Transcrição: Redomascast 96 – Vovó Bernaldina

Trilha: abertura do Redomascast

Sejam bem vindes a mais um Redomascast, eu sou Isadora Nascimento e esse é um dos episódios especiais do mês da mulher no Projeto Redomas. Este programa é no formato de contação de história e eu recomendo que você utilize um fone de ouvido para perceber melhor os efeitos sonoros. Se você gostar desse programa, compartilhe em suas redes sociais, com as amigas e amigos e com a sua família. Considere também contribuir financeiramente com o Projeto Redomas no Catarse, nossa plataforma de financiamento coletivo. A partir de 5 reais você nos ajuda a pagar os custos de manutenção do site e do podcast. O link pra nos ajudar está na descrição desse episódio e na aba APOIE do nosso site. 

Hoje vamos contar a história de Bernaldina José Pedro, ou Vovó Bernaldina. Ela foi uma grande ativista indígena, atuante na luta pela demarcação das terras dos povos nativos e pelo fortalecimento da cultura e espiritualidade de seu povo. Sua fé e luta a levaram a encontrar pessoalmente o Papa Francisco para entregar uma carta de reivindicações. Bernaldina também foi mais uma vítima da covid-19, mantendo seu espírito combativo até a morte.

Sua história é bastante recente e traz à tona discussões que estamos vivendo hoje. E nada melhor do que pensar nesse debate através de um podcast, ainda mais se for de contação de história. 

Trilha: Canto indígena por Vovó Bernaldina

Trecho de entrevista com Vóvó Bernaldina, ela diz: “Nossa terra é nossa mãe. Se não tiver terra, como é que faz?” Trilha: Our Story Begin – Incompetech

Trilha: Beauty Flow – Incompetech

Como sua própria voz anuncia, a luta pela terra sempre foi um dos pontos mais importantes da vida de Vovó Bernaldina, também chamada de Vó Bernal. Essa luta se manteve ao longo de toda a sua vida, e se confunde com seu enorme legado de cultura, espiritualidade e ativismo político.

Nascida em 25 de março de 1945, Koko Meriná Eremu, ou Bernaldina José Pedro, cresceu na Guiana, na porção norte da Amazônia. Ela fazia parte da etnia Macuxi, povo indígena que reside na região do Monte Roraima, localizado na fronteira entre Guiana, Venezuela e Brasil. Ao longo da infância, Bernaldina foi aprendendo a se relacionar com a natureza, retirando dela sua cura e sustento. A menina passou a dominar os saberes tradicionais de seu povo, construídos e mantidos por gerações.

Trilha: Sons da floresta

Entre esses conhecimentos estão as danças e cânticos, nos quais Bernaldina se destacou com sua voz melódica. A Parixara, ritual de oração e agradecimento à natureza, e a defumação do maruai, usada para proteção, também fazem parte desse conjunto de práticas ancestrais. Com esses saberes, Bernaldina foi se construindo como mestra e anciã da cultura Macuxi, como ficou conhecida.

Trilha: Canto indígena por Vovó Bernaldina

Aos 20 anos, Bernaldina passou a viver no Brasil depois de se unir com uma família Macuxi que morava em Roraima. Desde então, ela passou a habitar a comunidade Maturuca, pertencente à reserva Raposa Serra do Sol. A Raposa compreende uma área de mais de 1,5 milhão de hectares, onde vivem cerca de 19 mil indígenas de cinco etnias. Somente dos Macuxi são 85 aldeias, concentrando 20% da população total dessa etnia. Foi lá que Bernaldina incorporou a luta pela terra em seu cotidiano e se transformou também em referência militante, além de espiritual e cultural.

Trecho: Materia sobre os Macuxi

Trilha: Beauty Flow – Incompetech

O antigo SPI, Serviço de Proteção ao Índio, tem registros de ocupação da reserva Raposa Serra do Sol por não indígenas desde 1919. Nos anos 70, os bons campos cultiváveis da área atraíram a presença de produtores de arroz e pecuaristas. Com isso, a necessidade de defesa do território dos povos nativos aumentou ainda mais. 

