Transcrição: Redomascast 95 – Juana Inês de La Cruz

Sejam bem vindes a mais um Redomascast, eu sou Luciana Petersen e esse é um dos episódios especiais do mês da mulher, no Projeto Redomas. Esse programa é no formato de contação de história e mais uma vez, eu recomendo que você utilize um fone de ouvido para perceber melhor os efeitos sonoros. Se você gostar desse programa, compartilhe nas suas redes sociais, com as amigas e amigos, manda no zap da família. Considere também contribuir financeiramente com o Projeto Redomas no Catarse, nossa plataforma de financiamento coletivo. A partir de 5 reais você nos ajuda a pagar os custos de manutenção do site e do podcast. O link pra nos ajudar está na descrição desse episódio e na aba “apoie” do nosso site, que é projetoredomas.com.

No episódio de hoje, vamos contar a história de Juana Inés, uma Freira e poeta mexicana, que se eternizou na história como uma das grandes poetas do México colonial. No decorrer desse podcast, vamos falar de suas obras, citar alguns de seus poemas e certamente vamos contar sobre sua vida, que assim como a vida de inúmeras mulheres nos dias atuais, foi repleta de desafios e obstáculos a serem superados. Espero que gostem, pois eu amei conhecer e compartilhar essa história aqui com vocês. Ahh Vamos lá?!

Trilha: Baroque Guitar Music in New Spain

Juana Inés de Asuaje y Ramirez, nasceu em San Miguel Nepantla, cidade localizada em território do México. Embora haja controvérsias sobre a data específica sobre seu nascimento, registros religiosos apontam para o ano de 1648. Juana era filha de um Capitão Espanhol Pedro Manuel de Asbaje e de Isabel Ramírez de Santillana, que era intitulada como Criolla. Esse termo tem uma definição diferente do que no Brasil, no México colonial os criollos eram descendentes de espanhóis nascidos na América, eles ocupavam uma posição social considerada inferior aos espanhóis nascidos na Europa. Alguns registros apontam para a ausência do Pai de Juana em sua vida. Grande parte da infância de Juana foi vivida na fazenda de seu avô materno juntamente com a sua mãe.

Trilha: Jungle Music & Tribal Music – Lost Rainforest

Entre 1521 e 1810 o México colonial era chamado de Nova Espanha. Antes da chegada dos colonizadores, as grandes nações dos olmecas, toltecas, teotihuacanos, zapotecas, maias e astecas já habitavam os territórios que hoje conhecemos como México. Juana nasce em meio ao período de colonização destas terras, um período de invasão, roubo e muitas mortes, geradas pela violência mas também pelas doenças que os espanhóis trouxeram.

A colonização Espanhola, assim como a Portuguesa, produziu e produz uma sociedade com diversas desigualdades e estruturas de opressão. Em 2019 o presidente Andrés Manuel López Obrador deu uma declaração dizendo que a Espanha e o Vaticano deveriam se desculpar aos indígenas mexicanos pelos abusos cometidos contra eles. Este pedido foi fortemente negado pelo governo espanhol que afirmou “que os povos mexicano e espanhol sempre conseguiram avaliar suas história comum sem ódio e a partir de uma perspectiva construtiva”. Em 2021 fizeram 500 anos da conquista de Tenochtilán pelos espanhois, essa batalha é considerada a queda do império Asteca e o inicio oficial da colonização espanhola no território mexicano. Em 2015 o Papa Francisco, que é argentino, pediu perdão pela colonização da Bolívia e a participação da Igreja em crimes contra os povos nativos durante o período colonial nas Américas.

Trilha: The Model – Balanescu Quartet

Juana Inés ainda criança, já demonstrava ser um prodígio. Seu primeiro contato com a leitura foi na biblioteca particular de seu avô, onde o interesse pela leitura e a escrita cresciam cada dia mais. Octavio Paz, em sua obra Biográfica sobre Juana, nos conta que aos três anos de idade, a pequena Juana pediu à professora de sua irmã que a ensinasse também, e aos seis anos ela já sabia ler e escrever. Ainda menina, Juana pediu à sua mãe que a vestisse de homem, para que ela pudesse ir à Universidade e assim continuar os seus estudos. Em seus poemas, ela já demonstrava seu desejo de almejar cada dia mais o conhecimento:

[Sonora: voz da Juana interpretada por Rafaella Coury]

“A perseguir-me, mundo, que tanto prezas?
Em que te ofendo, se meu só intento
é por belezas no meu entendimento
e não meu entendimento nas belezas?

