Transcrição: Redomascast 98 – Tudo Era Muito Bom

Música de fundo: Comfortable Mystery 4 (Kevin MacLeod – Incompetech)

[Trecho da notícia:  “Amazônia será uma das regiões mais afetadas pelas mudanças climáticas | SBT Brasil (28/02/22)” via SBT News]

Um novo relatório da ONU alerta para consequências irreversíveis para o clima no planeta. Se as emissões de gases do efeito estufa não diminuírem, uma das regiões mais afetadas será a Amazônia. A cheia em Marabá, sudeste do Pará, foi a maior das últimas 3 décadas para o mês de janeiro. Mais de 8 mil famílias ainda não têm para onde ir. “O jeito que a gente dorme é no relento. A nossa situação aqui está caótica, meu irmão”. Tragédias como as fortes chuvas de Petrópolis podem acontecer de novo. Segundo o painel científico para o clima da ONU, se a emissão de gases do efeito estufa continuar a acrescer a Amazônia deve sofrer ainda com chuvas intensas e enchentes até o final deste século […] Em outras regiões, as mortes por calor devem aumentar 3% até 2050, a seca deve atingir os rios da Amazônia e o nordeste do Brasil, já tão castigado com redução de 22% das chuvas.

Narração: Bianca Rati

No princípio Deus criou os céus e a terra. Era a terra sem forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. Disse Deus: “Haja luz”, e houve luz, chamou à luz dia, e às trevas chamou noite. “Haja entre as águas um firmamento que separe águas de águas”. Ao firmamento  Deus chamou céu. “Ajuntem-se num só lugar as águas que estão debaixo do céu, e apareça a parte seca”. À parte seca Deus chamou terra, e chamou mares ao conjunto das águas. “Cubra-se a terra de vegetação: plantas que dêem sementes e árvores cujos frutos produzam sementes de acordo com as suas espécies”. “Haja luminares no firmamento do céu para separar o dia da noite. Sirvam eles de sinais para marcar estações, dias e anos, e sirvam de luminares no firmamento do céu para iluminar a terra”. Deus fez os dois grandes luminares: o maior para governar o dia e o menor para governar a noite; fez também as estrelas. Deus os colocou no firmamento do céu para iluminar a terra, governar o dia e a noite, e separar a luz das trevas. “Encham-se as águas de seres vivos, e sobre a terra voem aves sob o firmamento do céu”. Então Deus os abençoou, dizendo: “Sejam férteis e multipliquem-se! Encham as águas dos mares! E multipliquem-se as aves na terra”. “Produza a terra seres vivos de acordo com as suas espécies: rebanhos domésticos, animais selvagens e os demais seres vivos da terra, cada um de acordo com a sua espécie”. “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais grandes de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão”. Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. Deus os abençoou, e lhes disse: “Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra”. “Eis que lhes dou todas as plantas que nascem em toda a terra e produzem sementes, e todas as árvores que dão frutos com sementes. Elas servirão de alimento para vocês.E dou todos os vegetais como alimento a tudo o que tem em si fôlego de vida: a todos os grandes animais da terra, a todas as aves do céu e a todas as criaturas que se movem rente ao chão”. E assim foi. E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom. 

Música de fundo: Rising Tide (Kevin MacLeod – Incompetech)

A parábola do semeador – Octavia E. Butler interpretado por Luciana Petersen

“Há uma tempestade fora de temporada atingindo o Golfo do México. Ela se espalhou, matando pessoas da Flórida ao Texas e descendo em direção ao México. Até agora, sabe-se que mais de 700 morreram. Um furacão. E quantas pessoas ele atingiu? Quantas vão morrer de fome posteriormente devido às plantações destruídas? É a natureza. É Deus? A maioria dos mortos é a população de rua que não tem para onde ir e que só sabe dos alertas quando já é tarde demais para se proteger. Onde está a segurança para eles, afinal? Ser pobre é um pecado contra Deus? Nós somos quase pobres. Há cada vez menos empregos para nós, mais e mais pessoas nascem, mais crianças crescem sem perspectiva. De um jeito ou de outro, todos seremos pobres um dia. Os adultos dizem que as coisas vão melhorar, mas isso nunca acontece. Como Deus – o Deus de meu pai – se comporta conosco quando somos pobres?”

Esse trecho que você acabou de ouvir é do livro A Parábola do Semeador, escrito nos anos 90, pela autora norte-americana Octavia Butler. Nesse mundo imaginado, mas nada irreal, os humanos nada fizeram para impedir mudanças climáticas. Isso gerou uma realidade de desigualdades sociais ainda mais extremas, desemprego, fome e tragédias ambientais. A personagem principal é Lauren Olamina, uma menina negra de 15 anos e filha de pastor, ela quem estava falando no trecho que eu li. Lauren começa a questionar as ideologias que mantém as pessoas presas a certos comportamentos e modos de vida e os sistemas sociais que produzem desigualdades. A Parábola do Semeador nos faz pensar sobre meio ambiente, clima, religião, poder, destruição, morte, vida e revolução.

[Efeito especial: sobreposição de áudios notícia + a parte final do texto bíblico]

Abertura do Redomascast

Bianca Rati

Sejam bem vindes a mais um redomascast! Eu sou Bianca Rati e no episódio anterior eu estava tentando entender um pouco melhor sobre alimentação e soberania alimentar. Naquele programa uma coisa ficou bastante óbvia: está tudo conectado. A gente come o que vem da Terra, mas se o nosso consumo engolir a Terra inteira, a vida corre perigo.

Isso me fez lembrar da história da Criação. Há quem acredite que essa história conta exatamente como o mundo foi criado e há quem a entenda como uma metáfora, uma poesia. Mas independente da forma como você lê esse texto, é inegável que ali estão presentes os princípios e intenções divinas ao criar a Terra: um trabalho de muito amor e uma construção harmônica. E por isso é inevitável me perguntar se o planeta que temos hoje, o planeta do qual somos parte, ainda corresponde a esse sonho divino. 

Ultimamente temos visto tantas notícias que têm mostrado os efeitos da crise climática no mundo, mas que crise é essa? Como ela surgiu? E será que isso tem alguma coisa a ver com a minha fé?

Não sei se vocês conhecem, mas o instituto ISER tem uma iniciativa chamada Fé no Clima, onde eles se propõem a conversar com diversas crenças sobre a questão climática. Eu chamei Isabel e Júlia, lá do instituto, para falar um pouco sobre a situação atual do nosso clima e tentar entender o que tem a ver a religião com o meio ambiente.

Isabel Pereira

Meu nome é Isabel Pereira. Eu trabalho no ISER que é um Instituto de Estudos da Religião. Trabalho no ISER desde fevereiro de 2020, anteriormente estava na área de direitos, que é a minha formação. Eu sou advogada e trabalho há muitos anos com direitos humanos. E passei no meio desse ano agora de 2021, para a coordenação da área de religião e meio ambiente, onde a gente tem iniciativa Fé no Clima.

Julia Rossi

Olá, meu nome é Júlia e atualmente eu também estou integrando a equipe do Fé no Clima, no ISER. Eu sou formada em biofísica e aí conheci a educação ambiental. Fui para o mestrado em educação e agora, com o trabalho de justiça ambiental em favelas, eu faço doutorado na PUC Rio.

Isabel Pereira

O Fé no Clima é uma iniciativa do ISER, que tem como missão reunir, engajar lideranças religiosas de diferentes crenças para a conscientização das suas comunidades de fé no enfrentamento à crise climática. A gente faz isso a partir do diálogo entre os cientistas, ambientalistas, povos originários, religiosos, juventudes aproximando justamente a ciência, a fé e o meio ambiente do debate da construção de soluções para a emergência do clima.

Bianca Rati

Quando falamos de meio ambiente, clima, logo pensamos na crise climática, porque vemos que tem sido amplamente discutida na mídia seja por causa de desastres ambientais ou por causa de decisões políticas. Mas o que exatamente é essa crise? Quais são os problemas e o que eles causam? Então eu aproveitei a experiência da Isabela e da Julia para perguntar quais são os principais desafios ambientais e climáticos que enfrentamos no Brasil.

