Que castigo prevê a lei? | Vasti


Que castigo prevê a lei para a rainha Vasti, que não cumpriu a ordem do rei Assuero, transmitida por meio dos eunucos?”(Ester 1:15)

Ângela Diniz foi uma socialite brasileira nascida em Belo Horizonte. Uma mulher branca, de classe alta, conhecida como a “Pantera de Minas”. O seu histórico romântico-afetivo era bem complexo, tendo sido acusada pelo próprio ex-marido de sequestrar a filha e condenada a 6 meses de prisão. No ano seguinte, foi presa mais uma vez por possuir 100 gramas de maconha em sua residência.

Mas o caso que eu gostaria de contar não envolve as situações acima. Aos 32 anos, um ano antes de Cristo, Ângela foi assassinada em uma casa na Praia dos Ossos, no Rio de Janeiro, logo após ter posto fim ao seu relacionamento de pouco mais de quatro meses. Conhecido como “Doca Street”, o seu assassino e namorado era empresário e foi condenado à prisão por dois anos com direito a sursis, uma suspensão condicional da pena mediante a “conduta social do infrator”. Por já ter cumprido sete meses da pena (um terço), Doca saiu livre do tribunal.

Um artigo da revista Veja divulgado em 24 de outubro de 1979 afirma que Doca sustentou em julgamento ter dado quatro tiros no rosto da mulher por “legítima defesa da honra” depois de ter sofrido uma “violenta agressão moral”. Ele tinha se transformado em um herói romântico. “Matei por amor”, alegou. Isso foi suficiente para resgatar sua liberdade.

Essa decisão motivou uma série de levantes feministas em protesto contra a violência doméstica sob o lema “Quem ama, não mata”. A pressão dos movimentos populares levaram a um novo julgamento de Doca e, em 1981, ele foi condenado a 15 anos de prisão. Doca morreu em 2020, com 86 anos. 

Agora, gostaria de contar a história de uma outra mulher que, assim como Ângela, era muito rica e admirada pela sua beleza. Vasti era rainha da Pérsia e casada com o rei Assuero. Ao terceiro ano de seu reinado, o rei decidiu dar um banquete aos seus oficiais e servidores. Após sete dias de bebidas dos mais variados tipos, Assuero pediu que seus eunucos levassem a rainha até ele usando a coroa real — quase um fetiche. “Ele queria mostrar aos povos e aos príncipes a beleza dela, pois ela era muito bonita” (Ester 1:11b). Mas, assim como Ângela Diniz, Vasti disse não e isso foi o suficiente para enfurecer o rei, que “se inflamou de raiva”(v. 12).

Após isso, o rei foi consultar aqueles que “conheciam a lei e o direito” (v. 13)  para descobrir “que castigo previa a lei” para Vasti, sua esposa, por não se permitir abrir mão da vontade sobre o próprio corpo. A rainha não havia ‘ofendido a honra’ apenas do rei, mas também de “todos os príncipes e todos os povos de todas as províncias de Assuero” (v. 16). A notícia do “não” dito por uma mulher para um homem chegaria a todas as mulheres e meninas do reino, e todas elas “desobedeceriam seus maridos” (v. 17) por conta de Vasti. Entre Vasti e Ângela, rodeiam-se os dispositivos de poder do sistema de gênero e, principalmente, da masculinidade como sinônimo de humanidade. 

A Bíblia não conta mais nada sobre a rainha que recusou o rei. A história segue e quem ganha relevância nesse livro é Ester, a menina judia que é empossada como rainha no lugar de Vasti e foi usada por Deus para salvar o povo hebreu que vivia exilado no território persa. Assim, o conflito também se torna racial. Ester precisou omitir que era judia para ser considerada bonita por Assuero. Obviamente, as instituições sociais que hoje chamamos de “gênero” e “raça” não aconteciam da mesma forma nas relações sociais vividas na história antiga e pré-moderna, mas os seus pressupostos já mobilizavam diversas violências, principalmente nos corpos das pessoas que se apresentavam socialmente como “concubinas, esposas, servas”, ou seja, mulheres.

A intenção do autor do texto ao registrar a história de Vasti talvez estivesse concentrada no aparente “pecado” cometido pela rainha da Pérsia contra o seu marido, ao mesmo tempo em que  Ester havia sido “um exemplo” ao ter decidido usar o seu corpo para agradar aqueles homens. Hoje, no entanto, gostaria de retirar o caráter moralmente negativo atribuído à insubmissão de Vasti. E também o sentido positivo associado à postura de Ester única e simplesmente por não ter desrespeitado homem algum e que, por isso, teria sido “recompensada por Deus” ao se tornar rainha. Nem tudo precisa ser reprovável ou louvável. Essas duas mulheres, assim como Ângela Diniz, fizeram algo em comum: não abandonaram a sua vontade sobre os próprios corpos. 

Ainda hoje, na maioria das igrejas evangélicas no Brasil, mulheres, pessoas pretas e LGBTQI+ ainda sofrem com a pergunta de Assuero aos sábios de seu tempo: “Que castigo prevê a Lei?”. E, geralmente, a resposta é semelhante. Se antes servíamos em ministérios, liderávamos pequenos grupos, participávamos do Louvor, pregávamos a palavra, agora, depois que assumimos o poder sobre nosso próprio corpo, não seremos dignas de ocuparmos a posição que haviam cedido para nós até então. As únicas pessoas que têm direito de pertencerem a si mesmas coincidentemente sempre são homens cisgêneros, heterossexuais, brancos e monogâmicos que estejam alinhados estritamente ao discurso da pureza (apenas ao discurso, já que a prática nem sempre é relevante.)

O problema é que sempre são eles que possuem capital político suficiente para manterem-se na posição que ocupam e preservarem o mecanismo tecnológico das opressões. Na história bíblica, Assuero envia uma carta “a todas as províncias do reino, a cada província segundo o seu modo de escrever e a cada povo segundo a sua língua: que cada homem fosse senhor em sua casa” (Ester 1:22). E assim, até o final dos tempos, a história se repete sem que nada de novo aconteça debaixo do sol. Eles continuam articulando os dispositivos institucionais do Estado e do capital para cristalizarem sua localização política no território.

E saber disso me assusta, porque eu, travesti, estou escrevendo um protótipo de um estudo bíblico que se pretende cristão para o mês da mulher. Que castigo prevêem as leis contra mim? Eu deveria estar neste lugar? Eu deveria sequer insistir no evangelicalismo brasileiro que, muito provavelmente, nem sentiria falta da minha devoção? Eu honestamente não sei responder nenhum desses questionamentos. Mas continuo aqui, escrevendo um contra-estudo bíblico, possivelmente “herético”, sem abandonar meu corpo. 

Perguntas para refletir:

  • O que (ou quem) tem tirado a sua autonomia sobre seu próprio corpo?
  • A que castigos somos submetidas quando afirmamos nossa autonomia?
  • Seguindo os passos de Vasti, de que forma podemos resistir à cultura da pureza em nossas igrejas?

Feliz mês da mulher e de todas as mulheridades. Que sejamos todas Vasti.


Allie Terassi é travesti, bissexual e cristã. Atua como coordenadora de Advocacy pelo Evangélicxs pela Diversidade em São Paulo. É graduanda em Humanidades e Relações Internacionais e pesquisadora em Estudos de Gênero e Teoria Queer.


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

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