Transcrição: Redomascast 99 – Cordeiro, Leão e Galinha

Episódio 3: Deus Leão, Cordeiro e Galinha

Música de fundo: Comfortable Mystery 4 (Kevin MacLeod – Incompetech)

[Trecho da notícia:  “Frigorífico é condenado por expor funcionários ao contágio da covid-19” via Paraná no Ar]

“Um frigorífico aqui do nosso estado foi condenado a pagar 10 milhões de reais por danos morais. 10 milhões. A empresa até então era acusada de expor os funcionários ao contágio da Covid-19, só que vai poder recorrer da decisão, veja. Conforme a decisão do Tribunal Regional do Trabalho a empresa foi condenada depois que a perícia técnica foi realizada no local e comprovou que funcionários estavam sendo expostos à contaminação da covid -19, isso porque medidas sanitárias não estavam sendo tomadas. Além de ter que pagar uma indenização de 10 milhões de reais, a justiça também determinou que a empresa crie novas medidas de segurança para evitar que novas pessoas sejam contaminadas. Dos 3.552 funcionários que trabalham no local, 159 positivaram para a Covid-19 e 2 morreram. […] A JBS informa que recorreu da decisão, a companhia reforça que não tem medido esforços para a garantia do abastecimento e da produção de alimentos dentro dos mais elevados padrões de qualidade e segurança, além da máxima proteção dos colaboradores e que vem incentivando os funcionários a se vacinarem. (RIC Paraná)”

Narração: Bianca Rati 

Fazes jorrar as nascentes nos vales e correrem as águas entre os montes; delas bebem todos os animais selvagens, e os jumentos selvagens saciam a sua sede. As aves do céu fazem ninho junto às águas e entre os galhos põem-se a cantar. Dos seus aposentos celestes ele rega os montes; sacia-se a terra com o fruto das tuas obras! É ele que faz crescer o pasto para o gado, e as plantas que o homem cultiva, para da terra tirar o alimento: o vinho, que alegra o coração do homem; o azeite, que faz brilhar o rosto, e o pão que sustenta o seu vigor. As árvores do Senhor são bem regadas, os cedros do Líbano que ele plantou; nelas os pássaros fazem ninho, e nos pinheiros a cegonha tem o seu lar. Os montes elevados pertencem aos bodes selvagens, e os penhascos são um refúgio para os coelhos. Ele fez a lua para marcar estações; o sol sabe quando deve se pôr. Trazes trevas, e cai a noite, quando os animais da floresta vagueiam. Os leões rugem à procura da presa, buscando de Deus o alimento, mas ao nascer do sol eles se vão e voltam a deitar-se em suas tocas. Então o homem sai para o seu trabalho, para o seu labor até o entardecer. Quantas são as tuas obras, Senhor! Fizeste todas elas com sabedoria! A terra está cheia de seres que criaste. Eis o mar, imenso e vasto. Nele vivem inúmeras criaturas, seres vivos, pequenos e grandes. Nele passam os navios, e também o Leviatã, que formaste para com ele brincar. Todos eles esperam em ti para que lhes dês o alimento no tempo certo; tu lhes dás, e eles o recolhem, abres a tua mão, e saciam-se de coisas boas. 

Música de fundo: Rising Tide (Kevin MacLeod – Incompetech)

Francisco, de Guilherme Samora interpretado por Thiago Rodgers

Era frequente encontrar Francisco conversando com os animais, abraçado a eles e sempre rodeado pelos mais variados tipos. Chamava-os de irmão, via Deus naquelas criaturas. preocupado com as abelhas no inverno, costumava alimentá-las com mel ou alguma bebida doce. Uma vez, durante uma viagem, deixou os irmãos para trás ao avistar um bando de pássaros. Ele se aproximou e chamou a todos de irmãos. Como as aves não fugiram, decidiu pregar para elas. Segundo relatos de irmãos que os observavam, ele passou por entre as aves, que não se moveram até que ele fizesse o sinal da cruz. Desse dia em diante, Francisco começou a falar com todos os animais que cruzassem seu caminho. Em sua história, diversas passagens cheias de amor e de significado envolvem os bichos. Os pássaros gostavam tanto dele que, durante uma pregação, Francisco pediu licença às andorinhas – que faziam barulho – para poder falar com o povo. Elas ficaram quietas até a última de suas palavras e, depois, voltaram a cantar alegremente. Certa vez, um pescador deu um peixe a Francisco. Ele pegou o animalzinho e o devolveu à água. O peixe continuou a nadar próximo de onde o santo estava e ele pediu que seguisse seu caminho, que voltasse à liberdade. E, assim, o peixe nadou para longe. Em suas andanças, Francisco de Assis também libertou diversos animais capturados por caçadores.

[sfx transição: notícia + parte final do texto bíblico]

Abertura do Redomascast

Bianca Rati

Sejam bem vindes a mais um redomascast! Eu sou Bianca Rati e nos últimos dois episódios desta série eu e você temos embarcado em uma jornada de reconexão da nossa fé cristã com a natureza. Pensamos sobre os frutos da terra falando sobre soberania alimentar e também sobre como precisamos cuidar desta terra pela perspectiva da justiça climática. Mas ainda ficou faltando falar de um assunto que se conecta com os tópicos que temos trabalhado: os animais não humanos. 

Esse é um assunto que tem ganhado espaço na mídia e que sempre gera polêmicas. E por causa disso, sempre parece um assunto difícil de falar sobre, mexe muito conosco. É por isso que durante a produção deste programa, tentei manter a mente e o coração abertos e te convido a fazer o mesmo, ainda que nem eu e nem você saibamos o que vamos tirar de tudo isso no final. Aliás, o que a gente já pensa sobre animais? Vamos começar com um exercício de memória. 

Se você cresceu na igreja como eu, ou é uma pessoa cristã a muito tempo, vasculhe sua memória em busca de recursos para falar de animais com base na fé cristã, procure por classes de escola bíblica dominical que frequentou, a catequese, pregações e homilias ouviu, músicas que cantou ou livros religiosos que leu… E aí? Lembrou de algo? Bom, como não consigo saber sua resposta agora, vou te contar o resultado do meu exercício. A impressão que eu tive foi que apesar de poder citar diversas histórias que envolvem animais na bíblia, não tinha sido ensinada uma teologia de como deveríamos tratar os animais. Não teve aula de EBD sobre isso, nem pregação, nem lição. Novamente, parece que podemos passar uma vida inteira sendo cristãos sem considerar os animais. E será que isso é um problema? Se todas as autoridades e toda a teologia hegemônica não considera os animais, acho que Deus não os considera também, né? O que Deus realmente pensa sobre os animais? Será que os cristãos deveriam se preocupar com os animais? E se sim, o que essa preocupação envolve?

Com esse monte de perguntas na cabeça e muito confusa, resolvi buscar ajuda de quem faz esse trabalho de conectar a fé aos animais a muitos anos, chamei a pastora Aline Silva para conversar e já pedi para ela começar me respondendo: por que os cristãos deveriam se preocupar com os animais?

Aline Silva

Aqui quem fala é Aline. Eu sou uma mulher de origem negra e indígena, nascida e criada no Brasil. Eu tenho um Masters of Divinity, sou treinada e licenciada em coaching vocacional e trabalho como co-diretora da Ong CreatureKind. Antes de vir para a CreatureKind, eu servi por mais de uma década como pastora local de populações rurais e agrícolas nos estados de Kansas, Missouri e Colorado.Ou seja, eu sou uma imigrante queer vivendo nos EUA desde os meus 16 anos. Hoje com 35 aninhos me encontro nos territórios e terras não cedidas dos povos Tequesta, Taino e Seminole, no sul da Flórida. Eu opto por não comer animais não humanos, que são meu companheiros e co-adoradores de Deus, nosso Criador. Na maioria das vezes, você pode me encontrar rindo alto, rebolando, compartilhando minha vida com meu filhote de apoio emocional, Paçoca, lendo, ou assistindo muito trash reality TV. Se você quiser, você pode aprender mais sobre meu trabalho seguindo @CreatureKind no Twitter, Facebook e Instagram. Até o momento nosso material se encontra majoritariamente disponível em Inglês. Mas digo desde já que estamos trabalhando para que o nosso site, nossas redes sociais e nossos materiais sejam mais acessíveis, inclusive para aqueles que não falam Inglês. 

Como você mesmo disse, na narrativa bíblica encontramos vários instantes onde animais não humanos fazem parte da comunidade de Deus e assim fazem parte dos planos de Deus para o mundo. Começando pelo início das narrativas de criação em Gênesis vemos que existem dois tipos de seres: 

  1. Criador ou Criadores. Conhecido como Elohim (Hebraico). 
  2. Criaturas

Ou seja, no início de tudo não encontramos separação entre as criaturas, que inclui primeiramente os elementos naturais como a terra, a água, o ar, e até mesmo as estrelas, segundamente animais não humanos, e depois a humanidade, construída em Há-Adão (termo hebraico). Vemos a partir dessas narrativas uma preocupação contínua que Deus tem com suas criaturas. Vemos que foram deixadas instruções de como as criaturas devem interagir e viver umas com as outras. Vemos que Deus se compromete com o bem estar na vida e na morte de suas criaturas. Sabemos disso, pois ao finalizar a criação Deus declarou que todos eram bons. E mesmo que haja uma instrução específica para Há-Adão nomear e categorizar outras criaturas, Deus não fala que a humanidade é melhor que as outras criaturas. Sabemos também que Há-Adão passou tempo vivendo entre outras criaturas, experienciando sua presença e as nomeando de acordo com seus comportamentos naturais. Os nomes dado por Há-Adão vieram após ver com os seus próprios olhos como as criaturas interagiam naturalmente entre si. Há-Adão não tirou do nada os nomes que deveria ter. Se estudarmos a etimologia desses nomes veremos que não foi por acaso. Venho de um relacionamento íntimo entre a humanidade representada por Há-Adão e as outras criaturas afirmando a sua boa natureza. 