Julia Rossi

Bom para começar, a emergência climática, é a crise climática. O que é a crise climática? A gente define a ela como um estado climático, caracterizado por maior incidências locais, que estão interligadas em todo o planeta, mas que são locais, de eventos extremos que são secas, inundações, tempestades, ciclones, tornados, ondas de calor, frio, etc. E sempre varia de acordo com o bioma, com o ecossistema destes locais que são afetados. Isso ocorre também devido ao processo de aumento da temperatura média do planeta, o aquecimento global, resultado do acúmulo de gases do efeito estufa, decorrente da emissão das atividades humanas, industriais e desmatamento inclusive. É importante ressaltar que esses impactos causados pelas mudanças climáticas afetam ainda mais populações pobres e negras. O que a gente chama de racismo ambiental, racismo climático, que traz essa reflexão sobre como a crise temática tem consequências ainda maiores para essa população não-branca. E na COP 26 teve um processo muito importante de mobilização de jovens que ativistas, principalmente negros, que pautaram esse tema como um fator determinante dessa justiça climática. 

O Brasil, apesar dos grandes centros urbanos também sejam corresponsáveis pelas emissões desses gases do efeito estufa, o desmatamento e a degradação florestal são os maiores emissores. Então, se a gente for pensar no nosso foco no Brasil, no que a gente tem que é atentar-se, é a Amazônia, é o Cerrado, são lugares que tem esse desmatamento disparado, ainda mais neste governo. E a gente precisa entender também que as cidades estão conectadas, a gente vai sentir esse desmatamento, essas mudanças no ciclo da água, principalmente… A natureza tende a se equilibrar, então esses eventos extremos, muito calor ou muita água ou seca, é justamente para equilibrar esse sistema que está sendo desequilibrado.

E aí, se a gente for pensar nas cidades, as favelas já estão sentindo esses efeitos das mudanças climáticas de modo muito mais nítido. Com as enchentes, desabamentos e as faltas de políticas públicas direcionadas para esses territórios, de políticas urbanas, também faz esse problema se agravar cada vez mais. Então a gente no Brasil, a gente tem esse grande problema do desmatamento, principalmente para pecuária, para madeireira, enfim, mas a gente também tem que pensar em como tudo está interligado. Não existe pensar a Amazônia sozinha, a Amazônia está no mundo. O mundo precisa da Amazônia. Ela não é o pulmão do mundo, como muitos falam, né? O pulmão do mundo é o oceano. Mas ela participa, tem um papel fundamental no ciclo da água. Então no Brasil, quando a gente vai pensar no que que a gente tem que focar é o desmatamento da Amazônia, é o  fortalecimento da luta dos povos indígenas. Principalmente porque eles são os verdadeiros protetores das florestas, eles são quem sabem realmente como manter esse equilíbrio das florestas.

Bianca Rati

A iniciativa Fé no Clima promove o diálogo entre pessoas religiosas e ambientalistas e, portanto, eles têm experiência em engajar as pessoas, especialmente lideranças religiosas, na questão climática. Perguntei para Isabela e Julia quais são as principais dificuldades que a iniciativa encontra ao tentar abordar o tema da emergência climática com os cristãos. Será que os cristãos se importam com essa questão?

Isabel Pereira

As dificuldades são as mesmas do que com as outras pessoas. Assim, do que outras pessoas de outras religiões ou de outras pessoas que não professam nenhuma religião. Tem a ver com o que a gente estava conversando antes, com essa dissociação entre nós e a natureza, como se fossem coisas separadas. E com certeza você está certa que hegemonicamente existe realmente uma falta de de trazer esse diálogo sobre questões ambientais, sobre temas ambientais e mudanças climáticas para a vida das pessoas e até em estudos teológicos ou na atuação de políticos. 

Mas, ao mesmo tempo, a gente observa também que nos últimos anos tem havido um interesse sim de cristãos, sejam eles evangélicos, sejam eles católicos, pelo tema. E que realmente se mostram muito sensibilizados pelo tema. A gente até queria trazer aqui os dados de uma pesquisa que saiu esse ano e que confirma esse interesse. É uma pesquisa que se chama “O que os evangélicos pensam sobre o meio ambiente” e ela foi encomendada pela coalizão Evangélicos pelo Clima. Ela coletou informações de evangélicos brasileiros de diferentes denominações e constatou que 85% acham que é pecado atacar a natureza e 77% são favoráveis que suas igrejas apoiem atividades em prol da proteção ambiental. Então, isso traz para a gente informações muito interessantes. Que, pode ser que elas não estejam engajadas ali no seu dia a dia, mas  elas acham que aquilo ali é importante. E assim, uma coisa que a gente queria muito trazer aqui e passar essa informação adiante são de alguns grupos que a gente já sabe que trabalham com o tema aqui no Brasil, algumas iniciativas. Então eu vou nomear aqui 3 iniciativas que a gente conhece que são próximas ao ao sendo o clima. Uma delas é o é o movimento Renovar Nosso Mundo que é um movimento global de cristãos e tem um capítulo brasileiro. A outra iniciativa que a gente já mencionou é a Coalizão Evangélicos Pelo Clima, criada a partir da união de várias igrejas, movimentos e pessoas evangélicas. E a última que eu vou deixar aqui pra pra gente compartilhar, é o Nós na Criação, que é um movimento que discute e opera fé através da ecoteologia. A gente acha muito importante trazer esses exemplos, trazer essas iniciativas, para que as pessoas tenham onde buscar informação. Porque a gente está vendo que as pessoas têm interesse, tem sensibilidade para o tema, mas muitas vezes elas não sabem onde buscar aquela informação ou como relacionar isso com a sua fé.

Julia Rossi

Apesar da gente ter nessa bancada evangélica, esses homens brancos de uma geração aí no poder, a gente tem um movimento jovem e evangélico. A gente tem lideranças ativistas muito fortes que estiveram na COP 26, que foi a Conferência das Nações Unidas sobre as mudanças climáticas. Então é muito importante a gente também olhar o que está brotando, que está florescendo dessa juventude que tem um seu viés religioso, cada um com suas identidades e é importante também a gente, talvez olhar mais para essas propostas do que para o antigo que a gente que tem dado errado.

Música: Xote Ecológico – Luiz Gonzaga

Não posso respirar, não posso mais nadar

A terra está morrendo, não dá mais pra plantar

E se plantar não nasce, se nascer não dá

Até pinga da boa é difícil de encontrar

Cadê a flor que estava aqui?

Poluição comeu

E o peixe que é do mar?

Poluição comeu

E o verde onde é que está?

Poluição comeu

Nem o Chico Mendes sobreviveu

Bianca Rati

Depois da conversa com o ISER eu fiquei com aquele dado de que 85% dos evangélicos acham que é pecado atacar a natureza e me perguntando como podemos engajar pessoas cristãs na causa do meio ambiente. Também fiquei me perguntando quem é essa juventude que tem se levando pela Terra na COP 26 que a Júlia mencionou. Até porque essa conversa ambientalista sempre acaba soando um pouco elitizada. Alguns termos, ideias e problemas não somente parecem como são bastante complexos. A gente se pergunta:  por que vou me preocupar com isso? Como isso nos afeta? Como isso afeta a minha comunidade? A questão climática tende a ser um problema não tão simples de visualizar no nosso dia a dia. Mas eu conheço uma mulher jovem, negra e periférica que aceitou o desafio de responder essas perguntas e engajar a juventude nesta causa e tem se saído muito bem nisso. 

Amanda Costa

Meu nome é Amanda Costa, tenho 25 anos, sou ativista climática pela negritude e pela sustentabilidade. Atualmente coordeno uma organização chamada Perifa Sustentável que tem o objetivo principal de democratizar as pautas de clima e de sustentabilidade e mobilizar juventudes aqui do Brasil para que a gente possa construir uma nova agenda de desenvolvimento sustentável a partir da perspectiva racial e de clima. Também sou jovem embaixadora da ONU, tenho a responsabilidade de representar juventude brasileira em fóruns multilaterais, de tomada de decisão em discussão global. Recentemente, estava em Glasgow – Escócia, no Reino Unido participando da COP 26, a Conferência de Clima da ONU. E um ponto muito importante que eu sempre gosto de trazer é que eu sou jovem, sou cristã, sou dançarina, canto (não canto bem, mas canto). As pessoas acabam se resumindo apenas ao trabalho, mas não, nós somos seres múltiplos diversos e quanto mais a gente consegue trazer pessoas inteiras para os lugares, mas a gente consegue colocar a profundidade no discurso, profundidade nas trocas, profundidade de pessoas reais. Então sou uma pessoa real que ri, que chora, que tem crises, que às vezes vai para o mato e ficar lá para sempre outras vezes quer voltar e liderar várias campanhas ativistas, engajar a juventude, fazer vários projetos… É um pouquinho desse mix de sentimentos que vão nos definindo.

