Transcrição: Redomascast 94 – Sylvia Riveira

Ouça. [Pausa] 

Ouça o som da minha voz.

Trilha: Our Story Begins – Incompetech

Discurso de Sylvia: https://youtu.be/T2CU7IAGduw

O discurso que acabamos de ouvir, rouco, rasgado e indignado é proferido por uma mulher que lutou para falar naquele comício. Era junho de 73 em Nova Iorque e, no palco da Parada Gay, essa mulher se anunciou como drag queen e disse que não haveria movimento gay sem elas. Entre xingamentos e acusações, ela denunciou que já tinha sido agredida, presa e que teve muitas perdas por causa de sua atuação no Movimento Gay. Aquelas pessoas não a queriam ali. Ela gritou que acreditava na revolução, no gay power, mas muitos não a queriam ouvir. Depois dessa marcha, essa mulher tentou suicídio, abandonou o movimento por 20 anos e sofreu episódios depressivos recorrentes.

Eu estou aqui para contar a história dessa mulher, que ajudou a construir as bases do que conhecemos hoje como Movimento LGBT. Em meio a todas as tensões e disputas políticas que marcaram o nascimento e os primeiros anos do chamado Movimento Gay nos Estados Unidos, especialmente após os eventos de StoneWall, uma coisa é certa: essa mulher tem um papel central, mas não do jeito que imaginamos. 

Trilha:  Abertura do Redomascast

Sejam bem vindes a mais um Redomascast, eu sou Allie Terassi e esse é um dos episódios especiais do mês da mulher, no Projeto Redomas. Esse programa é no formato de contação de história e eu recomendo que você utilize um fone de ouvido para perceber melhor os efeitos sonoros. Se você gostar desse programa, compartilhe nas suas redes sociais, com as amigas, amigos e amigues, manda no zap da família. Considere também contribuir financeiramente com o Projeto Redomas no Catarse, nossa plataforma de financiamento coletivo. A partir de 5 reais você nos ajuda a pagar os custos de manutenção do site e do podcast. O link pra nos ajudar está na descrição desse episódio e na aba “apoie” do nosso site, que é projetoredomas.com.

Vou te conduzir aqui no Redomascast em uma jornada pela vida de Sylvia, Sylvia Rivera. Ativista, de sangue latino, pioneira, mulher trans que junto com Marsha P. Johnson, sua melhor amiga, foi referência no movimento LGBT nos anos 70 e 80. Mas não me interessa apresentar apenas a trajetória política da mulher que participou de StoneWall. Eu quero mostrar pra você a riqueza de uma vida completa, potente e cheia de cuidado pelas suas irmãs e irmãos trans, travestis e transgêneres que não tinham lugar. Sylvia, como eu, foi uma vida complexa, cheia de contradições, que amou tanto e tão devotamente a vida… Ela alimentou, acolheu e aqueceu corpos indesejados como o dela. Foi uma voz dissidente. Sylvia amou Deus e pra mim é uma honra contar sua história. 

Trilha:  Eu Não Vou Morrer – Ventura Profana

Não sei se você ficou curiosa com a multiplicidade de termos e conceitos que parecem não fazer muito sentido hoje. Uma mulher trans que se anunciou como drag queen e que cobrou um posicionamento do grupo gay que a impedia de falar, para requisitar uma maior atenção para a comunidade transgênera. Não parece tudo muito misturado?

Sylvia nasceu nos anos 50, em Nova Iorque e fiz questão de marcar seu sangue latino, pois ela era filha de um pai porto-riquenho e uma mãe venezuelana. Eu pesquiso gênero e diversidades, então falar que pessoas possuem múltiplas identidades que são transitórias, e que dançam ao longo da vida, é algo que julgo fácil de entender. Somos uma mistura dessas identidades. Por exemplo, você pode ser uma professora, mulher negra, nascida no interior do Maranhão e que escreve poemas nas horas vagas. Sua vida é levar pra lá e pra cá cada uma dessas identidades, acessando quando for necessário ou seguro.

O mix Sylvia Rivera parece incoerente hoje, já que a identidade drag queen como conhecemos não fazia parte do cotidiano de vida dela. Ela não criava personagens com o próprio corpo e não trabalhava em apresentações artísticas, ela não era uma performer. Era uma mulher transgênera, mas em uma Nova Iorque nos anos 70 e 80, que ainda buscava entender as bichas ruidosas de suas boates, o debate de gênero era pouco acessível, especialmente para a população que Sylvia fazia parte e se envolvia, que vamos conhecer mais pra frente.

Mas era era latina sim, é importante não embranquecê-la, ao mesmo tempo em que era muito americana. Entende agora como funciona a dança das identidades? Ela foi criada pela avó após o suicídio da mãe e sofreu tanto com as cobranças sobre seus trejeitos muito “femininos”, que saiu de casa aos 11 anos para se prostituir na rua 42, reduto de drag queens e profissionais do sexo. Uma criança que abandonou a escola, foi adotada e rebatizada pelas drags que dormiam com ela na rua. 

Sylvia.

Trilha: Preciso Me Encontrar – Liniker e os Caramelows

Viver nas ruas da periferia de Nova Iorque foi o ponto de partida para o maior projeto da vida de Sylvia Rivera. Junto com Marsha P. Johnson, fundou a STAR (Street Travestite Action Revolutionaries), uma casa que acolhia jovens trans que não tinham um lar. Além da atuação com suas iguais, Sylvia também estava envolvida com as lutas pelos direitos civis das pessoas negras e com organizações precursoras do Movimento Gay. Em entrevista para o jornalista Eric Marcus, em 1989, ela relata de onde partiram seus interesses de luta. 