Detalhe também que só temos a narrativa antropológica, ou seja uma narrativa de acordo com os animais humanos. Deveremos imaginar também como a narrativa da Criação vem do meio não humano. Por exemplo, será que se as rãs pudessem escrever elas não se colocariam no centro da criação? E mais: a primeira benção e o primeiro mandamento “frutificai e multiplicai-vos” vem em Gen 1:22 e chega às criaturas não humanas. Ou seja, Deus se comunica diretamente com suas criaturas não humanas lhes deixando mandamentos.  

Hoje sabemos que vivemos em um mundo onde há separação entre humanos e não humanos, há categorias de espécies e subespécies, há colapsos no ecossistema e elementos naturais que levam a extinção de alguns seres em favor da sobre exploração de outros. Ou seja, nossos co-adoradores de Deus não humanos , os recipientes do primeiro mandamento já deixado,  estão sendo superexplorados e já não podem mais serem frutíferos e se multiplicam em seus ambientes naturais. Nas melhores circunstâncias os tratamos como pet tirando deles sua agência, o poder sobre seus próprios corpos e livre arbítrio, e nas piores das circunstâncias os maltratamos tirando deles suas famílias, habilidade de viverem naturalmente em seus ambientes e os matamos em massa e usamos maneiras assombrosas para fazer isso. 

É importante lembrar também que este especismo, essa separação entre humanos e não humanos, essas categorias de espécies e subespécies, tem o homem branco cis hetero no topo da criação. Essa leitura colonial e imperialista é pecaminosa, pois a narrativa que nós encontramos na bíblia é baseada na equidade de tudo e todos e não na conquista de quem ou daquilo que consideramos subcategorias. Então por que aqueles que creem em Deus, seguem Jesus e clamam pela justiça na terra devem se preocupar com animais? Primeiramente porque Deus se preocupa. Segundamente porque somos todos criaturas de um mesmo criador. 

Bianca Rati

Enquanto escutava Aline falar e salientar o ponto que nós e os animais somos todos criação divina eu lembrava de algumas coisas que ouvi pessoas cristãs falarem e até que eu mesma já pensei a respeito dos animais, especialmente quando se trata de não comê-los. Lembro de algumas falas como “Deus nunca disse que a gente não poderia comer/usar animais, pelo contrário, Deus exigia sacrifício animal do seu povo, Deus mandou os humanos dominarem os animais e até mesmo Jesus multiplicou os peixes para as pessoas comerem”. Então perguntei para Aline como ela responde a esses argumentos.

Aline Silva

Primeiro nós aqui na CreatureKind realizamos uma leitura descolonizada do texto bíblico. Seguimos uma leitura da bíblia que é sócio e historicamente localizada. O que isso significa? Quero dizer que ao contrário do fundamentalismo religioso, ao contrário daquilo que nos foi ensinado por colonizadores, temos uma teologia da libertação. Esta teologia se foca em corpos e ambientes marginalizados. Uma teologia centrada e focada no acolhimento, afeto e reintegração à comunidade.  Cremos num Deus que se encarnou em um corpo marginalizado na periferia de Nazaré. Eu queria detalhar aqui que ambientes podem ser marginalizados também. Ambientes que são planejados intencionalmente para desumanizar, oprimir, e manter todos que ali vivem em uma subespécie de criaturas. Ambientes onde existe falta de  estruturas e assistência ambiental e que sofrem  muito com mudanças climáticas sem receber amparo do estado.  Aliás, o agronegócio escolhe lugares assim para empreender seu negócio. Escolhe lugares onde os povos já existem à margem da sociedade para continuar poluindo sua água, seu ar e seus habitantes. 

Segundo, tenho que falar da escala. Oque fazemos hoje e o que era feito no tempo de Jesus não é o mesmo. Não tem como fazer esse tipo de comparação. Terceiro que ao fazer sacrifícios existiam sacrifícios que envolviam grãos, frutas, e animais. Estes sacrifícios eram sempre ligados à provisão de Deus para com a comunidade. Não dizendo que as pessoas deveriam dar para receber, mas falando principalmente que através desses sacrifícios a comunidade, juntamente com seus líderes independente de seu poder aquisitivo pudessem se alimentar em um sociedade onde a pobreza e a desigualdade reinavam.

Hoje em dia quando criamos e matamos animais para fins comerciais estamos criando insegurança alimentar. Estamos fazendo com que povos indígenas, pessoas pobres, e pessoas negras sejam desalojadas, para criar alimentos e grãos não saudáveis para animais de fazenda, tirando destes povos a soberania alimentar. Por exemplo, a grande maioria das pessoas que trabalham na indústria não tem acesso às coisas que eles produzem, mesmo que queiram. Além do mais, elas trabalham em situações análogas a escravidao, contraem doenças zoonóticas e respiratórias e não tem como prover pelo seu próprio  bem estar e tão pouco o bem estar daqueles animais que estão criando, matando e desmembrando. Temos muitos estudos que mostram também o peso psicológico e físico que estas pessoas enfrentam por serem forçadas a trabalhar neste ambiente. Muitas delas desenvolvem deficiências físicas e mentais e são levadas a mortes brutais, inclusive por suicídios. 

Pessoas que consomem animais, comodificam seu trabalho e seus produtos estão certas: o veganismo não é um mandamento Cristão. Mas criar uma indústria alimentícia onde se multiplica o pão, se dá o que comer para todos, principalmente os marginalizados independente de crença, raça, ou etnia sim é. Então se o que estamos consumindo está criando mais insegurança alimentar, destruindo ecossistemas e elementos naturais,  priorizando o dinheiro e o domínio acima de criaturas humanas e não humanas ao invés de seu bem estar, pecamos e estamos servindo a indústria e não a Deus. 

E o que é comodificar animais não humanos e seus produtos? Isso é mercantilizar, fazer de bens, propriedade, criar capital em cima de uma outra criatura sem o seu consentimento. É comprar e vender corpos e o que eles produzem como se nós fossemos seus donos ao invés de reconhecermos que tudo na terra e que nela há pertence a Deus (Salmos 24:1 e 1 Cor 10:26). 

Então cabe aos Cristaos se perguntarem não somente se devem ou não comer animais não humanos, mas também se estão usando este domínio para criar mais destruição e desigualdade em nome de Deus. Será que cabe ao Cristão resistir uma industria criada e dominada pelo colonialismo, imperialismo e supremacia branca? Será que cabe ao Cristao investir nela? Ou será que cabe ao Cristao retornar a uma agricultura familiar onde a segurança alimentar se encontra desde os mais poderosos aos marginalizados?

Vemos em Atos nos relatos da primeira comunidade Cristã, por exemplo, que todos contribuíram para que todas as necessidades da comunidade fossem supridas. De fato, a primeira comunhão, a primeira eucaristia, ocorreu como uma refeição para garantir que todos fossem alimentados. E aí então também vemos a primeira discórdia entre a comunidade, pois alguns que deram mais queriam comer mais e algumas pessoas não queriam esperar que todos chegassem até a mesa para comer. Digamos assim que foi o nosso primeiro jogo da discórdia [risos].

Bianca Rati

Esta questão do cristianismo colonizado me fez pensar um pouco na nossa santa hipocrisia cristã. Os cristãos, em especial os evangélicos, são os que mais perseguem religiões de matriz africana como Candomblé e Umbanda. Um dos muitos argumentos, se é que podemos chamar disso, que utilizam para dizer que essas religiões são más é o sacrifício animal. Mas, quando a gente para pensar, nós cristãos também fazemos nossos sacrifícios animais: o peru e o frango do Natal, o peixe na Páscoa, o boi no churras da igreja… E por essas e muitas outras que sabemos que essa perseguição às religiões de matriz africana tem nome: racismo religioso. Então pedi para Aline falar um pouco sobre isso.

Aline Silva

Acho que primeiramente o Cristianismo precisa se arrepender de ter participado e  abençoado o sequestro e escravizamento de pessoas africanas e indígenas. Segundo, precisamos fazer uma reparação histórica pois até hoje convivemos com as repercussões e demonização dos povos africanos e as formas que eles cultuam. Precisamos reconhecer a trilha de sangue que deixamos no caminho até chegar aqui. “Ai mas isso foi a igreja católica, eu sou protestante/crente/evangélico, isto não é a minha história! Isso não diz respeito a mim.”  Meu bem, a igreja protestante foi o órgão histórico que mais possuía bens em forma de pessoas escravizadas.