Bianca Rati

Pedi para a Amanda me explicar o que é Justiça Climática a partir da perspectiva de quem está nas periferias no Brasil e pensando principalmente como a crise climática impacta a vida dessas pessoas.

Amanda Costa

Eu gosto de traduzir a justiça climática a partir de um exemplo,  que os povos que menos contribuíram para a atual crise do clima que a gente está vivendo, que serão os mais afetados. Tem um exemplo, você foi com sua galera, galera crente depois do culto, comer um lanche. E aí ninguém pegou uma comanda individual, todo mundo pegou uma comanda da mesa. Só que aí a primeira pessoa tem que embora é porque a mãe ligou e disse “Quero você em casa antes das 10 horas!” A pessoa deixa um dinheiro e fala “Vocês pagam aí e se faltar vocês me ligam, eu transfiro e se sobrar vocês me devolvem”. E aí cada um vai saindo da mesa, vai deixando dinheiro e vai saindo da mesa. No final, quem paga mais é a pessoa que ficou. A conta nunca bate. 

Pensar em justiça climática é pensar nesse exemplo. No final, quem vai pagar mais é a pessoa que ficou até o final do evento, só que não é justo. Pensar em justiça climática é analisar a estrutura social que o nosso planeta foi construído, entender que os países do norte global tiveram mais recursos porque eles se apropriaram dos recursos do sul global. Eles conseguiram desenvolver os seus países, conseguiram desenvolver as suas nações, têm uma tecnologia avançada, mas eles não estão passando esse conhecimento para o sul global e no final, somos nós que vamos pagar a conta. Os eventos climáticos mais catastróficos que estão acontecendo no nosso planeta são no sul global e muitas vezes não há apoio, não há parcerias, e os próprios países precisam se articular para conseguir resolver esses perrengues. Tanto é que quando teve as enchentes na Bahia, o nosso atual presidente falou que a gente não precisava de ajuda. Será que não precisava? Pensar em justiça climática é pensar nas desigualdades sociais que estão afetando, principalmente a galera preta, pobre e periférica, os indígenas, os quilombolas, os ribeirinhos e as pessoas que ocupam a base da pirâmide social no nosso planeta. 

O maior desafio é a elitização do discurso. Hoje, quem está falando de crise climática? Quem são os corpos? Quais são as cores? Qual é a classe social? Qual é o nível de formação? Essa pessoa teve acesso ao ambiente acadêmico ou não? Então a gente vê uma desconexão com grande parcela da sociedade. No imaginário popular, falar de clima é: “ Ah aquela ativista lá, a Greta Thumberg, que faz uma greve…” Mas só fazer um paralelo, aqui no Brasil a gente nem tem aula, como que a gente vai fazer greve de uma coisa que a gente nem tem? Durante a pandemia, nossas crianças não tiveram aula, principalmente as crianças da periferia. A gente não tem nem computador em casa, vai ser acessar como?  Então a gente vê um distanciamento da população, uma elitização, um embranquecimento muito latente. 

E é aquilo, o que eu não sei, eu não vou querer me engajar. Por que eu vou lutar por uma causa que eu nem ao menos entendo? 

Então parte do trabalho do Perifa Sustentável é democratizar, é sensibilizar essas pautas, esses debates, conteúdos… Mostrar que sim, o urso ficando magrinho lá no polo faz parte da crise climática mas o que que a gente se alimenta todos os dias também é uma questão climática. Então a carne que chega no nosso prato – que é uma carne cara, não porque é uma carne super valorizada, mas porque as primícias da nossa pecuária estão indo pro exterior – tá sendo vendida enquanto a populações indígenas estão sendo mortas por defender os territórios. A questão da carne é que na maior parte do Brasil ela é feita de forma ilegal e acontece a partir desse desmatamento. E o ato de desmatar já potencializa a crise climática, por se colocar mais gases CO2 na atmosfera. Aí depois tem o próprio processo do boi ou da vaca crescer e se alimentar. E os gases que boi libera na digestão tem o gás metano, que é 4 vezes pior do que o CO2, do que o gás carbônico. Então esse processo também já potencializa a crise climática. Para que a carne chegue nos grandes centros a principal linha de locomoção que é utilizada aqui no Brasil são as estradas, são os caminhões, o que já coloca mais CO2. Então todo esse processo é muito destrutivo. 

Pensando na questão da agricultura, aqui no Brasil a gente usa muita monocultura, tem muitos latifúndios. E para que dê certo, é utilizado agrotóxicos, porque se a gente não tem variedade de seres vivos num determinado ambiente, fica muito vulnerável às pragas e para combater essas pragas tem o uso de agrotóxico. Mas estão indo nossos pratos e estamos comendo veneno. Só que poucas pessoas têm acesso a isso, poucas pessoas têm acesso a esse debate, poucas pessoas estão fazendo essa reflexão. No ambiente periférico a gente tem diversos desertos alimentares. Então isso é mais um ponto que afasta a população nesse debate. A crise climática está lá com o ursinho polar ficando magro? Sim. Mas também está na boca das nossas crianças que quando comem, porque comer se tornou um privilégio num país tão desigual como o nosso, estão comendo veneno, se comem.

Bianca Rati

A minha conversa com a Amanda foi muito gostosa, deu um quentinho no coração escutar ela falar. Aquele sentimento de esperança. E uma coisa ficou evidente: o quanto o amor dela por Jesus impacta a maneira que ela vê a Terra e seu ativismo ambiental. Então perguntei para ela: porque nós cristãos deveríamos nos importar com o meio ambiente?

Amanda Costa

Pela leitura da palavra, a gente vê que Deus entregou a Terra para o homem, para que a gente pudesse cuidar e desfrutar o melhor dessa Terra. E tem um versículo que fala que a criação revela a Glória de Deus. Quando a gente olha para natureza, quando a gente olha para o meio ambiente é um convite, do próprio Criador, para que a gente veja uma parte dele. Mas se essa parte está sendo destruída, será que a gente está cortando uma conexão com o próprio Eterno? Por conta do pecado, por conta dessas transgressões e iniquidades que vieram para o nosso mundo, a gente está vivendo um período de cisão com o divino. Que pode ser reconectado através da figura de Jesus e de seu Espírito Santo. Mas aí a gente tem uma pergunta, qual é o evangelho que está sendo pregado? Porque o evangelho que encontro todos os dias no meu quarto, quando eu falo com Jesus: “Me permite te conhecer um pouquinho mais, não me permita conformar com este século, mas transforma a minha mente para que eu conheça a sua boa, perfeita e agradável vontade”. E ele me responde que o verdadeiro evangelho é cuidar dos pobres e das viúvas. Mas aí a gente vê no Brasil um movimento fundamentalista de extrema-direita que está atrás do poder e que muitas vezes aceita um discurso racista, misógino, excludente. Realmente esse discurso fascista está sendo empregado em muitos públicos. E muitas pessoas, muitas mulheres negras, por falta de letramento na palavra de Deus, acreditam nos seus líderes religiosos. Só que a própria bíblia fala dos falsos profetas, a própria bíblia fala que tudo que a gente escuta na igreja a gente tem que examinar nas escrituras e ver se está de acordo. Então uma das formas da gente se proteger desse movimento de exclusão e opressão que está sendo levantado no Brasil, é conhecendo e lendo a palavra de Deus.

Música: Passarinhos – Emicida ft. Vanessa Da Mata 

A Babilônia é cinza e neon, eu sei

Meu melhor amigo tem sido o som, okay

Tanto carma lembra Armagedon, orei

Busco vida nova tipo ultrassom, achei

Cidades são aldeias mortas, desafio nonsense

Competição em vão que ninguém vence

Pense num formigueiro, vai mal

Quando pessoas viram coisas, cabeças viram degraus

No pé que as coisa vão, Jão, doidera

Daqui a pouco, resta madeira nem pros caixão

Era neblina, hoje é poluição

Asfalto quente queima os pé no chão

Carros em profusão, confusão

Água em escassez bem na nossa vez

Assim não resta nem as barata (é memo’!)

Injustos fazem leis e o que resta pr’ocês?