Ela disse: “Antes dos direitos dos homossexuais, antes de StoneWall, eu estava envolvida no movimento pela libertação da população negra e no movimento pela paz. Eu tinha tempo e sabia que tinha que fazer algo. Meu sangue revolucionário estava nascendo naquela época”

Ouça. [Pausa] 

Ouça o som da minha voz.

Entrevista de Sylvia sobre Marsha P. Johnson: https://youtu.be/ajggl4KBCm0

Eu traduzo pra você: Sylvia diz que a vanguarda e a primeira fila da luta pelos direitos, naquela época, eram das drag queens. Eram elas que enfrentavam a polícia. Mas eu preciso derrubar um mito aqui: talvez Sylvia Rivera não tenha participado da semana dos violentos eventos de StoneWall. Pois é. Pessoas que participaram daquela fatídica noite, e até sua melhor amiga, afirmaram em entrevistas que ela não estava lá. Sua participação pode ter sido incluída na história a partir de uma ficção inventada pela própria Sylvia. Seria essa uma maneira que ela encontrou de se afirmar como pioneira? De se inscrever em um momento histórico, que foi vitrine para o mundo das violências cometidas contra as LGBT pela polícia nova iorquina? 

Identidade contradição.

Trilha: Diaba – Urias

A pesquisadora americana pelos direitos LGBT, Riki Wilchins, comenta sobre essa linha de frente. Ela afirma que o Movimento Gay foi fundado por pessoas como Sylvia, pessoas racializadas, negras e de baixa renda. Moradoras de rua, profissionais do sexo. A questão é que não é esse o rosto que o movimento pelos direitos LGBT quer apresentar ao mundo. É por isso que não conhecemos a história de Sylvia Rivera, nem de outras mulheres trans. Ela foi uma mulher constantemente silenciada, que sofreu violência, foi expulsa de sua família, acolhida pelas suas iguais. Ela não é um ícone único, ela é muitas. 

Minha história toca a dela, ela é muitas. Sylvia é cada pessoa assassinada no país que mais mata a população T no mundo, é cada lágrima abafada durante as inúmeras rejeições, é não ser amada, é a dificuldade de emprego, de acesso à saúde, de um lugar para dormir. 

Eu sou Sylvia, ouça o som da minha voz.

Trilha: Oração – Linn da Quebrada

Entrevista com Sylvia (23:19s – 23:57s): https://youtu.be/2V1b6cUEtew

Risadinhas ótimas, não é? Dizem que ela era brava, difícil de conviver, furiosa, que não era bagunça. Sylvia abandonou do nada essa entrevista que ouvimos para falar com alguém na rua, e o repórter aproveitou o momento para mostrar a cerveja que ela bebia. Era cedo pela manhã e ele comenta que a bebida é o segredo dela para ser saudável. Ela volta, ri e retruca dizendo que só queria beber sua cervejinha e se embebedar um pouco. Seu corpo sofreu bastante com o abuso de álcool, cigarro e outras drogas durante a vida. O que foi matando seu corpo aos poucos também foi a pobreza, o racismo, as sucessivas prisões, a transfobia diária.

Já no fim da vida, Sylvia encontrou uma comunidade de fé. Ela frequentou assiduamente a Metropolitan Community Church de Nova Iorque, igreja que a ofereceu uma perspectiva diversa, queer, acolhedora e positiva de fé. Um acolhimento tão grande que, participando dessa comunidade, ela resolveu retomar o projeto da STAR, agora amparada pela sua igreja. 

O maior legado dela não foi StoneWall, esqueça isso. Ela alimentou irmãs e irmãos. Preparou uma mesa posta para recebê-las e recebê-los. De salto, maquiagens borradas, magrinhas, barulhentas, fumando, todas podiam chegar. A irmã Sylvia serviu na comunidade como a responsável pela distribuição de alimentos e refeições para quem tivesse fome. Era sensível e preocupava-se prioritariamente com o acolhimento de crianças e jovens trans. Na igreja em que serviu, hoje há um ministério fixo, responsável por continuar a distribuição de comida iniciado por ela, e o Sylvia’s Place, um abrigo-residência para jovens trans que oferece, além de um lugar para ficar, atendimento médico, jurídico, psicológico e mediação para empregos.

Trilha: Prelude in C – Incompetech

Neste momento tenho duas coisas significativas aqui na minha frente. O obituário de Sylvia Rivera, publicado no New York Times em 2002, e uma fotografia. Sylvia morreu aos 50 anos de câncer de fígado. Seu pastor [Conferir pronomes corretos para Rev. Pat Bumgardner em 2022] comunicou sua morte. Ela estava morando em uma casa coletiva para pessoas trans e travestis e morreu ao lado de sua companheira. Do início ao fim, as travestis só têm as travestis. No Brasil, a expectativa de vida para pessoas transgêneres é, em média, de 35 anos. Sylvia transcendeu. 

Eu vejo uma mesa. E nela muita gente, um povo animado… Mas como come esse povo, como riem. No meio delas, vejo a mais debochada, vestida com uma camiseta escrita “Fabulous!”. Um meio sorriso, as sobrancelhas finas que arqueiam ao soprar a fumaça do cigarro. “Digam às convidadas, o jantar está pronto”. Sentem-se, falem, quero ouvir o som das suas vozes. 

Trilha: AmarElo – Emicida, Majur e Pabllo Vittar

[Obituário]

https://www.nytimes.com/2002/02/20/nyregion/sylvia-rivera-50-figure-in-birth-of-the-gay-liberation-movement.html

Antes de encerrar o programa quero agradecer a Paloma Santos, que fez a pesquisa e escreveu esse roteiro. Você conferir a transcrição deste programa completo em nosso site, projetoredomas.com. Obrigada a você que ouviu até aqui e até o próximo redomascast, tchau!

 

Roteiro: Paloma Santos

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