como palha que o vento leva.

Por isso os ímpios não resistirão no julgamento, nem os pecadores na comunidade dos justos.

Pois o Senhor aprova o caminho dos justos, mas o caminho dos ímpios leva à destruição!” (Salmos 1:1-6, NVI) 

 

A canção do primeiro salmo correlaciona diretamente a fidelidade do homem a Deus e a sua prosperidade e felicidade. De acordo com essa teologia, Deus, na qualidade de doador do bem e do mal, oferece bênçãos aos bons, e pune os maus. Enquanto os justos são como a árvore plantada à beira de águas correntes e em tudo que fazem prosperam, os ímpios são palha que o vento leva. No entanto, há questões a que essa teologia não responde, e a principal delas é justamente a pergunta central do livro de Jó: “Se Deus é justo e bom, por que coisas ruins acontecem com pessoas boas?” 

O livro de Jó é um importante escrito da tradição sapiencial que se propõe a redigir uma crítica a essa teologia da retribuição denunciando suas inconsistências e que o sofrimento não pode ser usado como indicativo de uma vida de obediência a Deus ou não. Para apresentar esse argumento, a narrativa de Jó, em formato de longa peça de teatro, questiona temas como justiça divina, bondade, sofrimento e prosperidade. 

Deslocando a narrativa

Após breve introdução sobre o livro de Jó e a cultura teológica da época, vamos mergulhar nesta história, propondo questões diferentes para o texto. Em um primeiro momento vamos fazer uso da hermenêutica da suspeita, ferramenta importante para leituras feministas do texto bíblico. 

O primeiro capítulo de Jó nos apresenta um resumo de sua história. Fala de como ele era justo e íntegro, conta-nos de sua prosperidade, medida em que retrata seu cuidado em obedecer às leis de Deus. Além de riqueza, a felicidade e a abundância na vida de Jó são representadas também nos seus dez filhos, todos alegres, festejando a vida com banquetes e vivendo com tranquilidade. Há um prólogo nessa história, possivelmente adicionado ao texto posteriormente, que fala de um diálogo entre Deus e Satã. Quero ressalvar que a palavra aqui utilizada não diz respeito ao diabo que estamos acostumados em nossa narrativa moderna. Satã (ou satanás) significa adversário, e é uma figura que está muito distante da imagem de uma representação demoníaca. 

O texto do primeiro capítulo então nos apresenta uma série de tragédias que vão retirando de Jó todas as suas alegrias. Ele perde sua fortuna ao perder sua plantação e seu gado, perde a abundância e a prosperidade da vida com uma tragédia que ceifou a vida de todos os seus filhos ao mesmo tempo. Em um piscar de olhos aquele homem justo e bom simplesmente vê escorrer diante de seus olhos toda sua vida. 

Nas entrelinhas dessa narrativa principal encontramos uma mulher sem nome. O texto não nos conta absolutamente nada sobre essa esposa do justo sofredor Jó. Não sabemos seu nome. Os dez filhos de Jó, se foram todos gerados por ela, lhe custaram pelo menos 8 anos de sua vida como gestante. Não sabemos onde ela está quando chegam as notícias de que todos os seus filhos foram mortos em uma casa que desabou sobre suas cabeças. 

Como ela viveu esse luto? Como ela olhou para Deus depois de uma tragédia tão avassaladora? Será que ela ainda consegue dizer que ama a Deus? Será que ela se indignou com a complacência de Jó diante do horror? Será que ela leu na falta de indignação de seu marido uma indiferença com a vida daqueles seus meninos e meninas, que saíram de suas entranhas e que ela assistira o crescimento sonhando com o futuro brilhante de cada um? 

Essas perguntas nos ajudam a reconhecer essa mulher, nos ajudam a nos reconectar com sua dor. O livro de Jó é um livro sobre o sofrimento humano e as nossas parcas tentativas de explicar essas angústias que habitam-nos e que encarnam no corpo apagado da mulher das entrelinhas do livro. 

O grito da mulher de Jó no segundo capítulo do livro é um espaço de disputas:

“Você ainda mantém a sua integridade? Amaldiçoe a Deus, e morra!” 

Enquanto alguns fazem uso dessa fala para reforçar o papel demoníaco da mulher, alocando-a do lado do adversário, outros autores reforçam que não se pode ler esse grito sem levar em consideração a dor dessa mulher.