Escolher qual veneno te mata

Pois somos tipo…

Passarinhos

Soltos a voar dispostos

A achar um ninho

Nem que seja no peito um do outro

Trecho: INDÍGENAS, GUARDIÕES DA NATUREZA! – Canal Áwùre

[Líder indígena Júnior Xukuru] “Nós somos a natureza né? Se eu defendo a natureza eu automaticamente estou me protegendo, tô te protegendo. Essas queimadas que tiveram com a floresta amazônica, com a nossa Mãe Terra, a nossa mãe mata, agora essa questão do óleo nas nossas praias, agora fogo no Pantanal e aí a gente já fica ansioso e aí eu me pergunto: qual será a próxima bomba? O que será agora? O que tá faltando agora é só extinguir os indigenas e os negros… [Narração] Relatório contabiliza 160 invasões a terras indígenas em 2019, número de mortes de lideranças indígenas em 2019 é o maior em pelo menos 11 anos, diz a Pastoral da Terra. A ONU destaca que nas terras habitadas pelos povos originários, o desaparecimento de espécies é mais lento que no resto do mundo. [Líder indígena Júnior Xukuru] Tudo que Tupã deixou, nós como indígenas temos a obrigação de cuidar. Nós somos advogados da mãe terra, temos a obrigação de estar defendendo ela, tudo que nela há e vamos estar defendendo um grão de areia que seja.”

Bianca Rati

Durante as conversas com o ISER e com a Amanda eu fiquei pensando sobre todos os momentos que a bíblia cita a natureza, como salmistas enxergavam a glória de Deus através da Criação, as profecias de Isaías sobre a justiça que atinge tudo que tem vida, a maneira que Jesus contava parábolas com plantas e animais, a presença de animais na revelação apocalíptica… Enfim, exemplos não faltam. 

Mas ao mesmo tempo que consigo citar tantos exemplos bíblicos, não consigo fazer o mesmo em relação a momentos que, durante a minha caminhada de fé, a natureza foi tida como elemento crucial. Parece até que é perfeitamente possível ser uma pessoa cristã e não pensar sobre a natureza. Talvez seja porque nós evangélicos, principalmente, temos uma tendência a espiritualizar tudo que aparece na bíblia, ou melhor, hiper espiritualizar tudo que lemos na bíblia. O pão nunca significa comida, sempre significa palavra de Deus, a árvore nunca é árvore é sempre metáfora para a igreja, o cordeiro nunca é um animal, sempre é Cristo. E não é que essas leituras estejam erradas, mas talvez estejam incompletas. 

Essa dificuldade de pensar a questão climática e do meio ambiente a partir do cristianismo me fez questionar as bases da nossa teologia hegemônica. Se a natureza é tão importante para a bíblia, por que é tão desimportante nas nossas práticas de fé? Se as nossas bases de fé nos ensinam sobre um Deus justo e que ama a justiça, por que não somos uma comunidade engajada com a justiça, inclusive a climática? Só faz sentido entender árvore como igreja se não desmatarmos, só podemos falar de pão como palavra divina se o pão nosso de cada dia alimentar todas as bocas e só podemos falar de um Cristo que se faz cordeiro se consideramos a vida dos animais.

Mas como reconstruímos esse elo? Como reestabelecemos essa conexão? Lembrei do que Júlia disse a respeito dos povos originários, os povos indígenas, que em suas múltiplas expressões, crenças e costumes têm em comum a defesa da natureza, o entendimento da sua sacralidade. 

André Muniz Puri

Meu nome é André Muniz Puri. Eu sou teólogo, faço mestrado em ciências humanas e sociais na UFABC, tenho uma especialização em antropologia. Eu sou descendente do povo Puri, tenho atualmente 23 ciclos ao redor desse sol. E estudo essas questões indígenas. Eu sou descendente do povo Puri e o meu avô era desse povo e desde então eu tenho buscado uma aproximação, em anos recentes, com as pessoas indígenas de modo geral e com pessoas do povo Puri, em particular. É um processo que é muito conhecido dentro dos meios indígenas, e até dentro dos meios acadêmicos, como Retomada ou Resgate da Identidade Étnica. Quando uma pessoa vem de um processo de desconstrução dessa identidade étnica, que foi o que aconteceu com minha família, busca retornar essas origens indígenas.

Bianca Rati

Comecei minha conversa com André contando para ele a respeito dessa desconexão entre humanos e Terra que eu fui aprendendo sobre durante o programa. Sobre aquela sensação de algo que foi rasgado e quebrado. Mas eu sei que os povos indígenas têm lutado muito para preservar suas tradições e seus modos de vida, por isso perguntei para ele como é a relação dos povos indígenas com a Terra e como pessoas não-indígenas podem melhorar a nossa relação.

André Muniz Puri

Foi muito interessante você falar sobre essa questão de manter as tradições, porque é algo que muitas vezes pode ser percebido até em famílias como a minha, que são famílias que tiveram essa desestruturação, essa desarticulação, essa separação do povo de origem, então você percebe na minha casa, desde criança, sempre convivi muito com plantas. A minha mãe queria uma casa que tivesse um quintal, meu pai também, onde a gente pudesse plantar, onde a gente pudesse ter um cuidado com Terra, poder comer o alimento que a gente mesmo produziu no nosso quintal. Eu gosto muito de taioba, a gente tinha um pezão de taioba. E minha mãe falava: “Olha André, hoje a gente vai comer taioba do nosso próprio quintal!” Então é sempre um evento, porque é uma coisa que resiste mesmo em famílias que já passaram por esse processo de desarticulação e que hoje fazem esse processo como a minha, de resgatar essas identidades mais do que nunca. E é uma relação, para te responder, uma relação de parentesco, uma relação de pertencimento. 

Quando a gente pensa na Terra, a gente não pensa na Terra como algo dissociado de nós mesmos. Ela é parte de quem a gente é. A gente pertence à Terra. A gente é da Terra, não tem um lugar onde termina a Terra e começa André, não eu, André, a Terra, o povo Puri e os povos indígenas, Tupinambá, Yanomami, Kaxixó, etc… Todos os povos estão unidos e a gente se vê como parte mesmo,de um mesmo bioma. Um mesmo corpo, este corpo terrestre. E para além disso, uma relação também de parentesco. Como a nossa mãe, o nosso pai, o nosso irmão, nosso avô. Então existe uma relação de parentesco também quando a gente pensa, por exemplo, na ideia de pachamama (que é uma proposta dos povos indígenas andinos, principalmente). A Terra é vista como, de fato, alguém que deu origem à humanidade, como de fato a mãe da humanidade. É uma relação muito de você pensar da mesma forma como você pensa da sua mãe, como você pensa na sua avó, você pensa na Terra, no solo, nas árvores. E não é só a Terra como enquanto planeta, mas os elementos terrestres também. Então, quando a gente pensa nos outros animais, muitos povos vão dizer que são os nossos parentes, que são os nossos ancestrais que estão ali, que são pessoas como nós. Aquilo que os brancos vão chamar de perspectivismo ameríndio, que para a gente é só a nossa forma de pensar. 

Ailton Krenak conta a história de uma mulher indígena do povo Hopi, que é um povo que está na região que hoje a gente chama de Estados Unidos. Ela foi ser entrevistada e no meio da entrevista, o entrevistador para e tem que ficar esperando porque ela estava conversando com uma pedra. E ele pergunta para o tradutor: “Eu posso lá conversar com ela? O que está acontecendo?”. E ele responde: “Não, você tem que esperar um pouco, ela tá conversando com a irmã dela. “Mas ela tá conversando com a pedra!”. “É irmã dela, é irmã dela”. E o Daniel Munduruku também fala do Rio como o avô dele. 

Então, é de fato uma forma muito diferente, porque aí, eu entendo aquela Floresta como a minha mãe, como meu pai, eu não vou chegar com uma motosserra de matar minha mãe e o meu pai. Qual o grande problema da mineração para os Yanomami? É que o que está debaixo da Terra tem que ficar debaixo da Terra, está debaixo da Terra, por um motivo. Não foi atoa que Omama, que é Deus, colocou debaixo da Terra. Então se está lá, deixa lá. A mineração quer mexer naquilo ali, quer tirar aquilo ali. Então, tanto que os Yanomami vão dizer que existe muita doença hoje porque estão mexendo debaixo da Terra, aí a doença está subindo. 