Eu não estimo tesouros nem riquezas,
e assim sendo, muito mais me contento
de pôr riquezas no meu entendimento
que meu entendimento nas riquezas.”*

A inquietude da pequena Juana não a levou apenas ao ato de aprender a ler e escrever, mas também a tornou uma menina disposta a vencer as limitações e proibições impostas no campo dos gêneros, já que algumas atividades, inclusive a de estudar, só eram permitidas aos homens. Sendo curiosa e também inteligente, não somente a infância de Juana, mas também todas as suas fases e vivências, foram repletas de desafios, descobertas e questionamentos.

[Sonora: voz da Juana interpretada por Rafaella Coury]

“O que nós mulheres podemos saber além de filosofias culinárias? Bem disse Lupercio Leonardo, se pode muito bem filosofar e apimentar o jantar. E costumo dizer vendo essas coisinhas: se Aristóteles tivesse cozinhado, teria escrito muito mais.”

Trilha: Mi Esencia – Thiago Brado

Aos 16 anos de idade Inês entrou para uma comunidade Carmelita, uma ordem religiosa católica que segue uma vida eremítica de oração e silêncio, onde ficou poucos meses e logo em seguida entrou para a ordem de São Jerônimo. Nela, ela levava uma vida de oração assídua, silêncio, penitência animosa, com regras flexíveis. No convento ela decidiu se tornar freira para poder livremente seguir com seus estudos.

A casa das Jerônimas era exclusiva às moças das melhores famílias, com quartos espaçosos, escravas e criadas, as freiras podiam receber visitas e usar jóias. Nessa época na Nova Espanha foram criados vários conventos porque eles geravam atividades econômicas através dos trabalhos das freiras e de suas famílias. Os conventos que abrigava freiras espanholas não eram o mesmo que abrigava as freiras criollas. Durante muito tempo ela trabalhou como contadora no convento. Juana Inês conseguia em alguns momentos estudar filosofia, mitologia e ler muitos livros que na época eram proibidos para as mulheres.

Trilha: Gallarda – Santiago de Murcia (Códice Saldívar IV, ca. 1732)

Existem alguns relatos que dizem que Juana Inês se apaixonou pela condessa de Paredes, uma mulher que amava arte e era sua patrona, ou seja mantenedora. Muitos dizem que alguns poemas foram dedicados a condessa:

[Sonora: voz da Juana interpretada por Rafaella Coury]

“Ser mulher, nem estar ausente,
não é de amar-te impedimento;
pois você sabe que as almas
ignoram distância e sexo.”

Essas especulações e suas ideias subversivas fizeram com que a história de Juana fosse abafada, não ensinada na Igreja e que pouco conhecimento fosse construído sobre ela. De fato, os poemas escritos para a Condessa são bastante explícitos e é difícil imaginar que possam ter outras interpretações. Não sabemos com certeza se Juana viveu esse romance, mas sabemos que ela escrevia a respeito dele. Em 2016 a Netflix disponibilizou uma série produzida pelo Canal Once que conta a história de Juana Inês. Na série, ela é representada como uma mulher poderosa, freira feminista, homossexual e que resiste os costumes mexicanos no século XVII.

Juana Inês sofria ataques religiosos por suas obras, um trabalho intelectual feminino, e ela respondia os ataques através de sua escrita, onde ela podia ecoar sua voz. Ela defendia o direito da educação e dos estudos para as mulheres. Quando Juana resolveu dedicar seus estudos à teologia foi repreendida pela cúria dirigente da Igreja Católica e, como castigo, acabou perdendo acesso a todas suas obras que eram conservadas em sua biblioteca no convento.

Apesar de escrever bastante, Juana afirmou que apenas uma vez escreveu um poema com verdadeiro gosto, o qual ela se refere como “Sueño” e os pesquisadores de sua vida acreditam se tratar do poema “Primero Sueño”.

Nesta obra, a autora faz uso do seu conhecimento literário para realizar um paralelo ao poema “Soledades” de Luis de Góngora y Argote. Ela escreve usando a mesma métrica, forma e vocabulário do poema original, mas enquanto este trata sobre uma alma livre que viaja, contemplando questionamentos sobre o humano em sociedade, a versão de Juana substitui a alma pelo intelecto: um intelecto alado sobrevoa o mundo, enquanto busca se elevar. As figuras do texto são formas geométricas, obeliscos e pirâmides no espaço de um universo infinito, alusões claras aos conhecimentos humanos. Nesse poema, Juana retrata sua busca insaciável pelo conhecimento.