O protestantismo nasceu em 1500 na mesma época que colonizadores cristãos chegaram em terras Brasileiras. O Brasil foi um dos últimos países no mundo a abolir a escravidão em 1886.  Então toda propriedade, edifício e etc. levantada pela igreja depois de então foi feita por escravizados ou trabalhadores em situações análogas à escravidão.  Então existe sim uma herança de um estado escravocrata dentro das igrejas Brasileiras e precisamos lidar com isso.  

O Brasil mesmo sendo um país muito religioso é um estado laico. É direito humano as pessoas adorarem a Deus ou não da forma que elas quiserem com tanto que não cause mal ao próximo.  Hoje em dia ao invés de usarmos uma espada para obrigar pessoas a se converterem queremos usar armas de fogo e muitos outros métodos violentos de opressão e de conversão. Pecamos gravemente quando colocamos pressão sobre um grupo para adorar a Deus da forma que nós queremos e pecamos mais ainda ao oprimir aqueles que seguem o espírito e se expressam diferentemente de nós. 

É importante lembrar que os vários tipos de sacrifício que acontecem em terreiros servem também para alimentar a comunidade. E eu volto ao relato de Atos no qual a comunhão, a eucaristia, se focava em prover a necessidade do próximo. Se realmente seguirmos Jesus, amamos a Deus e amamos ao próximo como a nós mesmos, nós vamos incluir e acolher pessoas que cultuam religiões de matriz africana. E na nossa lembrança precisamos também aprender com eles e a conexão que estas religiões mantêm com o mundo natural, coisa que aparentemente nós cristãos temos esquecido e falhado gravemente.

Bianca Rati

Até aqui eu e você entendemos que a preocupação com os animais é, ou pelo menos deveria ser, uma preocupação das pessoas cristãs. Mas também sabemos que vivemos em uma sociedade com muitos problemas, muitos humanos sofrendo e morrendo em condições horríveis. O meu primeiro instinto, ao olhar para a questão animal é pensar: será que não existem questões mais urgentes para resolvermos? Será que, ao lutar pelos animais, não estamos deixando de concentrar forças nas questões humanas?

Aline Silva

O bem-estar dos animais, principalmente os gerados e criados para fins alimentícios, é uma questão humana. A grande maioria dos trabalhadores do campo e da fazenda são pessoas pretas e indígenas que vivem em comunidades rurais de baixa renda. Aproximadamente 75% destes são responsáveis ​​por alimentar as pessoas em todo o mundo. Eles trabalham em condições adversas e são incapazes de exigir segurança por causa de seu status vulnerável. Mais recentemente, vimos isso aqui nos EUA quando o Departamento de Imigração invadiu uma fábrica de frangos do Mississippi depois que trabalhadores migrantes registraram uma queixa de assédio sexual contra seu supervisor. Da mesma forma, em minha terra natal, no Brasil, os casos de COVID-19 podem ser atribuídos à indústria frigorífica, que é composta principalmente por pessoas negras e indígenas que também são desproporcionalmente afetadas por esse vírus e outras disparidades. Além disso, sabemos que, como maior produtor de gado das Américas e segundo maior produtor do mundo, o Brasil é responsável pelo desmatamento da Amazônia, pelo deslocamento de milhões de povos indígenas e pela ameaça de muitos animais silvestres e espécies protegidas.

O bem estar animal é uma questão humana também porque a indústria tem fácil acesso a hormônios e antibióticos por centavos, para mais de 70 bilhões de animais de fazenda anualmente, quando não podemos fornecer terapia hormonal para meus irmãos e irmãs trans, ou assistência médica universal para todos, muito menos para os mais vulneráveis ​​ou marginalizados, ou até mesmo uma patente de vacina para comunidades super exploradas que ficam propositalmente ainda mais vulneráveis ​​durante a pandemia. E pra finalizar esse ponto sobre a medicina, é também uma questão de justiça reprodutiva. Vivemos num mundo onde não há na maioria dos países no mundo uma justiça reprodutiva. Mas a indústria agropecuária tem fácil acesso a subsídios que apoiam a reprodução forçada de bilhões de animais gerados em fazendas. 

Como uma mulher de ascendência africana e indígena nascida no Brasil, defender o bem-estar dos animais de fazendas industrializadas significa cuidar das minhas irmãs aqui e em todo o mundo. As mulheres negras e indígenas são a base da igreja e da economia agrícola mundial super explorada. Mas nós recebemos apenas uma fração da terra, do treinamento e apoio econômico que os homens brancos heterossexuais cis recebem. As mulheres representam 43% do trabalho agrícola em todo o mundo (75% na África) mas somos responsáveis por produzir mais de 80% dos alimentos necessários para famílias e regiões com insegurança alimentar.   

Além disso, as fêmeas, como vacas,  são os animais que são continuamente estupradas por seu leite e, ao mesmo tempo, têm seus filhos sequestrados. Os animais fêmeas são continuamente medidos e tateados, tocados sem consentimento,  em busca de peitos maiores, coxas mais grossas e órgãos reprodutivos eficientes, enquanto os machos são descartados ou criados em total isolamento. Também é interessante notar que os padrões para carne que é considerada de boa qualidade – incluindo o tamanho do peito e nádegas – são estabelecidos por homens ricos, cis heterossexuais, brancos e pelas indústrias que eles financiam. Os mesmos olhos que decidem o que é um corpo feminino ideal, o que é um padrão feminino aceitável na nossa sociedade são responsáveis por decidir e financiar o que é de bom para o  corpo animal e quais partes são boas e quem são merecedores de consumi-las. Sem falar que pessoas que vivem a cerca de produções alimentares industrializadas sofrem com a poluição do seu solo, da sua água, e seu ar e vivem em um ambiente intencionalmente marginalizado.

Música: Os Bichos – Walter Franco

Os olhos do boi, da vaca,

Mansos, na amplidão

Do campo que se destaca

No amanhecer do sertão.

Os olhos do bezerrinho

Ao lado da mãe deitada,

Que o lambe com seu carinho

É uma cena sagrada.

Bianca Rati

Quando Aline diz que a questão animal é uma questão humana e apontou como a injustiça desta indústria e deste sistema se estende aos animais humanos, eu percebi que nunca tinha conhecido alguém que trabalha diretamente nessa indústria. Eu percebi que na verdade sabia pouco de como esse mundo funcionava. Quando a gente pega o peito de frango embalado no mercado, o leite na caixinha, o queijo no plástico… A gente nunca pensa sobre tudo que veio antes disso. Na verdade, isso é real para tantas indústrias… Mas não é preocupante que a gente não saiba como a nossa comida é feita? Então eu parti para uma pesquisa que se mostrou muito dura. Primeiro, através de amigos de amigos, consegui o contato de um moço que trabalhou na indústria da carne de frango, na parte mais administrativa e que topou conversar comigo sobre a sua experiência. 

Ex-Trabalhador da Indústria da Carne de Frango

Eu trabalhei na indústria de frigorífico, de ave. O processo mesmo é a desde a criação do ovo até de fato corte o congelamento da da carne. Nessa empresa eu participava do da equipe logística. Eu era estagiário, foi a oportunidade porque na região já não tinham muitas. Eu inicialmente não tinha interesse com o ramo alimentício, mas acabei tipo, optando por experimentar mesmo.

Então no meu caso, meu setor era muito tranquilo, a gente mal saía do escritório. As operações, não era em loco, no caso, não eram exatamente dentro do frigorífico. Então para mim, era uma coisa muito, muito tranquila, no sentido de que não precisava presenciar nada, mas minha experiência com a empresa foi um pouco delicada, porque eu sentia que faltava um pouco de gestão de pessoas, sabe? Nesse ramo. Talvez você vai confrontar com esses dados, provavelmente, sobre a rotatividade de pessoas dentro desse setor, porque a remuneração nem sempre faz sentido com o tamanho do trabalho. Mas assim, a minha questão não era sobre o meu setor e nem sobre o meu trabalho, porque a minha experiência lá, pelo contrário, foi muito boa. Enquanto profissional, enquanto estagiário pode aprender muitas coisas. A operação é muito grande, muito grande mesmo. O volume de produção é muito grande, é bem automatizado também. Mas o que me assustou um pouco foi como é o operacional mesmo dentro do frigorífico, sabe? É lá que me assustou. São rotinas de trabalho muito pesadas. Apesar da questão da segurança do trabalho e tudo mais- e eles atuam de fato- porque é importante, é um controle dos órgãos que inspecionam tudo isso. Mas mesmo assim, é muito duro. Primeiro a matança lá, crua. Segundo que normalmente essas empresas, elas se instalam em cidades que não têm muitas oportunidades. Então aquilo ali vira, basicamente, a oportunidade da cidade. Ou você trabalha lá ou você é comerciante. Então eu vejo que eles lidam com esse número de pessoas tranquilamente, porque se você sair, porque você me deu conta, porque você achou uó o trabalho, vai entrar 3, 4 precisando de trabalho. 

Eu brinquei que parece que se trata melhor o frango do que gente nessas indústrias. Porque de fato, assim, o cuidado com o frango é muito interessante. O estudo, a alimentação, toda a questão da ergonomia do frango, tudo é muito pró frango. Por que? Porque  quanto mais a conversão alimentar que o frango tiver, maior o lucro. Então, a galinha de ovos de ouro, de fato é o frango. Mas tudo em torno eu vejo que é um pouco descaso. A gente fala que a conversão alimentar é tudo o que você investe no frango e depois de tudo que ele te retorna em carne. Então, o maior desafio dessa indústria é, de fato, a conversão alimentar. 