A primeira coisa que podemos investigar e refletir juntos aqui é a tradução deste grito. A palavra que em português é apresentada como “amaldiçoe” é a mesma que poderia ser usada para dizer “abençoe”. Ou seja, o texto precisa ser lido com essas duas possibilidades de texto. 

“Você ainda mantém a sua integridade? Amaldiçoe/abençoe a Deus, e morra!”

Sandro Galazzi nos apresenta ainda uma outra variável ao trazer a tradição grega da tradução da bíblia hebraica para nosso debate. O texto no gregro, ele explica: 

“nos apresenta, também um grito diferente que talvez nos ajude a entender a exasperação desta mulher. ‘Depois de muito tempo, sua mulher lhe disse: até quando continuarás dizendo: vou esperar um pouco mais de tempo aguardando a esperança da minha salvação. Veja aqui que desapareceu da terra a sua memória, os seus filhos e filhas, dor e trabalho do meu ventre, pelos quais sofri em vão. Você mesmo está caído, cheio de feridas e passa as noites ao relento, enquanto eu  me tornei uma mulher sem casa,vou de lugar em lugar, casa em casa, esperando o sol se por para descansar o corpo das fadigas e das dores que me atormentam. Porém, diga uma palavra ao/contra o senhor e morra” (2,9 LXX). Quanta dor nestas palavras! Todos, até Deus, só se preocupam com Jó e suas reações. Ninguém se preocupou minimamente com as reações desta mulher.”

O grito da mulher de Jó ecoou pela história e foi um espaço de julgamento e silenciamento. Durante muito tempo a narrativa hegemônica patriarcal lhe colocou como “exemplo a não ser seguido”. Exemplo de esposa ruim, pouco amável com seu marido sofredor, impaciente com a fé de Jó, o contraponto do servo sofredor que tudo suporta. Enquanto Jó silencia e não ousa se revoltar contra Deus, sua esposa não faz o mesmo, fala o que sente e é condenada por seu marido, que a chama de louca, tonta, e por toda uma tradição patriarcal que viu nela a presença do próprio Satã tentando Jó para desistir da fé. Porém, contar a história de Jó ignorando a voz embargada e a dor de sua esposa é como acessar apenas uma parte da narrativa. 

Jó está aguardando um resgate, um redentor. Paciente, aguarda que Deus o honre. Sendo inocente, não pode ser punido, não encaixa na sua percepção teológica da retribuição. Ele aguarda, portanto, por um Deus que o recompense, que dê sentido ao seu sofrimento. Sua esposa, por sua vez, grita de dor, sua voz denuncia o absurdo de um Deus que tortura seus amados injustamente. Sua voz denuncia os limites de uma teologia da prosperidade. Sua voz – demonizada pela tradição – pergunta o que ninguém tem coragem de indagar. 

A beleza da indignação: O que a esposa de Jó nos ensina hoje?

O livro de Jó é um livro de perguntas em aberto. Deus dialoga com um adversário que indaga se Ele é amado por quem é, ou se as pessoas O amam apenas pelo que Ele pode fazer. Um homem dialoga com seu Deus que se pergunta por que mesmo sendo tão bom e justo, está sendo castigado como um inimigo. Uma mulher dialoga com seu Deus e seu marido que se pergunta se ainda há validade na fé neste Deus que faz seus filhos de joguete e não se dignifica a responder os seres que Ele diz amar. 

A indignação da mulher de Jó é sagrada. A complacência de Jó diante da dor e da injustiça não é a única forma de reagir, o grito de sua esposa que denuncia a injustiça desse sistema teológico também é legítimo. Existe uma beleza oculta nesse grito/denúncia que sai da boca da mulher de Jó e nem a própria narrativa sabe o que fazer com ele. Rachel Magdalene explica que literariamente os personagens da literatura sapiencial bíblica são divididos entre sábios e tolos e defende que a esposa de Jó deve ser alocada entre os sábios. Ela enxergou o absurdo da lógica teológica antes que qualquer outro tivesse formulado sua crítica. 