E você me pergunta como os não indígenas podem mudar a sua relação com a Terra. Olha, para ser bem sincero com você, a única forma como eu consigo imaginar as pessoas não indígenas mudando sua forma de relação com A Terra é se unindo a partidos revolucionários, tomando os meios de produção da burguesia, iniciando uma ditadura do proletariado. Qualquer outra coisa que eu responder, para além disso, é jardinagem. Enquanto a população não indígena, a sociedade não indígena em geral, viver numa sociedade capitalista, não vai existir outro modo de relação com a Terra. Vocês me perdoem, mas não vai. Porque o capitalismo não consegue ver a Terra como qualquer outra coisa além de lucro, além de mercadoria. O objetivo, o foco do capitalismo é transformar o máximo de coisas que ele conseguir em mercadoria, em produto para ser vendido numa loja de departamento que você vai comprar e em 3 dias úteis chega na sua casa. Então, enquanto não for mudado esse sistema, esse modo de produção capitalista, não vai ter outra relação. 

Você pode tomar um banho mais curtinho que isso ainda vai mudar nada. Água vai continuar sendo desperdiçada pelo agronegócio em quantidades absurdas. Você pode fazer seu jardinzinho na sua casa – igual eu tenho na minha como eu falei, tenho minha hortinha na minha casa, linda, maravilhosa – mas eu sei que isso nem se equipara a quantidade de floresta, do lado da minha casa mesmo, que foi desmatada para colocar painéis solares, porque eles são “ecologicamente sustentáveis. Acho que você deve sim, adotar um estilo de vida diferente. Acho que vocês devem sim ser vegetarianos e veganos. Eu acho que a gente deve sim, tomar banhos mais curtos, mas entendendo que isso está mudando uma relação muito individual e que o que a gente deve buscar sempre é o coletivo. Isso é outra coisa que o indígena pensa, indígena nunca pensa em si mesmo. Ele pensa sempre no coletivo, ele sempre pensa em quanto o povo enquanto povos indígenas. Então não existe o eu existe o povo Puri existe o povo Tupinambá, o povo Yanomami, o povo Cariri. Então existem povos. E não indígena e perdeu um pouco isso. Ele precisa resgatar isso. Ele precisa voltar a pensar como humanidade, porque não adianta nada você ter o seu quintalzinho bonitinho ali, o seu banho curto, a sua dieta vegana, que quando o aquecimento global vier, vai morrer junto.

Bianca Rati

Perguntei para o André como os povos indígenas são afetados pela crise climática, pensando nessa relação tão íntima, de parentesco, entre os povos indígenas e a Terra.

André Muniz Puri

Como estamos num podcast voltado principalmente ao público cristão, eu vou usar um texto bíblico onde Jesus diz o seguinte, faz a seguinte afirmação: se você vai invadir uma casa e tem um homem forte nessa casa, você não invade a casa, porque esse cara vai dar um pau em você. Então você primeiro precisa domar esse cara, jogar esse cara no chão, amarrar em algum lugar, dar um tiro na cara dele… 

Não sei, mas você precisa tirar esse cara do caminho primeiro que aí depois você consegue invadir a casa e roubar os itens que tem lá dentro. E em relação à sociedade brasileira, o homem forte são os povos indígenas e outras populações tradicionais, como os quilombolas, os caiçaras, etc. Não dá para o cara invadir uma floresta quando tem Yanomami vivendo nessa Floresta, quando tem povo Krenak vivendo nessa floresta, quando tem povo Fulni-ô vivendo nessa floresta. 

Então, a primeira coisa que precisa ser feita é a eliminação dos povos indígenas. Por isso que na no processo de injustiça climática, os povos indígenas são os primeiros afetados. Porque eles são quem o Estado precisa remover para poder remover o resto. Então, o ataque aos povos indígenas que o Estado brasileiro faz desde que foi instituído e que nos anos recentes é só um recrudescimento… Porque tem muita gente que acha que a perseguição contra a gente começou com Bolsonaro, que o país era incrível, os povos indígenas prosperavam e aí chegou o Bolsonaro e acabou. É muito pelo contrário. O Ailton Krenak tem uma fala muito engraçada, foram perguntar para ele: “Nossa, o que que os povos indígenas vão fazer agora que o Bolsonaro foi eleito?” Aí o Ailton falou assim: “Cara, eu quero saber o que que vocês vão fazer! A gente está resistindo há 500 anos, mas para vocês que vai apertar agora, eu estou preocupado com os brancos, não com os indígenas!”. Os povos indígenas sempre foram mirados por conta disso, porque eles é que estavam na vanguarda, protegendo esses territórios que para o capitalismo, que para o neoliberalismo, que para a colonização, não são nada além de mercadoria, não são nada além de um local onde se pode obter lucro. Então é essa é uma das formas de uma das principais formas como nós somos afetados. 

Para além disso, o Estado brasileiro, quer continuar mantendo a gente parcela de pobres. No desastre de Mariana, por exemplo, de Brumadinho, olha o que aconteceu com o povo Krenak,. Agora, com as inundações que aconteceram em Minas Gerais, eu conheço uma comunidade Pataxó que foi alagada, completamente alagada. Então, assim, o que está acontecendo está afetando diretamente os povos indígenas porque somos nós que vivemos mais perto do Rio, mais perto das árvores, mais perto das florestas. Esses são os lugares que são os primeiros afetados. E aí, quando Rio de Janeiro e São Paulo começar a ter aquelas ondas de calor e a galera começar a morrer de insolação, quando começar a ter aqueles picos de frio no inverno e os moradores de rua começarem a morrer hipotermia, é porque é muito indígena já morreu antes no lugar onde era a floresta, de onde vinha aquela nuvem para poder cobrir o céu, de onde vem aquela nuvem de chuva… Muita gente já morreu antes porque eu tava protegendo aquela floresta que foi destruída. A partir do momento que você destrói a floresta, que você contamina o rio, um povo que vive de uma economia de subsistência que vive do rio, que vive da pesca, da caça, da coleta. Onde é que eles vão caçar? Onde é que eles vão coletar?  Onde é que eles vão pescar? 

Bianca Rati

Nós sabemos que existe um histórico muito difícil, violento e genocida do cristianismo colonial para com os povos indígenas brasileiros ao longo da história, infelizmente até hoje. Aproveitei que o André não somente é indígena mas também é teólogo anticolonial e perguntei quais  são os pontos principais que nós cristãos precisamos repensar (e mudar!) quando o assunto é povos indígenas e também em relação ao cuidado com a Terra?

André Muniz Puri

Acho que o primeiro é reconhecer que a gente recebeu uma leitura bíblica que é muito colonial. Acho que a gente tem um problema muito sério, principalmente hoje em dia de uma galera, em geral, de direita mais conservadora, que quer dizer que qualquer teologia que não seja igual ao deles é ideológica, quando a própria teologia deles é extremamente ideológica. É muito engraçado, a gente só consegue ver a ideologia do outro. A nossa ideologia geralmente passa batido. Então acho que a primeira coisa é a gente fazer essa autocrítica, é ter esse olhar, tipo assim: por que que ao longo de toda a história do cristianismo foi ignorado o fato de que tinha uma apóstola no livro de Romanos? E a gente segue repetindo que apóstolos são só os 12, que não existem mulheres apóstolas e muitas denominações até hoje, cito até a própria denominação Batista, da qual eu faço parte, segue dizendo em muitos estados que mulheres não podem ser pastoras. Baseados em quê? Porque na bíblia está lá Paulo dizendo claramente na carta aos romanos da apóstola Júnia. Então assim, você tem que estar muito absorvido uma ideologia para conseguir olhar aquele texto e não ver uma mulher apóstola ali. Então, acho que o primeiro é você ter esse contato, ter esse olhar, e aí, é claro, acompanhar pessoas indígenas, redes sociais e ver o que essas pessoas estão falando, indígenas cristãos, ler os textos dessa galera… Te ajuda nesse processo de dar esse start, sabe? De acordar. Ler teologia latino-americana, que é uma teologia extremamente crítica, a teologia feminista, teologia negra, etc. Tudo isso vai te ajudar a ter esse olhar que a teologia feminista vai chamar de hermenêutica da suspeita. Que é suspeitar daquilo que você está lendo, de suspeitar daquilo que te ensinaram, porque a pessoa que te ensinou, ela tinha uma ideologia por trás. 