Já no fim da década, o processo de demarcação da reserva foi iniciado, se estendendo por mais de 20 anos. A legitimação da terra indígena foi formalmente identificada pela Funai em 1993. A homologação ocorreu só em 2005, seguida de diversas contestações judiciais e conflitos para a desocupação da área pelos não indígenas. O julgamento foi finalizado pelo STF apenas em 2009, e significou um marco relevante pelo reconhecimento da demarcação em área contínua. Essa vitória é referenciada até hoje, como base para discussões sobre o chamado Marco Temporal. Em todos esses processos, Bernaldina foi protagonista, participando de protestos em Roraima, Brasília e até mesmo fora do Brasil.

Abrindo um parêntese, é importante explicar um pouco sobre o que é o Marco Temporal e quais as suas implicações. O Marco é um projeto político que propõe que as populações indígenas só podem reivindicar terras que ocupavam na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. Essa tese abre espaço para que milhões de pessoas indígenas sejam expulsas de suas terras, além de criar a possibilidade de suspensão de processos de demarcação que se arrastam por anos. Outra consequência é a possibilidade de que essas terras sejam privatizadas e comercializadas, beneficiando o setor ruralista e deixando os povos originários em vulnerabilidade física e cultural. O Marco pode virar lei, o que tem despertado inúmeras polêmicas e disputas de interesses.

Depois dessa breve explicação, vamos voltar à história. Em 2010, a grande matriarca do povo Macuxi foi uma das anfitriãs das comemorações da homologação, quando o então presidente Lula visitou a comunidade de Maturuca. Nas principais festas e eventos promovidos pelo Conselho Indígena de Roraima, Vovó Bernal recebia os convidados, envolvendo a todos nas músicas e rituais.

Trilha: Canto indígena por Vovó Bernaldina

A espiritualidade indígena de Bernaldina esteve atrelada a elementos cristãos. Em aparições públicas, era comum ver a anciã utilizando rosários como adereço, ou proferindo orações em sua língua materna intercaladas com expressões próprias do rito católico, em português. Sua abertura promovia o diálogo entre tradições, transformando-lhe em uma figura cada vez mais potente.

Trilha: Canto indígena por Vovó Bernaldina

Para Bernaldina, usar elementos da cultura católica para manifestar a própria fé nunca foi uma contradição. Pelo contrário. Era uma forma de ganhar respeito e de possibilitar mediações. Segundo o filho adotivo de Bernaldina, o artista e produtor cultural Jaider Esbell, a anciã falava o “português da estratégia”. Ou seja, para levar mais longe a sua mensagem e sua crença, usava a linguagem do colonizador para ser entendida e respeitada. Fazia da oralidade sua forma de transmissão. 

Mais do que isso: Vó Bernal usava a língua como arma, como afirmou em entrevista concedida em 2019. Na ocasião, a matriarca se referiu à resistência contra os grileiros armados que voltavam a ameaçar a reserva Raposa Serra do Sol anos após a garantia da demarcação. Com a entrada de um novo governo conservador e alinhado aos latifundiários naquele ano, a demarcação da reserva passou a ser questionada novamente. 

Trilha: Sons da floresta

A terra indígena Raposa Serra do Sol é rica em recursos hídricos e minerais, com grandes reservas de estanho, diamante e nióbio. É também considerada a segunda maior reserva de urânio do planeta. Mesmo com os olhos de diversos garimpeiros e empresários do agronegócio voltados para a reserva, juristas consideraram inconstitucional a possibilidade de revisão da demarcação.

O que estudiosos do Direito sabiam pela teoria, Bernaldina sentia e vivia na prática. A riqueza de seu povo não poderia ser tomada. E foi essa a mensagem que a mestra Macuxi fez chegar a todo o mundo em 2018, quando entregou pessoalmente ao Papa Francisco uma carta em que reivindicava direitos para os povos indígenas. O encontro aconteceu no dia 7 de novembro, durante audiência geral na Praça São Pedro, no Vaticano. 