Trilha: Madre la de los primores by Juana Inês de la Cruz

Juana é muito conhecida como poetisa, mas sob perspectiva histórica, algumas de suas produções mais interessantes são suas cartas onde questionava ideias e atitudes de outros líderes religiosos.

Em 1690, Juana publica uma crítica a um sermão do jesuíta português António Vieira, um dos maiores influenciadores políticos do século 17, onde ela afirmava que dogmas e doutrinas são produto da interpretação humana, e que esta nunca é infalível.

Esse texto, intitulado Carta Atenagórica, gerou uma grande polêmica tanto nas Américas quanto na Espanha. Chegou a Inquisição Espanhola, mas esta declarou não conter conteúdo herético. Mesmo assim, Juana recebeu diversas críticas e ameaças, além da acusação de heresia continuar no México.

A inquisição não foi um fenômeno apenas espanhol, mas presente em quase toda Europa e América colonial durante a Idade Moderna. A Inquisição Espanhola ou Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, buscava reforçar os valores católicos nos reinos espanhóis, buscando por hereges, aqueles que não seguiam a fé católica corretamente, e os julgar neste tribunal. Na prática a Inquisição era uma ferramenta de perseguição a todos que não eram católicos: judeus, mulçulmanos, povos indígenas americanos e africanos, pagãos e protestantes. Quando pensamos em Inquisição pensamos em bruxas, mas no caso da versão espanhola deste tribunal o foco não era na bruxaria, mas quando acontecia elas eram classificadas como hereges.

As punições da Inquisição variam entre detenções, julgamentos, confisco de bens, torturas e até condenações à morte. Até hoje os números de vítimas e registros históricos das inquisições são debatidos pelos historiadores então não podemos dar dados fechados e concretos a respeito disso. Mas o que podemos falar é que, independente da quantidade de vítimas de sua crueldade, a Inquisição foi um mecanismo de controle perverso e se instrumentalizou a religião cristã para promover o medo e a morte.

Após essa publicação, foi recriminada pelo Bispo de Puebla, que escreveu sob o pseudônimo Sor Filotea de la Cruz uma crítica a atitude da freira, dizendo que ela deveria se preocupar mais com a religião do que com estudos seculares e ainda que nenhuma mulher deveria se esforçar para aprender certas questões filosóficas.

Diante dessa afirmação, Juana escreve novamente, agora respondendo ao Bispo. Em “Respuesta a Sor Filotea de la Cruz” ela reclama os direitos das mulheres à educação e aponta várias mulheres eruditas, como Hipácia de Alexandria, filósofa neoplatônica assassinada por cristãos no ano de 415. Mas, principalmente, a freira escreve sobre si.

[Sonora: voz da Juana interpretada por Rafaella Coury, som de escrita ao fundo]

“Desde que a primeira luz da razão me atingiu, minha inclinação para as letras foi tão veemente e poderosa, que nem mesmo as reprimendas externas – e tive muitas – nem minhas próprias reflexões -que não foram poucas -, bastaram-me para deixar de seguir este impulso natural que Deus colocou em mim. Sua Majestade sabe por que e para quê; e Ele sabe que lhe pedi que apague a luz do meu entendimento, deixando apenas o suficiente para guardar a Sua Lei, porque o resto é supérfluo, segundo alguns, numa mulher, e ainda há quem diga que faz mal.”

Trilha: The Model – Balanescu Quartet

Nessa carta, Juana faz uma defesa pública, expondo parte de sua vida, como sua tentativa fracassada de ingressar na universidade, sua paixão por conhecimento ao longo da vida e os sofrimentos que isso lhe causou.

“A Respuesta” soa mais diretamente como um texto que chamariamos de feminista, mas mesmo em “Primero Sueño” Juana já escrevia sobre a posição da mulher enquanto intelectual. Na poesia Homens Nécios, Juana faz uma contundente crítica feminista, ela percebeu que os homens culpabilizam as mulheres estejam elas tentando se encaixar aos seus padrões, fugindo deles ou sendo vítimas desse sistema. Ela aponta como são os próprios homens os culpados pelas acusações que fazem às mulheres. A biógrafa Dorothy Schons considera Juana Inés a primeira feminista das Américas.

[Sonora: voz da Juana interpretada por Rafaella Coury]
..Homens néscios a acusar
às mulheres sem razão,
sem ver que são a ocasião
do que as estão a culpar.