Porque para mim é tão claro, gente, quando a gente lê a bíblia, a gente lê o livro dos profetas Amós, Oséias, essa galera está criticando a injustiça social de Israel com uma força, mas com uma força tão grande assim. Em Amós, Deus, está dizendo claramente: “Essa transgressão, eu não suporto. Vocês vendem o órfão por um par de sandálias. Isso eu não posso suportar”. Muita gente vai dizer que a questão do profeta era a idolatria, a idolatria é uma questão secundária, está muito claro, porque quando o Oséias vai falar sobre o culto de Israel, não era um culto pagão, não era um culto a outros deuses, era um culto a Javé, que Javé vai dizer que não aceita. 

E por que ele não aceita? Por conta da injustiça, o povo de Israel era tão injusto, tratava tão mal os pobres, os órfãos, os necessitados, as viúvas, os estrangeiros eram tão maltratados que Deus fala: “Esse culto, eu não quero.” 

E aí, você olha para um país como o Brasil, onde a gente tem uma população quilombola que até recentemente- não sei se mudou- só 2% dos territórios quilombolas no Brasil inteiro estavam regularizados. Então, assim não sei se mudou, deu uma atualizada, mas infelizmente eu acho que não, porque o nível que a gente está, principalmente nesse atual governo e com essa liderança da Fundação Palmares, imagino que não. Então, quando a gente olha para esse tipo de país, onde a Terra não é garantida, os direitos dos povos desse país não são garantidos. Quando a gente vê um genocídio contra a população cigana acontecendo na Bahia, quando a gente vê o genocídio contra a população negra acontecendo nesse país inteiro, quando a gente vê a forma como os povos indígenas são maltratados, quando vão no acampamento lá em Brasília lutar pelos seus direitos são recebidos com balas de borracha. Então, quando a gente vê esse tipo de acontecimento, você acha que o culto brasileiro está sendo aceito ou não? Sai na rua, olha para a população miserável, olha para a população de rua, olha para os pobres e responde para mim, se Deus está aceitando esse culto ou não. Se o Deus da vida, se o Deus da justiça, o Sol da justiça, o leão da tribo de Judá está aceitando esse culto ou não, ele está vomitando. Se ele falou para Israel que vomitava quando houve o culto deles, porque não suportava injustiça… O Brasil, então Deus já deve ter vomitado tudo o que tinha para vomitar, deve estar apodrecendo já de tanta raiva que ele deve estar, a ira de Deus já deve estar alcançando níveis estratosféricos, porque é inaceitável, é inaceitável.  Eu estou falando a partir do que a bíblia me diz. Então, se eu abro a bíblia, eu leio um de Isaías onde Deus diz que o jejum que ele quer é que se cuide dos órfãos das viúvas, nas suas necessidades, se o jejum que ele quer é este, é que se cuide, é que se pare de fazer fofoca, é que se pare de criar intrigas, é que se realmente se importe com as pessoas necessitadas, que você tire o jugo da opressão das pessoas que estão sendo oprimidas. E aí você lê que esse é o jejum e você vai fazer uma campanha de 100 dias de jejum na igreja de refrigerante? Se as pessoas parassem de simplesmente ignorar o que está dito no próprio texto sagrado que as pessoas dizem que seguem elas vão ter essas respostas.

É só olhar para o Ministério de Jesus: o que Jesus estava fazendo? Com que pessoas ele estava andando? Até teólogos conservadores como CS Lewis, deixaram isso muito claro. No seu livro Cristianismo Puro e Simples, se Jesus tratava com tanto rigor os fariseus e mestres da lei, e com tão pouco rigor as prostitutas, por que que a igreja está tão preocupada com a imoralidade sexual e tão pouco preocupada com a religiosidade? Então, uma coisa que não está batendo, vamos recalcular a rota que tem alguma coisa errada. Jesus diz com todas as letras: “Bem aventurados os pobres, é muito difícil um rico entrar no céu, tá gente? Ó, já aviso isso pra você. É quase impossível um rico entrar no céu.” Então assim, se Jesus está dizendo isso porque a gente tem que inventar tanta desculpa para Jesus, não está dizendo isso, né? A gente precisa entender que a nossa leitura é muito ideológica, nossa leitura bíblica sim, porque se você não entender isso, você vai continuar reproduzindo a ideologia da classe dominante. A ideologia que é patriarcal, ideologia colonialista, ideologia daqueles primeiros padres que chegaram no Brasil e falaram que esses povos indígenas eram sem fé, sem lei e sem rei. Então precisa ter esse reconhecimento.

Música:  Aguyjevete – Katu Mirim

Vou falar, toda licença

Eu vim te apresentar

A verdadeira história que eles tentam camuflar

O Brasil tem genocídio, dor, massacre e escravidão

Mas isso não aparece na sua televisão

Com arma na mão, e cruz no pescoço

Mataram mais de mil parentes lá no Mato Grosso

Absurdo é dono da terra ter que lutar por demarcação

E os ratos chamam isso de grande revolução

Meu grito ecoará, arrebentará sua janela

Meu sangue é meu orgulho, não é sua aquarela

To fora que agora nossos povos se unirão

Então corre agora são vocês que fugirão

São vocês que fugirão

Maraca, cocares, tambores, turbantes

A Terra tremerá como nunca tremeu antes

Bianca Rati

Depois de ouvir a aprender mais sobre justiça climática, especialmente sobre o papel de grandes indústrias e governos mundiais em continuar explorando de modo opressivo a Terra e seus habitantes, a pergunta que fica é: o que dá para fazer? Porque essa conversa toda parece na verdade um anúncio de um apocalipse inevitável. Encarar a crise climática pelo viés individual e apocalíptico gera em mim uma grande ansiedade, a angústia de ver o mundo acabando. E acho que nos últimos dois anos pandêmicos, difíceis e traumáticos, essa ansiedade só aumenta. E como alguém que lida diariamente com a ansiedade, por diversos motivos, eu sei o quanto precisamos cuidar desse sentimento por nós, mas também pela Terra. Precisamos encontrar alternativas, traçar estratégias e encontrar esperança uns nos outros. Minha última pergunta para as pessoas que eu entrevistei foi essa: o que dá para fazer?

Amanda Costa

Eu conheço pelo nome de eco ansiedade, eco anxiety inglês e aqui no Brasil, o termo está começando a ser difundido agora. Que é isso, esse medo do futuro, esse medo do que vai acontecer, de não saber se temos possibilidade de futuro. Esses pensamentos me rodeiam também, mas quando eles vêm, eu exercito a fé, que é a certeza das coisas que não se vêem, mas que a gente espera. E começar a decretar e profetizar, assumir o meu próprio futuro e falar, não, não aceito essa realidade imposta. Eu, enquanto embaixadora do Reino, vou criar uma outra realidade.

Então quando a ansiedade climática bate eu paro, respiro fundo e converso com Jesus e profetizo a partir do que está na palavra de Deus. E aí tem algumas coisas práticas que me ajudam a comprovar esse sentimento, que constante, que é um grande desafio da nossa geração. E o que me ajuda: estar na natureza. Quando estou ficando muito ansiosa, eu percebo que eu me afastei da natureza, me afastei dos parques, me afastei das praias, me afastei das montanhas. E quando eu não dá para fazer montanhismo porque a gente só faz trilhas de inverno. Eu vou para o parque com meus amigos, tiro o sapato, ando na grama… Alimentação também me ajuda, então buscar comer coisas mais naturais possíveis. E uma última coisa que eu gosto muito, muito, muito de fazer exercício físico. Quando eu sinto que a minha cabeça vai explodir, que eu não aguento mais meus próprios pensamentos eu vou correr. Correr para mim é uma válvula de escape, ajuda a oxigenar a mente, as ideias. 

A gente não precisa salvar o mundo. A partir do momento que a gente muda a nível individual, a gente já vai estar sendo um referencial para as pessoas que estão perto de nós. Então não transforme o mundo, transforme o mundo de uma pessoa. Analisar essa estrutura sistêmica global, pode ser muito complexo e trazer umas um certo medo e ansiedade. Mas a partir do momento que a gente desloca desse global para o individual e pro coletivo que a gente começa a ver que existem possibilidades caminhos, coisas práticas que eu posso fazer sim. Ter uma alimentação consciente, diminuir consumo de carne, usar coletor menstrual ou usar absorvente de pano, diminuir a quantidade de lixo no meio ambiente. É interessante que quando a gente adota essas micro revoluções diárias, a gente cria a possibilidade de diálogo com as pessoas que estão ao nosso redor. 