Trilha: Deep Relaxation – Incompetech

Carta ao Papa Francisco, lida por Lea

“Somos o povo Makuxi, querido Papa Francisco, do extremo Norte da Amazônia Brasileira. Vivemos na nossa terra indígena Raposa Serra do Sol. O governo brasileiro ameaça fortemente a nossa vida coletiva com a retirada de todas as nossas garantias de vida autêntica por meio do cancelamento da homologação e abertura para o capitalismo neo liberal. As ações são claras: mineração de ouro, diamantes, minerais nobres, construção de hidrelétricas e a ocupação por corporações de nossos campos naturais e recursos hídricos e florestais para plena exploração. Pedimos, clamamos a vossa intercessão para que estes atos não se concretizem. Se acontecer com a Terra indígena Raposa Serra do Sol e com a Terra Indígena Yanomami, todos os recursos indígenas do Brasil e do mundo sofrerão a mesma medida. Nós, povos indígenas sabemos viver bem na natureza. Se nos matarem, a natureza morre e será o fim do mundo”.

Sobre o encontro com o Papa Francisco, Vó Bernaldina afirma:

Trecho entrevista Vó Bernaldina sobre encontro com o Papa

Trilha: Sons da floresta

Para além do símbolo forte e guerreiro, Bernaldina era também uma figura doce e amorosa. Como ritual de gratidão, gostava de tomar banho e rezar de madrugada. Também gostava de abraçar, afagar, cuidar e dar bons conselhos. Era uma grande artista, como só os mais próximos sabiam. Se divertia dançando, tocando maracá, tomando caxiri e, principalmente, cantando, sua forma de encontrar a plenitude. Sentia prazer em incentivar os jovens na descoberta e propagação da identidade indígena, estimulando o respeito à medicina tradicional e aos ritos de seu povo. Tinha amor incondicional pela fartura, pelo belo, pelo alegre e pelo colorido. E foi por essa entrega e intensidade que, aos 75 anos, Vó Bernaldina teve sua vida abreviada.

Em 14 de junho de 2020, Bernal foi removida às pressas da comunidade do Maturuca para Boa Vista, com sintomas graves da covid-19. A matriarca foi levada para o Hospital Geral de Roraima, única unidade pública de saúde que atendia quadros graves de pessoas com o vírus. Por causa da superlotação, Bernaldina precisou esperar dois dias para ser internada, respirando com dificuldades. 

Trecho: matéria jornalística sobre superlotação

Trilha: Sovereign – Incompetech

Para custear o tratamento e transferir a anciã para um leito particular, os familiares lançaram uma vaquinha online, que chegou a arrecadar doações de diversos lugares do país. 10 dias após chegar a Boa Vista, Bernaldina José Pedro faleceu, em 24 de junho de 2020. 

Seu corpo foi sepultado no Parque Cemitério Campo da Saudade, em Boa Vista. Durante meses, os familiares de Bernaldina lutaram para conseguir levar seus restos mortais de volta a Maturuca. A comunidade fazia questão de realizar o rito funerário de acordo com os costumes do povo Macuxi, dando continuidade ao legado de um de seus maiores ícones.

Trilha: Canto indígena por Vovó Bernaldina

A herança de Vovó Bernaldina permanece viva mesmo após sua passagem. Em dezembro de 2021, a anciã Macuxi recebeu homenagem póstuma no I Encontro Nacional Política Pública de Segurança e Proteção à Mulher Indígena da Câmara dos Deputados. Seu filho, Charles Gabriel, esteve presente à cerimônia para receber o certificado de menção honrosa. 

Parte dos saberes da matriarca também ficou registrada no livro “Cantos e Encanto – Meriná Eremu”, de autoria de Devair Antônio Fiorotti e da própria Bernaldina. A publicação apresenta cantos tradicionais do povo Macuxi, sendo grande parte composições de Vó Bernal. 

Os inúmeros descendentes de Bernaldina, tanto biológicos quanto afetivos, também são responsáveis pela continuidade do legado. Tendo se tornado viúva logo cedo, Bernal se cercou de filhos, muitos deles adotivos, para espalhar o amor que lhe transbordava. A mestra Macuxi deixou seis filhos e 15 netos. Aqueles que foram tocados por seu amor e exemplo encontram nas palavras do filho Jaider Esbell o eco de seus próprios sentimentos:

Obituário, para o Projeto Inumeráveis, lido por Daniel Gouveia:

“Adotar era para ela o mesmo que adorar. Ela só falava a linguagem do amor.

Foi dessas que só sabem amar a ponto de dar seu lugar no mundo para alguém mais jovem experimentar o que ela própria tinha de sobra.