..Se com ânsia sem igual
estimulam seu desdém,
por que querem que obrem bem
se as incitam para o mal?

..Combatem sua resistência,
e em seguida com maldade
dizem que foi leviandade
o que fez sua insistência.

[…]

..Com o favor ou o desdém
o resultado é igual:
se queixam, se os tratam mal;
enganam, se os querem bem.

[…]

.Parem de tanto insistir
e depois com mais razão
à atitude acusarão
da que então os seduzir.

..Com muitas armas ao fundo
luta sua prepotência,
pois em promessa e insistência
juntam diabo, carne e mundo.

Trilha: Suavidad el Aire Inspire (Aria de la Asunción de Nuestra Señora)

Apesar de seu texto de auto-defesa, as acusações de heresia continuaram. Nos anos seguintes, Juana abandona a escrita e doa a sua biblioteca. Mais tarde ainda ela se apresenta a Inquisição com um pedido de misericórdia: escreve duas cartas pedindo perdão pelo seu pecado e afirmando sua fé. Alguns biógrafos relatam que nesse período a escritora chegou num nível extremo de penitência, com auto flagelamento e necessitando acompanhamento de seu confessor.

Ela segue sua vida dedicando-se a essa penitência e a serviços de caridade. Os críticos católicos mais conservadores enxergam esse ponto como seu momento de aceitação da fé, dizendo que ela finalmente “voou para a perfeição”- essa expressão lhe garantiu o apelido de “Fênix do México”. Para outros críticos, esse momento caracteriza uma submissão diante da perseguição que ela sofria.

Juana morreu aos 43 anos, depois de contrair a praga que tomou seu convento, enquanto cuidava de outras irmãs.

Hoje conhecemos a história de uma mulher que ousou romper as limitações de seu tempo e que viu na vida monástica, uma possibilidade de transgredir as leis sexistas de sua época, para poder dedicar a sua vida às leituras e aos estudos. Quando nos aprofundamos na vida de Juana e refletimos sobre os espaços ocupados pelas mulheres nos dias atuais, vemos que é impossível não lembrar e falar das amarras sexistas que ainda tentam negar a participação da mulher de forma autêntica nos mais variados espaços da sociedade, até mesmo dentro dos Templos religiosos.

Juana em suas obras, se apresenta para nós como uma mulher livre, uma liberdade que nos alcança nos dias atuais e que nos traz a memória que foi para a Liberdade que Cristo nos chamou. Que a ousadia e a coragem de Juana nos ajude a denunciar todas as amarras de opressão e que possamos lembrar que há sempre um lugar para a mulher, nos espaços societários e também no corpo de Cristo, no qual ele é o cabeça e a nosso protagonismo nele jamais será secundarizado ou inferiorizado.

Trilha: Antipatriarca – Ana Tijoux

Antes de encerrar o programa, eu gostaria de agradecer a todas as pessoas que estão envolvidas nesse projeto e que contribuíram para que esse Podcast fosse realizado. Agradecer a Andressa Nogueira, a Débora Ortman e a Rafaela Barreto que foram responsáveis pelo roteiro e também gostaria de agradecer a Rafaella Coury, que interpretou a Juana nesse programa, foi brilhante e impecável! Obrigada por isso, Rafa.

Obrigada a você também que ouviu a história e nos acompanhou até aqui! Te esperamos no próximo redomascast, Tchau!

 


Fontes dos textos citados:
*poema “Queixa-se da sorte: insinua sua aversão aos vícios e justifica seu divertimento às Musas” de Juana Inés http://culturafm.cmais.com.br/radiometropolis/lavra/soror-juana-ines-de-la-cruz-queixa-se-da-sorte

A Respuesta https://www.ensayistas.org/antologia/XVII/sorjuana/sorjuana1.htm

https://www.poder360.com.br/internacional/mexico-pede-que-espanha-se-desculpe-por-colonizacao-dw/

https://www.google.com/url?q=http://medianeiro.blogspot.com/2007/05/poema-sor-juana-ins-de-la-cruz.html&sa=D&source=docs&ust=1647008536818542&usg=AOvVaw2g-4n7950o0tvO3r9aZXwZ

Vida religiosa: https://epoca.oglobo.globo.com/cultura/noticia/2018/01/sor-juana-ines-de-la-cruz-uma-feminista-barroca.html

https://revistas.pucsp.br/index.php/cordis/article/download/21934/16115/56263

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