As pessoas simplesmente não conhecem. Não fazem ideia de nada. Acho que seria interessante se as pessoas tivessem conhecimento básico. Qual é o processo mesmo para chegar ao seu filé de frango na mesa, sabe? E as pessoas tomando conhecimento disso, com certeza atentariam mais para todo o entorno. Por exemplo, o que eu imagino é, eu não sou vegetariano ou não, não sou vegano nem nada disso, eu consumo carne, mas seria um consumo mais consciente, eu vejo. A partir desse momento eu comecei a consumir o frango, por exemplo, com mais atenção. Sabendo do que estava acontecendo lá. Sabendo quem são as pessoas envolvidas, qual é, de fato, a empresa que cuida bem do frango. A questão aqui que eu quero levantar, não é acabar com os frigoríficos, nem nada disso, porque é um alimento, porque muita gente depende disso, muita gente consome, enfim. Muita gente não sabe diferenciar o que a galinha do frango. Não sabem se frango é fêmea ou macho, ou se tem os 2 sexos. Muita gente não sabe que tem raça de frango, igual tem raça de cachorro, e cada tipo de raça apresenta um tipo de comportamento, um tipo de preparação para poder ser abatido e tal. Então, talvez se trouxesse mais conhecimento nesse sentido as pessoas talvez controlariam melhor o que elas querem consumir. Isso apertaria, afunilaria a indústria frigorífica, a indústria da carne, no sentido de:  “Pô, o meu consumidor tem mais noção.” Não quero acabar com os consumidores. A questão, não é os consumidores, mas assim, se os consumidores tivessem mais noção, eles saberiam o que que eles pedir. E poderiam pedir com qualidade. 

Eu vejo que muitos dos trabalhos lá não são considerados insalubres nem nada disso, em questão de remuneração, mas que eu, no meu entendimento, seria  insalubre, sabe? Lá a gente trabalhava com câmaras frias, bem frias mesmo, tipo −40, − 20. E pessoas trabalhando o tempo todo nessas câmaras frias. Turnos. Óbvio que todas as indústrias têm turnos. Mas eu fico meio grilado com isso, porque, a pessoa mudar totalmente o horário dela, começar a trabalhar 3 horas da manhã, sair do meio dia, dormir de meio-dia às 9. O que aconteceu com o dia a dia dessa pessoa, sabe? Essa mudança completamente da rotina. É quando eu digo que lá o frango é bem melhor tratado não, eu não estou querendo aprofundar nesse tema, a questão que você falou lá, do justo e do que não é justo. Eles não têm nada a ver com a nossa fome, né? Mas pensando que essa indústria existe, ela vai continuar existindo e as pessoas vão continuar se consumindo é nesse ponto que eu gostaria que as pessoas pudessem ter um maior entendimento do tipo: “A eu consumo carne, mas eu consumo carne de uma forma que eu sei o que eu estou falando? E eu consumo, porque eu sei que eu gosto, eu sei que é o apoio”. Não do tipo: “Ah, eu não faço ideia do que está acontecendo. E eu consumo, porque consumo desde criança e a minha mãe consome, o meu pai consome, todo mundo bota na mesa e eu, como”.

Bianca Rati

Eu confesso que fiquei chocada ao ouvir a frase “lá o frango é melhor tratado do que gente” e apesar dele ter explicado para mim o que quis dizer com isso, eu precisava pesquisar mais e entender melhor como é essa realidade dos trabalhadores chão de fábrica da indústria da carne. Nesta pesquisa eu encontrei dois recursos importantes. Um é um curta documentário chamado Carne, Osso produzido em 2011, nele podemos ouvir vários trabalhadores descrevendo as suas realidades. Vou tocar um trechinho aqui para vocês. E se você estiver se perguntando se em mais de uma década as coisas mudaram bastante na indústria eu já aviso que infelizmente não. No dossiê Ossos do Ofício do jornal Metrópoles de 2017 vemos que a realidade dos trabalhadores segue muito difícil.

Trecho: Carne e Osso Trabalhadores de frigoríficos contam a dura realidade de sua rotina na indústria

Imagina ficar 8 horas numa mesa, direto mexendo, só fazendo aquele movimento ali, mexendo os braços, coisas assim… Ah todo dia eu pegava a faca e ia desossar, tirava a carne do osso, a mesma atividade o dia inteiro, de manhã até o final da tarde… Assim a gente tinha era umas mesas com um número, cada pessoa tinha o seu número… Cortar frango, tirar coxa, tira asa, tira peito, tira carcaça… Examinando carcaça tinha que fazer em torno de 3.700 por hora sozinha… Então tem que ser um corte preciso tem que tirar bem a carne do osso não pode ficar carne, tem tirar a cartilagem, não pode ficar cartilagem, tem que cuidar para não rasgar a pele… Aquela cobrança de produção, produção e produção. Faz a conta tem dia que eles fazem até 6 toneladas de peito recheada e coisa e eles cobrando… Se tu se desviasse, prestasse atenção numa outra coisa, tu não conseguir mais vencer o serviço depois era muito apurado, muito apurado, daí tu não conseguia vencer, tu tinha que prestar atenção aí abaixar a cabeça e dá conta do recado. […] A gente começou desossando 3 coxa e meia e nesses 11 anos que passou cada vez exigiam mais, quanto mais estudar a conta mas esses que tu desce produção, eu já diz desossava 7 coxas minuto. […] 12 cortes em 15 segundos mais 6 outros movimentos, então são 18 movimentos para desossar em 15 segundos uma perna de frango que é coxa e sobrecoxa. É extremamente comum encontrar trabalhadores no setor de frigoríficos exercendo de 80 a 120 movimentos em um único minuto. Estudos médicos dão conta de que até 35 movimentos por minuto estão dentro de um padrão de segurança para a saúde do trabalhador e portanto nós estamos falando de três vezes mais movimentos em um único minuto do que esse limite considerado seguro. […] É tudo fechado, você olha para o lado é tudo monte de gente trabalhando em roda, é barulho, e daí ainda uma época começaram a proibir a conversa, não podia nem conversar com o colega do lado porque diziam que atrapalhava, aí você ficava o dia inteiro lá.  Não para para olhar para o lado, não dá para ir no banheiro, foi mais de duas vezes no banheiro já vai escritório, passou dos 5 minutos vai pro escritório. Cinco minutos não dá nem para subir as escadarias para chegar ao vestiário das mulheres. […] Todo dia a enfermaria estava sempre cheia, cheia, cheia de gente. Num dia, sem faltar, 10 pessoas e tu sabia que realmente estava doente tu olhava para aquela pessoa ela tava até a roxa de tanta febre. […] Tendinites, epicondilites, problemas de ombro. Cotovelo, punho, pescoço… Muita exigência. Tem a questão também do levantamento e transporte de cargas nessas empresas, a própria posição  assumida nas linhas de produção, às vezes muito tempo em pé, muito tempo sentado nas chamadas temperaturas frias e também a gente encontra um grande quadro de sofrimento psíquico associado.

Trecho: Ossos do Ofício, narração Bianca Rati

“Para o procurador Heiler Ivens de Souza Natali, do MPT, a indústria não tem interesse em reverter esse quadro. “Há Varas do Trabalho neste país em que mais da metade dos processos existentes são de pessoas que vieram do setor frigorífico. Se, por um lado, há todo um discurso de melhoria das condições dos funcionários por parte das empresas, a realidade e os números não demonstram isso.” […] O desembargador Sebastião Geraldo de Oliveira, do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT-3), é enfático: “O que podemos perceber no Judiciário Trabalhista é que o volume de transtornos mentais e de doenças neurológicas tem aumentado bastante, especialmente por essa conduta febril pela produtividade acelerada, essa competitividade intensa”.”

Música:  Admirável gado novo – Zé Ramalho

O povo foge da ignorância

Apesar de viver tão perto dela

E sonham com melhores tempos idos

Contemplam esta vida numa cela

Esperam nova possibilidade

De verem esse mundo se acabar

A arca de Noé, o dirigível

Não voam, nem se pode flutuar

Não voam, nem se pode flutuar

Não voam, nem se pode flutuar

Eh, oô, vida de gado

Povo marcado eh

Povo feliz (eu quero ouvir vocês, vai)

Bianca Rati

Depois de compreender melhor porque eu, como cristã, deveria me importar com animais humanos e não-humanos afetados pela indústria da carne, leite, ovos… Eu resolvi conversar com a Patrícia Varela Favano, do Santuário Ahimsa. Para quem não sabe, um santuário de animais é geralmente um espaço de cuidado com animais resgatados de condições precárias.  O meu objetivo com essa conversa foi compreender melhor a realidade destes animais pela perspectiva de quem convive com eles diariamente.

Patrícia Varela Favano

Meu nome é Patrícia, eu costumo dizer que eu não sou a Patrícia, que eu estou, Patrícia, e que nessa minha busca eu tenho encontrado nessa temporalidade que a gente vive uma ponte para o que de fato é real. E eu noto que real é o amor, eu noto que real é a compaixão. Eu noto que real é o serviço. Então eu, enquanto Patrícia momentaneamente nessa Terra, espero através das minhas experiências diretas e através do que pode tomar conta de mim poder aumentar isso tudo. Amor, consciência, serviço, compaixão. Para que outros seres possam usufruir, não do que começa, vive e termina, mas do que independente da época que nós estamos, que isso tudo perpetue depois de nós. A minha busca neste tudo me levou para Yoga. Então, antes do santuário, eu sou professora de Yoga, que é um outro compromisso que eu tenho de compartilhar essa filosofia e essa sabedoria. 