A crítica da teologia da retribuição, que como mencionei ao início, encontra nesse livro argumentos contundentes para se fundamentar, surge também no grito/denúncia dessa mulher nas entrelinhas do texto. A indignação da esposa de Jó – pela qual ela tantas vezes foi condenada – é sagrada, ela descortina o absurdo do Deus de Jó, e é a esse Deus que ela o convida, quase implorando, a abandonar. A indignação desta mulher sem nome é profética, denuncia um sistema injusto que culpabiliza o pobre pelo seu infortúnio alocando o sofrimento como fruto da desobediência a Deus. 

A esposa de Jó nos fala ainda hoje. Pessoalmente, quero propor um paralelismo. Como disse anteriormente, o livro de Jó é um livro de perguntas sem respostas. Enquanto um adversário coloca Deus à prova indagando se os homens amam a Deus por quem ele é ou por causa do que Ele faz e oferece aos homens, a esposa de Jó também pergunta, com sua indignação, se o amor de Deus por ela está condicionado a um comportamento complacente como o de seu marido. Seu grito de dor é um grito de quem não entende, mas ainda assim se lança. 

Aprendemos com essa mulher que podemos nos indignar. Que a dor que sentimos, nossas lágrimas, nossa ira, tudo isso é sagrado. Aprendemos com essa mulher que podemos e devemos gritar de dor e nos lançar. Aprendemos com essa mulher que ao longo da nossa caminhada construímos imagens de Deus e teologias, e algumas delas precisam morrer para que outra coisa nasça no lugar. Foi o que aconteceu com Jó, quando finalmente deixou morrer a imagem e o que ele esperava de Deus, outras coisas nasceram. Ele não encontrou respostas, mas encontrou novas perguntas, e nelas Deus também estava. 

Uma oração para meditar

Deus que ouve nossa indignação, 

nos dê a coragem profética da mulher sem nome de Jó. Não nos permita fazer morada na dor de forma complacente. Não nos permita ser indiferentes ao sofrimento alheio. Que diante da dor do outro nós também nos indignemos como ela. Que diante da dor do outro nós também denunciemos sistemas e teologias de morte como ela o fez com seu grito de dor. Que nosso grito de dor seja grito de liberdade como o dela foi – para si e para Deus. Ruah divina que nos visita, que teu sopro de vida nos leve para lugares de vida, onde sejamos curados, onde nossas lágrimas sejam recolhidas. Nos dê a certeza de que seu amor não é uma realidade frágil e fugaz, mas que seu amor profundo é mais forte que nossa ira, que nossa indignação, que nossa dor aguda. E que nessa certeza nos lancemos seguros deste amor. 

Amém.  

 

Perguntas para reflexão individual ou discussão em grupo:

  1. Quem são as mulheres invisíveis do nosso tempo que com seu grito de dor denunciam sistemas de morte? 
  2. Como a vida da esposa de Jó se relaciona com nosso contexto atual? 
  3. Que situações que te indignam você presencia hoje? Como essa indignação pode ser usada de forma profética e sagrada? 
  4. Como ideias semelhantes à teologia da retribuição se atualizam em nosso tempo e como podemos combatê-las?

Referências

 GALAZZI, Sandro. “El grito de Job y de su mujer” In: RIBLA, Revista de Interpretación Latinoamericana. N° 52, 2005. 

 STORNIOLO, Ivo. Como ler o livro de Jó: O desafio da verdadeira Religião. Ed. Paulus, 1992. 

 GALAZZI, Sandro. “El grito de Job y de su mujer” In: RIBLA, Revista de Interpretación Latinoamericana. N° 52, 2005. P.36

 MAGDALENE, F. Rachel. “Job’s wife as hero: a feminist-forensic reading of the book of Job” in: Biblical Interpretation 14, 3. Leiden, 2006. 


Agnes Alencar é carioca, historiadora, doutoranda em Ciência da Religião e ciclista. Cristã feminista, atualmente estuda teologia na EST e faz parte do EBDcast. Gosta de chá, biscoitinhos e poesia no final do dia.


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

One thought on “Por uma indignação sagrada: A esposa de Jó

  • 28 de março de 2022 em 17:42
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    Agnes, essa é uma didática da esperança. Um dos livros mais lindos que já li na vida se chama “Falar de Deus a partir do sofrimento do inocente”, de Gustavo Gutiérrez. Ele revira Jó e Deus, você revira a esposa de Jó e Deus. Quando acionamos uma personagem bíblica estamos mexendo em ideias de Deus também… e você faz isso com essa didática amorosa e cheia de esperança. Obrigada por tudo, amiga!

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