Seu nome deveria ser “Amorosa” — uma mulher que parece ter sido gerada em um favo de mel, de tão doce criatura que era. (…)

Então, é desse amor absoluto que devemos nos lembrar sempre. Não tinha hora para ser prestativa. Ainda tinha muita força e serenidade. Os 75 anos de idade biológica não combinavam com seu espírito puro, como o de uma criança cheia de vida. Nunca teve medo de partir, mas também achou que dessa forma não foi uma boa passagem; e bota sua partida triste na conta de seu maior inimigo, o governo desastroso do Brasil atual, que não faz o mínimo esforço para garantir a aplicação dos direitos aos povos indígenas, para o que tanto lutou a nossa mestra. A memória de Meriná não pode ser apenas de doçura, mas de bravura, como bem fazia ao fechar o semblante diante das injustiças, quando a flor virava onça e defendia. A liderança pura da guerreira Meriná deve inspirar a revolução. Lutemos por justiça, sempre.”

A história de Vovó Bernaldina nos propõe uma reflexão e um convite de participação na luta pela demarcação das terras indígenas. Como pessoas cristãs, nossa história de fé acaba sendo intrinsecamente ligada a uma herança de colonização, que extirpou dos povos nativos vidas e direitos. É nosso papel, portanto, revisar essa história e cuidar para que ela não se repita, lutando para que a memória de pessoas como Bernaldina e tantas outras sejam honradas.

Antes de encerrar o programa, queremos agradecer a Bianca Rati pela orientação na construção do roteiro. Nayara Arêdes, que preparou o texto, deixa também um agradecimento para mim, Isa, por ter topado emprestar minha voz nesta narração e interpretação.  Também agradeço a Lea pela leitura da Carta ao Papa Francisco e ao Daniel pela leitura do obituário da Vovó. E, claro, obrigada a você que ouviu até aqui. Até o próximo redomascast, tchau!

Trilha: Nativa – Katú Mirim


REFERÊNCIAS

https://www.joeniawapichana.com.br/imprensa/vovo-bernaldina-recebe-homenagem-in-memorian-no-i-encontro-nacional-politica-publica-de-seguranca-e-protecao-a-mulher-indigena-na-camara

https://www.vakinha.com.br/vaquinha/tratamento-da-vo-bernaldina

https://amazoniareal.com.br/familia-de-vovo-bernaldina-vitima-da-covid-19-luta-para-fazer-seu-ritual-funerario-em-roraima/

https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-rio-negro/morre-vovo-bernaldina-mestre-dos-saberes-do-povo-macuxi

https://pt.wikipedia.org/wiki/Bernaldina_Jos%C3%A9_Pedro

https://www.brasildefato.com.br/2020/06/24/morre-de-covid-19-bernaldina-jose-pedro-simbolo-da-luta-politica-da-etnia-macuxi

https://www.facebook.com/vaticannews.pt/videos/vov%C3%B3-bernaldina-e-jaider-esbell-do-povo-macuxi/537675243312765/

https://racismoambiental.net.br/2019/11/29/com-arma-a-gente-nao-fala-a-arma-e-nossa-lingua-diz-ancia-macuxi/

https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/349426/noticia.htm?sequence=1

https://www.camara.leg.br/noticias/796317-indigenas-mostram-gestao-modelo-na-reserva-raposa-serra-do-sol/#:~:text=O%20processo%20de%20demarca%C3%A7%C3%A3o%20de,a%20demarca%C3%A7%C3%A3o%20cont%C3%ADnua%20do%20territ%C3%B3rio.

https://www.brasildefato.com.br/2021/08/25/o-marco-temporal-da-usurpacao-dos-direitos-indigenas

https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2018/11/08/indigenas-de-roraima-tem-encontro-com-papa-francisco-no-vaticano-e-fazem-apelo-se-nos-matarem-a-natureza-morre.ghtml

http://www.jaideresbell.com.br/site/2019/01/16/koko-pokon-eremu-o-canto-das-avos/

https://inumeraveis.com.br/bernaldina-jose-pedro/

https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/08/27/o-que-e-o-marco-temporal-sobre-terras-indigenas-entenda-o-que-esta-em-jogo-no-julgamento-do-stf.ghtml

 

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