O santuário nasce depois da mudança do meu marido e minha aqui para a zona rural, onde num primeiro momento ele, meu marido, estaria plantando orgânicos. A gente chegou a plantar o orgânico aqui na propriedade e colher quase 3 toneladas e eu continuaria a facilitar retiros de Yoga. No transcurso desse plano todo, surge algo que, para nós, foi uma determinação, um chamado espiritual, que foi, inclusive de realmente algo que se manifesta no coração como uma visão, de falar, esses seres precisam de cuidado e a gente não pode ignorar esse chamado. Então veio todo esse chamado, e em um primeiro momento, o santuário recolhe vítimas, vítimas que pela primeira vez a gente começa a ver e contar histórias. 

E aí houve um encontro bastante forte entre a Jetsunma Tenzin Palmo e eu estava num retiro com ela. Na época eu era colunista de uma revista vegana e quando eu entro em contato com ela para essa entrevista, eu tenho a graça de receber, no final desta entrevista, algumas orientações poderíssimas. E ela então disse para mim que embora o serviço seja algo necessário e bonito, ele ainda assim tem uma falência ou uma falácia: ele não cuida do agressor. E ali, naquele momento, eu senti essa compaixão radical. Essa compaixão, que é maior do que a dó de quem está na nossa frente sofrendo. Aquela conversa com ela muda a forma como o santuário opera e a gente começa a acolher o agressor. A gente começa a abrir diálogo com quem é onívoro. A gente começa a abrir diálogo com o fazendeiro. A gente começa a abrir diálogo com o pecuarista. A gente começa a criar uma ponte de troca para poder expor as razões que guiam o serviço do santuário, que não beneficiam só os mestres animais, mas beneficiam todos os seres. Se a gente começar a pensar do ponto de vista da saúde humana. Se a gente pensar na mãe natureza. É muito maior do que simplesmente cuidar do mestre animal. Então, nesse momento, o santuário passa de um serviço que era abrigar essas vítimas aqui dentro e começa a então estender a mão para as pessoas que são as agressoras. 

E lembrando sempre que às vezes a gente vê a maldade como algo que vive no ser humano por ela própria. Só que eu gostaria de colocar aqui, que na verdade também é fundamental nesses princípios orientais, o que vivem nós é ignorância. É completamente diferente se a gente parte para um diálogo com uma pessoa que ignora e quando a gente parte para o diálogo com uma pessoa que a gente considera que é má. E isso também fez com que a gente adotasse um outro lugar de fala, que é a não violenta. Onde nenhum ser se sinta julgado ou subjugado pelas nossas palavras e pelo nosso intento de mostrar algo que muitas vezes não está promovido em comerciais. Para que essas pessoas possam, ao menos ao menos, escutar a nossa mensagem. 

Com um pecuarista e com o fazendeiro, a gente começa não só ir até lá e, eventualmente cumprir todo o protocolo de maus tratos, inclusive com o poder público, mas a gente começa a conversar com essas pessoas, o que antes não acontecia. Uma conversa realmente franca. E essa conversa rendeu muitos resultados. Por exemplo, no ano passado a gente recebeu aqui um mestre macaquinho – e a gente chama eles de mestre por causa dessa capacidade que eles têm de ensinar para nós amor incondicional e perdão – e esse mestre macaquinho veio através de uma pessoa, um familiar de um fazendeiro, de um resgate que nós fizemos depois da Jetsunma, de uma conversa que foi tida onde ela falou que embora ela comesse carne, embora ela fosse parte da família do fazendeiro, ela entendia que a gente teria condição de cuidar. E ela veio então, com esse ser, aos nossos cuidados.  Então isso prova que a pessoa quando ela não está julgada, quando ela não se sente num lugar onde ela foi diminuída, onde ela está sendo outra vez posta como algo que desprezível, então a gente consegue outra vez conversar no amor. 

Essa é uma pontuação, além do resgate, é especialmente com quem é onívoro, porque quem come a carne, quem de alguma forma se alimenta das secreções: ovos, leite. Tá colaborando para que cada resgate aconteça. A gente fala a respeito disso como um jornalismo, ou seja, apontando os fatos como são, mas sem julgar o praticante do fato e, ao mesmo tempo, tentando condenar (condenar no sentido de que isso termine) condenar o demérito, mas nunca condenar quem pratica o demérito. Porque a gente não pode, ou seja, simplesmente exclui, a nossa sociedade é um exemplo que não deu certo de políticas excludentes. A gente não lida com o que a gente não quer. A gente não lida com Os Invisíveis. A gente não lida com o que ou com quem não tenha assunto direto com a gente, então é uma sociedade egóica, que exclui. Para que a gente mude isso. A gente precisa interiorizar como você, comentou, nós somos os agressores de tantas formas diferentes e quando a gente aponta culpados, eu noto que eu me retiro da responsabilidade. Porque a partir da hora que outro é responsável, ou seja, o culpado é ele, eu posso viver a minha vida, então tudo bem. Então eu gostaria que nessa fala a gente pudesse se responsabilizar e aí, nesse diálogo, qual a oportunidade que surgiu de receber pessoas aqui, por exemplo, voluntários. A gente deixou de falar para voluntários ser vegano. Não, você quer ajudar? Venha. Você está no resgate? Venha. Ou seja, conseguir colocar, inserir pessoas e através dessa inserção e dessa inclusão, diálogos que acontecem em vivências, diálogos que acontecem nos cursos de Yoga, diálogos que acontecem e que promovem também essa reflexão que a exclusão não vai levar a gente a transformação alguma. 

Bianca Rati

Essa perspectiva da Patrícia em relação ao diálogo é muito interessante. Quando ela falou sobre acolher o agressor eu até pedi para ela explicar melhor o que queria dizer com isso e, como vocês ouviram, ela explicou que se trata de não apenas condenar mas compreender as realidades e ter conversas francas. Abrir espaços para que as pessoas participem e se envolvam na causa animal mesmo que haja contradições. Até porque, quem de nós não carrega contradições? Todos nós carregamos. Nós, e falo especialmente nós pessoas brancas, cisgenero, hétero e vindas de uma religião dominante como cristianismo, nos beneficiamos de sistema que é agressor, muitas vezes nós mesmos agredimos. E temos feito isso ao longo da história. É assim que eu compreendo a fala de Patrícia sobre responsabilização. Ainda que a gente saiba que escolhas individuais não mudam um sistema, que precisamos de organização coletiva para também responsabilizarmos aqueles que têm poder de decisão sobre países e empresas. E esse aspecto da responsabilidade sistêmica, daquilo que foi normalizado numa indústria inclusive por meio de legislações,  se conecta com a próxima pergunta que eu fiz para a Patrícia, já que ela faz muitos resgates e tem oportunidade de observar como são os procedimentos da indústria da carne, leite, ovos e derivados, perguntei para ela como os animais são tratados em algumas dessas operações. 

Patrícia Varela Favano

A gente sempre falou da senciência desse mestre cachorrinho, desse mestre gatinho que vive com a gente dentro de casa. E aí a gente separou, separou as outras espécies. Esse é um conceito que a gente chama de especismo.

 Bianca Rati

Antes de deixar a Patrícia continuar, vou interromper de novo porque talvez você não saiba o que é senciência. A senciência, de forma simplificada, é a habilidade de sentir. Segundo o Doutor Gilson Volpato, é uma “habilidade de subjetivamente experimentar dor, frio, conforto, desconforto, e conscientemente diferenciar estados internos como bons ou ruins, agradáveis ou desagradáveis”. Hoje já existem diversos estudos que comprovam a senciência dos mais diversos animais. Com animais que convivem conosco em nossas casas, como cachorros e gatos, conseguimos perceber até pela convivência que a senciência é real e é isso que Patrícia está apontando.

Patrícia Varela Favano

Então a gente ama um e explora outro. Agora, qual é o fundamento disso? O fundamento disso é que a gente não está conectado, porque a partir da hora que a gente se conecta com um ser não importa que seja esse ser que fale outro idioma, de outra raça ou de outra espécie. Nessa história de senciência e de sofrimento, as pessoas algumas vezes na roça comentam que a gente não precisa se preocupar com os bovinos no frio, no inverno, porque eles não sentem frio e é todo um diálogo, mostrando por evidência, que eles são capazes de sentir frio. Então com isso coloco que existem, claro, as histórias que eu vou contar sobre os crimes que acontecem, porque é criminoso, são atos criminosos que acontecem por trás de porteiras fechadas, mas também o que foi normalizado. 