Só que essas atitudes individuais são importantes, mas não podem parar por si só. É muito, muito, muito imprescindível que cada um se envolva coletivamente, ou seja, atue com outras pessoas. Procure ONGs, coletivos, organizações que estejam à sua volta. E aí pra galera jovem que quer saber mais desse assunto, tem minha organização, a Perifa Sustentável, tem a Engaja Mundo, tem a Global Attitude, tem a Global Shapers, tem diversas organizações que, dependendo da bolha que a gente está, a gente nem faz ideia que existe. Mas a partir do momento que a gente escuta um podcast e aprende uma outra realidade, tem a oportunidade de troca, a gente vai ampliando nosso nível de consciência, vai ampliando o escopo de atuação e ver que tem muita gente massa fazendo um trabalho incrível e que a gente pode se juntar. 

E um terceiro ponto que eu gostaria de salientar é ter um acompanhamento político, entender quem são os tomadores de decisão que você votou. O que eles tão fazendo com o meio ambiente? Quais são os projetos de leis que estão sendo votados dentro do lugar que você está? Você acompanha o vereador? Você acompanha esses deputados estaduais? Entende o que que tá rolando aí? Ou até mesmo uma micropolítica, o que está pegando no seu bairro? E no seu apartamento, tá participando da reunião de condomínio que ninguém gosta de ir? Está entendendo o que está sendo votado? Está trazendo uma proposição de uma horta no seu prédio, uma horta orgânica. Enfim, são diversas atitudes que a gente pode tomar em diversos níveis, seja no nível individual, ou seja, no nível coletivo, ou seja, no nível político.

Isabel Pereira

A gente precisa agir com urgência contra a crise climática. E aí com isso a gente não tem mais só como buscar setores da sociedade a gente tem que buscar engajamento de toda a sociedade. E o que a gente entende é que justamente é a religião e essas lideranças religiosas têm uma conexão muito profunda com as pessoas porque elas estão ali no dia a dia com as pessoas. E as pessoas que fazem parte de algum grupo religioso, de alguma religião ou que têm alguma expressão de fé se sentem de alguma forma acolhidas e fortalecidas naquele ambiente. Então esse diálogo acontece dentro dessas comunidades de fé, é um diálogo muito poderoso e muito importante porque chega realmente no que elas, no que as pessoas acreditam, em como elas vivem suas vidas. A gente já sabe que nas mais diversas religiões e outras expressões de fé e espiritualidade já existem textos sagrados que falam dessa conexão entre meio ambiente e as pessoas, os humanos, de como nós temos que fazer esse cuidado do meio ambiente. É trazer realmente trazer essa convergência entre o que a ética religiosa e a ética ambiental. Então é nesse ponto que o Fé no Clima atua. O que a gente faz é promover diálogos, onosso papel é promover diálogos de conhecimentos que já existem.

A gente acha que é importante que elas dialoguem com as suas comunidades e aí são as pessoas mais próximas mesmo, a sua família, os seus amigos, seu círculo, as pessoas que moram em volta de você e isso seja um tema que possa ser conversado em comunidade, seja ela qual for, e se ela for uma comunidade religiosa, ótimo também. Ter reflexões em um grupo sobre isso, ter reflexões na sua igreja, no seu grupo de estudos, que você traga isso de alguma forma.

No que elas conseguirem, porque a gente sabe que muitas vezes têm uma limitação do que as pessoas podem efetivamente fazer, que elas também mudem seus hábitos individuais, mas isso assim vou repetir de novo, no que seja possível para cada um. No que seja possível, porque a gente sabe que muitas vezes não é possível. E aí isso é tudo bem. Entender o quanto o poder público também influencia é no que está sendo feito. Então é saber como participar de conselhos municipais ou conselhos estaduais, se for da vontade das pessoas, se as pessoas tiverem tempo e quiserem se envolver. Existem conselhos municipais de sobre meio ambiente. Existem conselhos estaduais sobre meio ambiente. Aqui no Rio existe também sobre bacias hidrográficas, eu não sei como é em outros locais, mas se a pessoa tiver vontade de participar desses conselhos é muito importante. E a última coisa que a gente acha bem importante e tem a ver com a primeira, sobre a informação, é a questão do voto consciente. É saber que seu voto pode sim influenciar a entrada de pessoas no poder que vão, de alguma forma, dialogar ou não com esse tema. Ou dialogar positivamente ou dialogar negativamente. Pesquisar, se informar, saber o que essas pessoas estão propondo em relação a mudanças climáticas em relação à proteção do ambiente é muito importante.

André Muniz Puri

É, a gente pode falar direito dos povos indígenas? Sim, porque até porque a gente dança conforme a valsa. A gente tem que entender o tipo de país que a gente está. A gente tem que adquirir estratégias, né? Então, a gente, estrategicamente, usa os termos dos brancos. A gente se insere nas universidades dos brancos, a gente faz, aprende, faz matrícula nos cursos de direito, nos cursos de antropologia, a gente aprende as áreas deles e a gente adquire essas armas para a gente usar a nosso favor, é uma questão de estratégia. Quando você é 0,8% da população brasileira, que é o caso dos povos indígenas, você tem que saber dançar conforme a valsa. Então são questões estratégicas, sim. A gente usa o termo direito dos povos indígenas, inclusive direitos internacionais. A gente tem que entender isso. Eu sempre bato nessa tecla porque é muito importante a gente entender. Por exemplo, num caso como Rússia, invadiu, a Ucrânia a mídia ocidental cai em cima do que está acontecendo, de uma forma completamente desproporcional a todos os outros conflitos que estão estavam estão acontecendo nesse exato momento. Que nenhuma pessoa tenha a falta de caráter de manipular o que eu tô dizendo para dizer que eu estou defendendo qualquer um dos lados desse conflito. É um conflito obviamente muito trágico. E quem sofre nesse tipo de conflito são pessoas inocentes que estão, por exemplo, dos metrôs da Ucrânia, que estão tentando fugir do país, pessoas negras, pessoas ciganas que cuja cidadania está sendo negada, que não podem sair da Ucrânia no meio de uma guerra, porque os países ao redor não os aceitam como refugiados, então isso está acontecendo. Enfim, então a gente vê a mídia olhando para a Ucrânia e realmente tem que olhar, tem que ser falado, porque é algo que está acontecendo. É algo importante, algo que abala o mundo. Mas quando se invade o território Yanomami, cadê a cobertura do Fantástico em cima disso, sabe? Cadê a cobertura da Globo? Cadê a cobertura das redes de emissoras? As fotos no WhatsApp do pessoal colocando, sei lá, uma bandeirinha no nick não. É completamente desproporcional. Então, a gente está em guerra. Ailton Krenak ele fala isso a gente está em guerra, eu acho que vocês não perceberam isso, não sei que você está olhando para mim com essa cara normalzinha e bonitinha, porque a gente está em guerra. 

E se tem gente morrendo, se tem gente sangrando, se tem criança Yanomami morrendo de desnutrição é porque tem uma guerra acontecendo. Se a gente tem povos indígenas morrendo por conta do covid porque, é muito mais do que a população em geral, se você pega os dados de mortos por covid, você vai ver que a porcentagem de pessoas que morreram de covide em terras indígenas é desproporcionalmente mais alta do que a da população em geral. Como que eu posso chamar isso de outro nome que não genocídio? Que não uma guerra? Então é isso que está acontecendo. Estamos em guerra. Só que a nossa guerra não está sendo televisionada. A nossa guerra não está recebendo visibilidade, mas a guerra está acontecendo. 

Quando a gente fala dessas demandas que os povos indígenas têm, são várias, são várias, são inúmeras. Cada povo vai ter suas demandas em particular. Isso é uma coisa que tem que ficar muito clara, são mais de 300 povos só território que a gente chama Brasil mas essas fronteiras foram demarcadas por europeus, elas não são respeitadas pelos povos indígenas porque eles já viviam aqui antes de fazerem a linha. Muitas demandas são muito parecidas, né? Demarcação de terras, demarcação de terras é uma coisa que todo o povo indígena está batendo nessa tecla porque a gente está num tempo em que nem quem tem a Terra já demarcada homologada, tudo registrado, bonitinho em cartório está protegido mais, porque vem o Congresso é aprova um projeto de lei para permitir mineração em Terra indígena. Então, nem o cara que tinha a sua Terra protegida ali demarcada, homologada, ele está seguro, então assim, essa questão da demarcação de terras, a luta pela Terra é talvez uma das principais, se não, a principal luta do movimento indígena. De um modo geral. Mas para além disso, você tem povos que estão sofrendo muito com a questão da educação, precisam de políticas de educação, você tem povos que são políticas de saúde. Você tem povos que precisam de políticas de segurança alimentar, então isso vai variar muito de povo para povo e é muito necessário conhecer essa realidade. 