Então foi normalizado: “mas ele teve uma vida boa até morrer”. Esse talvez seja o primeiro ponto que eu quero colocar aqui. Não existe uma vida boa no sistema de exploração, não existe. Então, ainda que a gente tenha que olhar com esses olhos, se a gente passar isso para a nossa espécie, como por exemplo, quando um homem se aproxima de uma mulher, uma mulher de um homem ou uma relação entre 2 partes.  E uma das partes que ama diz: “Bom, eu te amo tanto, tanto, tanto que você não precisa de mais nada, nem ninguém. Eu vou te dar tudo e você vai viver trancado nessa casa ou trancada nessa casa, não vai te faltar nada nunca.  Só que você não vai poder sair para trabalhar, o teu dom e o que você quer no teu coração e a forma como você se expressa? Não. E essa roupa? Você também não pode usar. Esse cabelo, eu que vou falar agora, como que você usa seu cabelo.” Nunca vai faltar nada, mas a gente concorda que não existe felicidade? O que a gente está fazendo com eles, quando a gente fala dessa dignidade, dessa “morte humanizada”, quando a gente fala da normalização do sofrimento, é algo que vai em paralelo com essa situação. A gente não pode falar em felicidade, num sistema que normalizou a exploração. 

Dentro desse sistema todo, existem casos específicos que a gente precisa olhar com cuidado. Específicos como? De uma fazenda? Não, específicos de uma indústria. Um caso específico da indústria do leite é que, para aquele leite chegar até as pessoas que consomem aquele leite, ou aquele iogurte, ou aquele queijo, uma criança vai ter que deixar de tomar aquele leite. Outro caso específico dessa indústria é que aquele bebê, ou seja, um menino, ele não vai conseguir engravidar e ele não vai conseguir produzir leite, então ele vai ser reduzido a um mero descarte, algumas fazendas tem até ala de descarte, seja valas, onde muitas vezes eles são enterrados vivos. Ou então, se a fazenda for maior, esse ser pode ser transformado em carne de vitela. Se for uma produção de roça, ou seja, uma fazenda, que eles dizem caseira, que é muito comum no sul de Minas Gerais, por exemplo, e tanto vamos lugares no mundo. Esse ser pode ser vendido para até, no máximo terceiro ano, para também ser levado à morte. 

Enquanto que se a gente tiver falando de uma menina, essa menina vai ser de novo, explorada igual a mãe dela foi, igual a avó dela foi, igual a bisavó dela foi. Aí alguém pode contestar, nesse caso específico e falar: “Não mas, pelo menos, em algum momento ela viveu…” Primeiro, como que uma mãe vive sem ter contato com o filho? Qual é o trauma que essa mãe tem em tempos e tempos depois que os filhos são perdidos e ela continua viva engravidando? Não engravidando porque ela tem uma relação com aquele mestre touro, não por isso, mas porque ela foi inseminada, inseminada a força. E aí a gente tem várias questões emocionais e psicológicas que, infelizmente, esse ser que poderia viver 20 a 25 anos, termina vivendo 4 anos. E aí você me pergunta, Patrícia, mas aí então ela morre de desgosto? Não. Ela morre porque ela deixa de produzir. Ela é conduzida ao açougue. Esses são casos específicos que a gente precisa entender. 

Algumas pessoas perguntam: “Mas se acontece tudo isso, porque ninguém denuncia?”. Então vamos falar do açougue no mercado, como que a gente vai denunciar o açougue do mercado? A gente precisa denunciar para nós mesmos a nossa porção de agressor. É isso que a gente precisa fazer. Enquanto a gente não deixar emergir lá do fundo, da onde a gente normalizou, da onde a gente não quer olhar, enquanto a gente não deixar que isso realmente venha à tona e a gente transforme, através dessa denúncia interna, o agressor que nós somos até que a gente possa abdicar e essa ação, repetida vezes, com diferentes seres humanos, fechar o açougue… Não existe uma denúncia porque a matança foi normalizada. A indústria realmente opera dessa forma. E aí a gente tem dentro dessa operação leis que prevêem que, por exemplo, o mestre gato, mestre cachorro jamais vão passar por algo parecido e a gente tem normativas dentro da lei que fazem com que esses procedimentos sejam legais. 

Bianca Rati

Quando a Patrícia fala sobre essa dinâmica de nos escandalizarmos com maus tratos com cachorros e gatos e não com os maus tratos da indústria da carne, leite e ovos, duas coisas me vem à mente. A primeira é que consigo compreender porque nos sentimos assim, até pelo próprio sistema especista em que estamos inseridos, nos faz hierarquizar criaturas e valorizar elas de acordo com os nossos padrões. Aí, como os animais que vivem conosco consideramos fofinhos e os amamos, é realmente horrível encontrar com cenários de maus tratos para nós. E enxergamos porcos, vacas, galinhas, ovelhas e peixes de outras formas. 

Mas tem uma outra questão bem bizarra nisso, que também é produzida pelo próprio especismo. Porque nós valorizamos determinados animais, decidimos selecionar e reproduzir determinadas espécies de cachorros e gatos para ficarem mais de acordo com nossos gostos: mais bonitos, mais fofinhos, menores ou maiores, mais ou menos dóceis… E isso virou uma indústria. Ao longo de anos vimos muitas exposições de como é a realidade, principalmente de cães, em canis que reproduzem esses animais para a venda. Sabemos de espécies de cães e gatos com dificuldades e deficiências físicas geradas por essa seleção que prioriza características consideradas fofas pelos humanos como bulldogs e gatos persas. Os animais se reproduzem de maneira forçada, contra sua vontade, a amamentação por vezes é cortada, os filhos são separados das mães. As mães são descartadas quando não conseguem mais gerar filhos. Os filhotes com deficiências são descartados e abandonados, considerados inferiores e inúteis. Nós também vemos a quantidade de cuidadores irresponsáveis com os animais, a quantidade de pessoas que adotaram animais durante a pandemia e quando tiveram que retornar a vida social abandonaram esses animais. Sabemos que muitos gatos, especialmente gatos pretos, são mal vistos e considerados de azar. Que nas ongs de adoção os animais que não são adotados são aqueles os mais velhos, que têm deficiência ou não são “bonitos” de acordo com os padrões humanos. Então apesar de existir sim uma maior preocupação social, especialmente com cães e até legislações de proteção, nós também ignoramos e às vezes financiamos a indústria legalizada que os explora. 

Patrícia Varela Favano

Se nós morássemos perto de uma fazenda de leite, ou então de um abatedouro, ou então de… Pode colocar o nome que for onde tiver um mestre animal sendo explorado para ovo, pra lã, leite para carne… Os gritos levariam a maior parte de nós à loucura. E essas pessoas que têm um trabalho direto [nessa indústria], são pessoas que desenvolvem, inclusive, desequilíbrios psicológicos. A gente consegue entender porque tudo está longe da nossa consciência? Óbvio. A gente resgatou aqui uma mestra vaquinha que fugiu de um abatedouro. Ela estava grávida e veio para cá. O fazendeiro veio pegá-la, e ela veio de novo. E aí na terceira vez por uma casualidade, eu estava numa live no Instagram com o jornalista e falei para ele. Falei: “Ela não para, e a gente não tem o direito de mantê-la para dentro da porteira”. Ele então organizou um coletivo para que conseguíssemos comprar esse mestre animal, algo que não deve ser normalizado, a gente não pode comprar mestres animais. Aí aqui eu coloco, qual foi a intenção disso? A intenção foi dar a vida livre para ela e para o filho dela. Agora, se a gente está comprando, sem a consciência ou a intenção correta, a gente só está favorecendo o sistema. Essa mestra vaquinha veio para cá, ficou feliz, a gravidez dela. E essa parte final ela teve a bebê. 

Quando ela teve a bebê ela foi acometida pelo trauma e ela – no afã que levassem aquela criança embora – pisoteou a bebê dela. Quase levando essa bebê a óbito. A gente teve que socorrer, passou a noite inteira com a gente, precisou de oxigênio. Foi realmente uma tormenta. Nesse dia, quando a gente volta para ela com a bebê, eu sinto no olhar dela que ela me agradece e que ela, por fim, entende que nós nunca tiraríamos nem o leite dela e nem a bebê. Essa história de um trauma, eu posso contar a história de muitos outros traumas, porque a gente pensa que essa senciência que a gente falou lá atrás de frio e calor esteja muito limitada. A senciência deles é também social. Eles sentem a passagem, eles sentem saudade, eles sentem medo, eles precisam ser conquistados na confiança. Eles se curam emocionalmente, assim como nós nos curamos dada a oportunidade. Então existe outra vez esse caso específico dentro de uma situação, que é a operação comum e normal em todo o mundo sobre o que é a pecuária de leite. E existem esses casos específicos de como cada um deles reage. Quando a gente vê uma criança sendo agressiva, a gente não pode culpar essa criança. A gente precisa entender onde ela vive, porque ela é um produto do meio, onde ela está. O Mestre animal é igual, O Mestre animal, ele nunca ataca, ele só se defende. E se um mestre animal tem esse tipo de comportamento, isso precisa remeter a gente a que tipo de ser humano a gente se tornou? Porque quando os seres inocentes e puros temem a nossa presença, a gente precisa olhar para dentro de nós e invocar uma reforma para que a gente seja melhor do que a gente tem sido.

Bianca Rati

Durante toda a minha conversa com a Patrícia eu achei muito interessante a forma como ela chamava os animais de mestres. Repararam nisso? A primeiro momento soa até esquisito para nossos ouvidos, porque não estamos muito acostumadas a aprender com os animais, a enxergá-los também como mestres. Pedi para ela dar um exemplo dessa maestria para compartilhar com a gente. 

Patrícia Varela Favano

Eu não coloco de uma maneira que seja uma ironia, um sarcasmo, é algo real e verdadeiro. O que eles têm me ensinado e o que eles são capazes de ensinar para qualquer um que verdadeiramente observe os meios de vida deles. Por exemplo, as mestras búfalas. Elas têm um aspecto de sororidade incrível. Elas são matriarcais, então elas só deixam os bebês e os machos com elas até o ponto que eles já estejam crescidos para irem embora, enfim e juntarem o próprio rebanho deles nesse período que acontece isso, elas cuidam desses bebês e depois eles cuidam deles nesse outro lugar. Porém, se eles são atacados, não importa em qual dos rebanhos todos eles se juntam para defender e não importa que eles sejam atacados, por exemplo por 100 leões se eles são 50 mestres búfalos, nenhum deles corre, eles morrem de frente. Eles atacam no sentido de se defender e isso tudo tem uma dignidade que a gente precisa aprender e tem dignidade para a gente entender o papel de cada um. 

Bianca Rati

Essa história de maestria dos animais me lembrou vários versículos bíblicos onde os animais nos ensinam algo. A jumenta que ensina o profeta em Números 22. As aves que confiam no cuidado de Deus, em Mateus 6. A gazela que corre dos perigos, em Provérbios 2. A criação que exalta a glória de Deus, no Salmo 104. Os 4 seres pequenos de grande sabedoria: a formiga que se prepara e é diligente no trabalho, os coelhos que tem coragem para habitar locais difíceis, os gafanhotos anarquistas que mesmo sem rei são organizados e lagartixa que consegue habitar os palácios dos reis, em Provérbios 30. O leão, o galo e o bode que nos ensinam sobre poder, postura e liderança, também em Provérbios 30. E provavelmente, agora que eu chamei sua atenção para isso, a próxima vez que você for ler a bíblia vai reparar na quantidade de vezes que eles, Criação junto conosco, aparecem no texto sagrado. 

Música: A língua dos animais – Marisa Monte

Vou sair pra passear ao sol

Vou pisar no capim

E depois de me banhar

O sal leva o mar sobre mim

E no meu caminho

Encontrar um passarinho para conversar

Sobre uns assuntos sobrenaturais

Quando estou sozinho

E sigo meu instinto

E até consigo sem saber

Falar a língua dos animais

Bianca Rati

Depois de tudo isso, resta nos perguntar: o que podemos fazer pelos animais? E essa é uma pergunta mais complexa do que apenas “seja vegano”. É muito comum, especialmente entre veganos brancos e neoliberais, que essa resposta individual seja vendida a todes como uma solução sem nuances. Mas existem outras propostas. O trecho que você vai ouvir é de um vídeo do canal Chavoso da USP, quem apresenta o canal é o Thiago Torres e ele fala um pouco sobre a proposta do veganismo popular, que compreende que não tem libertação para animais humanos e não-humanos dentro do sistema capitalista. O vídeo é bem mais longo que o trecho que coloquei aqui e na descrição dele tem muitos recursos para quem quer aprender mais sobre essa perspectiva, o link vai estar no post deste programa no site do Projeto Redomas.

Trecho: LIBERTAÇÃO ANIMAL, VEGANISMO POPULAR E ECOSSOCIALISMO – Chavoso da USP – Thiago Torres

É um pouco complexo falar do veganismo, porque justamente por ser uma filosofia e um movimento político, ele tem um espaço de disputa muito amplo, muito aberto, tá ligado? Não existe só um tipo de veganismo. Os veganos mano, vão ver o mundo, a natureza, a sociedade de jeitos mais ou menos diferentes. E com isso vão adotar táticas e estratégias diferentes nas suas lutas. Todos movimentos políticos e sociais têm vertentes diferentes, tá ligado? O movimento feminist não é único, o movimento negro não é uma coisa só, nem o LGBT e nem o movimento vegano. E todos esses movimentos têm suas chamadas vertentes liberais. Essas vertentes geralmente são mais populares entre as pessoas mais ricas e classe média também. Geralmente essas vertentes liberais não conectam a sua luta com uma visão classista e racializada da sociedade, ou seja, são movimentos que só contemplam as pessoas ricas ou de classe média, e brancas. Inclusive, existe uma frase famosa do ecologista e militante Chico Mendes que diz: “Ecologia sem luta de classes é jardinagem”. Isso se aplica ao veganismo também. E eu falo isso muito por conta própria. Quando eu resolvi parar de me alimentar de animais, de comer animais, eu caí no colo desse veganismo liberal, justamente por ele não confrontar tanto assim o sistema, ele consegue muito mais espaço na televisão, nas mídias, entre as pessoas mais famosas. Então, geralmente é esse o veganismo que chega nas pessoas, vendendo, oferecendo seus produtos caríssimos, e provavelmente foi ele que fez você acreditar que veganismo é coisa de rico. 

Esse veganismo liberal, que como eu disse, é muito mais popular entre pessoas ricas, de classe média e brancas, costuma ver as pessoas, os indivíduos que comem carne como seus inimigos. Então é muito comum ver essas pessoas chamando as pessoas (ou seja, pessoas que comem carne, além de vegetais) de assassinas, de carniceiras e coisas do tipo. Ou falando que elas, individualmente, são responsáveis pelo desmatamento na Amazônia, pedindo a criminalização de religiões afro-brasileiras que usam animais, sugerindo que pessoas presas sejam usadas como cobaias em testes. Nada disso representa o veganismo popular, periférico, negro e anticapitalista. 

O nosso movimento, por conseguir compreender a luta de classes, a formação colonial e escravista do nosso país, a gente entende que quem realmente são os nossos inimigos são os Nós entendemos que são essas pessoas, ou melhor, essa classe, que é responsável pela exploração dos animais desse jeito industrial e pela devastação do meio ambiente. Não é a asa de frango que a dona Maria come, ou o pedaço de salsicha que morador de rua achou no lixo para comer que está devastando a Amazônia, mano. Quem desmata um terreno equivalente a mais de dois campos de futebol por minuto para fazer pasto para boi são os grandes pecuaristas milionários, que têm a propriedade privada dessas terras. Sim, eu estou ligado que já existia consumo de carne muito antes do capitalismo, mas foi esse sistema que transformou a produção de alimentos numa mega indústria super destrutiva. Não é o “ser humano” que está destruindo o planeta, são as indústrias capitalistas. O ser humano já existe no planeta há milhares de anos. Não é por acaso que essa devastação no meio ambiente começou a acelerar tanto justamente quando surgiu o capitalismo industrial. […] São por esses e outros motivos que o veganismo não pode existir enquanto movimento político sério se ele não for anticapitalista e, consequentemente, anti-racista.

Aline Silva

Pra mim o veganismo é uma questão teológica, um jejum em ato de resistência ao império que é agricultura industrial. É uma forma de advogar por outras criaturas, a terra que compartilhamos e cuidar da minha saúde, prolongar a minha vida e ir de frente contra esse projeto que existe a séculos para retirá-la de mim e dos meus. A boa notícia é que é muito fácil começar a ajudar animais criados para fins alimentícios. É uma coisa que está ao alcance de todos nós. 

  1. Podemos começar a pesquisar e aprender mais sobre a agropecuária e as desagradáveis ​​realidades do sistema industrial. Podemos pesquisar como a indústria vem afetando nossa comunidade local, a vida de nossos familiares, nossas igrejas e nosso país.  
  2. Podemos defender melhores leis e proteções para todas as criaturas feitas vulneráveis pela indústria. Podemos escolher e votar em  líderes, presidentes e senadores que priorizam a justiça, que mantém uma aliança e compromisso com a vida em abundância ao invés daqueles que mantém sua idolatria descarada a Mamon.  
  3. Também podemos pedir aos nossos líderes pastores e pastoras, líderes de estudo bíblico, células  e comunidades que considerem os animais para fins alimentícios em nossos cultos, orações, hinos, ministérios e pregações. 
  4. Podemos apoiar organizações de defesa e resgate de animais para fins alimentícios, como santuários.
  5.  Acima de tudo, podemos retirar nossa contribuição monetária do sistema de agricultura industrial. Podemos reinvestir nosso dinheiro na reforma agrária e agricultura familiar. Podemos diminuir nosso apoio financeiro ao escolher alimentos à base de plantas. Podemos nos comprometer a aprender novas receitas ao descolonizar nossos hábitos alimentares lembrando que desde sempre nossos ancestrais eram baseados em plantas. Podemos experimentar alternativas e estar abertos a viver de uma maneira diferente e mais amorosa. Todos os dias, com nossas palavras, nossas ações e nossos corpos, podemos resistir ao sistema e seu império, podemos estender a misericórdia e escolher a compaixão e defender os direitos dos desamparados.

Bianca Rati

Gostei muito de como a Aline compreende a sua opção por não comer produtos de origem animal, ou seja, o seu veganismo, como um tipo de jejum. Acho que eu nunca tinha pensado dessa forma. Se o objetivo do jejum é nos aproximar de Deus e de sua justiça, depois de aprender sobre a indústria agropecuária isso faz muito sentido. Então perguntei para a Patrícia e para a Bruna Oliveira, lembram dela? Lá do programa sobre Soberania Alimentar, se elas tinham dicas para quem quer embarcar nesse jejum.