Se você quiser ajudar, primeiro conhecer essas demandas, e você pode procurar uma demanda particular onde você possa ajudar. Isso é muito interessante. Se você é, por exemplo, uma professora ou um professor, você pode procurar como ajudar na área de educação, você pode procurar também os que estão próximos de você ao invés de procurar, quem está precisando nessa área, você pode procurar quem está perto de você e como você pode ajudar. Todos os estados do Brasil, tem terras indígenas, todos os estados do Brasil tem comunidades indígenas, então no seu estado tem uma com pelo menos uma comunidade indígena. Você pode encontrar essa comunidade, você pode ir lá, é visitar, conhecer, tentar, entrar em contato ou ver como você pode fazer para contribuir? Você conversa com o pessoal da comunidade e vê se aceitam visita ou não, como é que é… Se eles cobram alguma coisa, é, e aí você indo você pode comprar um artesanato, você já pode ajudar financeiramente, né? Comprar um artesanato ajuda a aldeia nesse sentido. Porque você pode ajudar de outras formas também. Às vezes é uma questão política. Tem uma aldeia que precisa de ajuda para fazer barulho em frente a uma prefeitura porque está precisando de um licenciamento. Então precisa de gente para ir lá para se somar num corpo que vai lutar por direito, que vai ocupar um espaço. Ações de retomada de Terra tem sido graças a Deus cada vez mais comuns e a gente precisa se movimentar mesmo, porque cara, tem muito povo aí que está sem Terra. A galera fala que tem muita Terra para pouco indígena, ao contrário, tem muito indígena para pouquíssima Terra nesse país. A gente precisa justamente retomar mais territórios para que a gente possa proteger esses territórios, porque onde tem, como eu falei, onde tem indígena, o estado não pode chegar com a motosserra. A empresa não pode chegar com a motosserra. Então, a gente precisa justamente é que tenha mais territórios com povos indígenas ali, retomando, guardando esses territórios, protegendo esses territórios. Então é precisamente o contrário. Ação de retomada é punk. É complicado assim, então a gente precisa mesmo de corpos com a gente.

É importante conhecer as pautas. Então como você faz isso? Seguindo pessoas indígenas nas redes sociais seguindo o Sonia Guajajara, Célia Xakriabá, seguindo a APIB, que é Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, o CIMI, Conselho Indigenista Missionário. Quando você está seguindo as suas páginas, você vai vendo o que que eles estão postando, o que está sendo necessário… E é claro, disputar na política, não é? A gente está disputando esse espaço na política também. Então é que tipo de presidente você vai votar? Você, cristão que acredita no Deus da vida, vai votar num presidente que promoveu a morte de milhões de brasileiros? Você tem que fazer essa pesquisa muito bem. Tem pessoas indígenas concorrendo a cargos políticos na sua cidade, no seu estado? Quem são essas pessoas? Por qual partido elas estão concorrendo? A gente tem aumentado o número de candidaturas indígenas, felizmente. A gente tem inclusive a Joenia Wapichana, que foi a primeira deputada federal indígena eleita e que tem feito um trabalho sensacional e recomendo todo mundo a conhecer o trabalho dela. A gente tem conseguido pequenas vitórias nesse sentido, por exemplo, o Movimento Puri, da zona da mata mineira, conseguiu o direito de ter o nome da nossa etnia no nosso cartão do SUS, porque quando você vai se colocar como indígena no SUS, eles perguntam qual etnia e entre as etnias não aparecia etnia Puri, então a gente não podia se declarar Puri. Agora a gente pode. Então é uma conquista. A gente precisa que o estado brasileiro nos reconheça, enquanto um povo indígena ressurgente, um povo indígena resistente, como outros vão preferir dizer, é um povo indígena que resistiu às políticas de embranquecimento e de etnocídio do estado brasileiro.

Oração para libertação dos povos indígenas, por Eliane Potiguara

Parem de podar as minhas folhas e tirar minha enxada

Basta de afogar as minhas crenças e torar minha raíz.

Cessem de arrancar os meus pulmões e sufocar minha razão

Chega de matar minhas cantigas e calar minha voz.

Não se seca a raíz de quem tem sementes

Espalhadas pela terra pra brotar.

Não se apaga dos avós – rica memória

Veia ancestral: rituais para se lembrar

Não se aparam largas asas

Que o céu é liberdade

E a fé é encontrá-la.

Rogai por nós, meu pai-Xamã

Pra que o espírito ruim da mata

Não provoque a fraqueza, a miséria e a morte.

Rogai por nós – terra nossa mãe

Pra que essas roupas rotas

E esses homens maus

Se acabem ao toque dos maracás.

Afastai-nos das desgraça, da cachaça e da discórdia,

Ajudai a unidade entre as nações.

Alumiai homens, mulheres e crianças,

Apagai entre os fortes a inveja e a ingratidão.

Dai-nos luz, fé, a vida nas pajelanças,

Evitai, Ó Tupã, a violência e a matança.

Num lugar sagrado junto ao igarapé.

Nas noites de lua cheia, ó MARÇAL, chamai

Os espíritos das rochas para dançarmos o Toré.

Trazei-nos nas festas da mandioca e pajés

Uma resistência de vida

Após bebermos nossa chicha com fé.

Rogai por nós, aves-dos-céus

Pra que venham onças, caititus, siriemas e capivaras

Cingir rios Jurema, São Francisco ou Paraná.

Cingir até os mares do Atlântico

Porque pacíficos somos, no entanto.

Mostrai nossa caminho feito boto

Alumiai pro futuro nossa estrela

Ajudai a tocar as flautas mágicas

Pra vos cantar uma cantiga de oferenda

Ou dançar num ritual Iamaká.

Rogai por nós, ave-Xamã

No Nordeste, no Sul toda manhã.

No Amazonas, agreste ou no coração da cunhã.

Rogai por nós, araras, pintados ou tatus,

Vinde em nosso encontro

Meu Deus, NHENDIRU !

Fazei feliz nossa mintã

Que de barrigas índias vão renascer.

Dai-nos cada dia de esperança

Porque só pedimos terra e paz

Pra nossas pobres – essas ricas crianças.

Bianca Rati

Este episódio é o segundo de uma série de programas que vamos lançar aqui no Projeto Redomas. Eles são parte do meu projeto final para o programa Fellowship da ong estadunidense CreatureKind, da qual tenho a honra de participar.

A missão da CreatureKing é encorajar os cristãos a reconhecerem as razões, baseadas na fé, para se preocuparem com o bem-estar de animais usados para alimentação e a tomarem ações práticas em resposta. 

André Muniz, um dos entrevistados aqui do programa é escritor e tem um livro muito importante para quem quer continuar esse trabalho de decolonizar a sua fé, vou deixar um trechinho aqui dele falando sobre o livro.

André Muniz Puri

O livro Teologia Anticolonial: Caminhos do Cristianismo Indígena, esse livro é resultado da minha pesquisa da graduação em teologia e nele eu vou tentar dar uma olhada nessa nesse cristianismo colonial a partir das teorias decoloniais e anticoloniais, principalmente. A partir dessa crítica que se faz a colonialidade, eu vou tentar dar uma olhada no cristianismo e ver o que que tem de colonial nele, como é que foi essa chegada do cristianismo no Brasil, como é que foram esses processos de genocídio da população indígena, o quanto os cristãos estavam envolvidos nisso ou não. Mas principalmente, é um livro sobre cristãos indígenas acima de tudo e como a população indígena cristã, ela pode repensar essa fé cristã. Ela tem repensado, aliás, essa fé cristã a partir dos seus próprios moldes, da sua própria cultura. 

Bianca Rati

Minha profunda gratidão a Amanda Costa, Isabela Pereira, Julia e André Muniz Puri que tanto nos ensinaram nesse episódio. Agradeço também a Luciana Petersen que fez a leitura de alguns trechos de A Parábola do Semeador, um livro de Octavia E. Butler. No post deste programa no site do projeto redomas (projetoredomas.com) você pode conferir a transcrição deste programa, com os links para os materiais citados pelas pessoas entrevistadas, trilha sonora e conteúdo das entrevistas.

Obrigada a quem ouviu até aqui e até o próximo redomascast!

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