Patrícia Varela Favano

Eu noto que comumente, quando a gente é apresentado por uma situação como essa, a gente começa a pensar tudo o que a gente não consegue fazer? Então, por exemplo, você colocou isso de uma outra forma no começo da nossa conversa, em um momento ou em determinado momento de partilha nosso, que falava: “achava que não conseguiria, porque eu gosto disso ou daquilo”. A gente sempre vai achar que a gente não consegue. Então aqui eu quero deixar um desafio para todo mundo que está ouvindo a gente, o que é que você consegue fazer? Porque talvez se você tiver vendo uma prática de yoga, você não vai conseguir fazer uma parada de mão, mas você consegue se comprometer a estar 2 vezes por semana ali na yoga? Porque através daquele passo, ou a partir daquele passo, você vai conseguir outras coisas. 

Então talvez o que você vai conseguir agora: checa que os produtos sejam livres de crueldade, por exemplo, cruelty-free, não testem mestres animais. “Agora que o meu problema específico é isso, mas eu não consigo por causa disso”, então tá bom, então vamos tentar reduzir? Porque reduzindo você vai conseguir argumento com você mesmo. Mas eu quero que outra vez a gente pense nisso. Como algo maior do que simplesmente do que esse enlatado de “seja vegano”. Então, o que que vai acontecer? Se um dia você falar: “Olha, quer saber? Eu acho muito triste, realmente que eu esteja contribuindo para esse bebezinho não tomar o leite e depois ele morrer. Eu ainda não consigo mudar tudo, mas hoje eu vou mudar. Hoje, segunda-feira, terça-feira, sábado…” Eu não sei que dia vai ser e aí eu te garanto que um dia você vai olhar para aquilo e vai falar, eu não quero mais. Aí você pode perguntar, mas quanto tempo vai durar isso? Eu não sei o tempo que vai durar para você, mas eu sei que se você mantiver no teu coração e na tua mente, que mesmo respeitando o teu tempo e os seus processos, tem seres com mais urgência dessa mudança do que a justificativas que a gente pode dar para nós mesmos. Porque a gente não muda, a gente vai se manter conectado ao propósito. Então começa por onde você consegue e conta com pessoas como eu, com instituições como santuário para apoiar em você no caminho e na tua jornada. 

Bruna Oliveira

Que eu posso dizer né, eu sou ambientalista desde muito cedo desde o ensino fundamental assim eu tinha minhas preocupações com o meio ambiente. E depois da faculdade eu ingressei no mundo da agroecologia, da agricultura urbana e foi fazendo algum sentido para mim reduzir as o consumo da carne e de animais – é difícil atualmente falar em alimento mas de animais de seus derivados que são utilizados na alimentação. Aí eu fui reduzindo isso de uma forma bastante gradual. Mas eu ainda, me dizia vegetariana mas eu ainda utilizava manteiga, às vezes tomava iogurte porque enfim era algo que eu fazia era comum assim antigamente e essas coisas foram tendo algum lugar na minha vida mas não prioritário. Até que eu conheci uma outra pessoa que também se tornou muito minha amiga e ela olhou para mim em algum momento falou: “Bruna tu já é vegana, só precisa de um ajuste fino.” 

E eu acho que esse é o primeiro passo quando a gente busca o caminho da natureza, de se aproximar da natureza, de se perceber participante dos processos de degradação e tu quer transformar isso no seu cotidiano isso já é um caminhar em direção ao veganismo. Só que as pessoas não falam sobre isso, às vezes fica muito centrada na alimentação, mas quando essa minha amiga me disse que eu já era vegana e eu fui as minhas práticas: de não usar guardanapo, de não usar canudo, de pensar nos meus produtos de limpeza, de ter a possibilidade de comprar produtos de limpeza biodegradáveis, não comprar roupa nova ou comprar roupa de brechó, de separar o lixo em casa.  E aí eu estou listando esse monte de coisa para as pessoas perceberem que, se você só se você faz parte de uma horta comunitária você está mais perto do veganismo do que você esperava; se você se comove com o abate animal e não só com abate animal mas com os testes que são feitos em animais; se você se preocupa e se mobiliza pelos animais que estão no zoológico deveriam estar lá, pelos animais que estão nesses grandes parques aquáticos que não deveriam estar lá. 

E se tornar uma pessoa vegana não é necessariamente nunca mais consumir um pedaço de queijo, nunca mais consumir um ovo, assim isso é uma mentira. Isso é mentira porque a gente está imerso numa sociedade carnista, a gente está imersa numa sociedade em que animais e seus derivados estão presentes em muitas preparações então esse processo de culpabilização por você ter comido um animal ou seu derivado no momento XYZ só faz com que você se afaste ainda mais do veganismo. Não se atente tanto à teoria, mas veja qual é a prática que faz sentido para o seu cotidiano. E eu vou dizer por muitas vezes depois de já me considerar uma pessoa vegana e também retirar esses alimentos da minha dieta, eu fui na casa da minha mãe ela fez um bolo para me receber e ela botou ovo no bolo. Eu não vou comer bolo? Eu não vou socializar com a minha mãe? Eu não vou transformar esse esse momento, no momento afetivo? Numa boa lembrança? Numa boa conversa? Por que eu não quero comer esse bolo que tem um animal dentro? As nossas relações são muito mais complexas do que isso desse preto no branco, eu acho agressivo e eu não sou essa pessoa que acusar outras pessoas por elas terem consumido ou não. 

Essa moralidade do vegano veganismo não cola comigo. Porque para mim é uma escolha política, é uma escolha política, a gente faz uma escolha política de não participar dos processos de exploração animal. Não vou participar do máximo possível dos processos de exploração animal. Tem pessoas que se preocupam se tem manteiga ou não em alguma preparação mas não se importa nem um pouco com as pessoas que estão passando fome e o veganismo, o anti especismo é não exploração animal e eu não sei se você sabe mas nós somos animais. Capitalismo é um processo que mata animais humanos e não humanos, explora animais humanos e não humanos então se você está mais preocupado com a vaca que vai morrer do que com o irmão preto que foi preso injustamente está encarcerado numa prisão você tem que repensar seu veganismo. Se você tem mais preocupação se o bolo da sua mãe vai ter ovo ou não do que a mulher que está sendo explorada no trabalho doméstico, você tem que rever seu veganismo. Se você se preocupa mais em criticar  pessoas que têm dificuldade de excluir o queijo da sua dieta, mas você não se preocupa com todas as pessoas que trabalham como catadores e catadoras de lixo num processo subalternizado e precarizado de trabalho. Se você está reclamando que não tem restaurante vegano no seu aplicativo mas não se importa com o entregador que vai entregar essa comida vegana na sua casa reveja seu veganismo.

Música de fundo: Trio for piano, cello and clarinet – (Kevin MacLeod – Incompetech)

Bianca Rati

Acabei lendo muito a bíblia durante a pesquisa e escrita do roteiro deste programa. Curioso, para quem começou achando que cristianismo não tinha nada ver com animais, nem tinha percebido que o Cristo que creio se chama de Cordeiro e de Leão. Essas duas imagens de Jesus são tão famosas, tão conhecidas. Elas viram música, camiseta e pros cristãos mais pra frentex, até tatuagem. Mas tem uma outra imagem de Deus, que Jesus também utiliza: a galinha. Deus como galinha que esconde seus pintinhos debaixo de suas asas, presente nos textos Salmos 91:4, Mateus 23:37 e Lucas 13:34. Deus galinha é também Deus feminino. Fiquei pensando na vaca e na galinha. Nosso instinto é achar quase ridículo associar Deus a galinha, mas Deus mesmo não pensa isso. Faz meses que essa imagem de Deus galinha não sai da minha cabeça. Ela me ajudou a compreender Deus que tem asas quentinhas e seguras e tem um olhar furioso de determinação quando vê o perigo em direção aos seus pintinhos. A imagem de Deus como uma mãe galinha mudou a maneira como vejo Deus, além de qualquer gênero e transcendendo a forma humana, mas ternamente feminina e maternal. Essa imagem é provocativa e até mesmo desconfortável. Ela nos apresenta a um Deus que prendemos em minúsculas gaiolas a serviço de nossos caprichos. Essa imagem nos faz perceber que somos imagem e semelhança de Deus que se projeta também como galinha. Esta imagem nos lembra daquela conexão perdida, de que somos todos criação, somos todos criaturas amadas. E para iniciar o processo de reconexão, talvez possamos começar nos perguntando: como trataríamos os animais, de fazenda e outros, se víssemos Deus neles e eles em Deus?

Bianca Rati

Este episódio é o terceiro e último de uma série de programas que lançamos aqui em abril no Projeto Redomas. Eles são parte do meu projeto final para o programa Fellowship da ong estadunidense CreatureKind, da qual tenho a honra de participar.

A missão da CreatureKing é encorajar os cristãos a reconhecerem as razões, baseadas em sua fé, para se preocuparem com o bem-estar de animais usados para alimentação e a tomarem ações práticas em resposta. 

Minha profunda gratidão a Aline Silva, Patrícia Varela Favano e Bruna de Oliveira pelas conversas, trocas e aprendizados. Agradeço imensamente também ao ex-trabalhador da indústria da carne de frango que topou conversar comigo e preferiu permanecer anônimo nesse programa. E também agradeço ao meu amigo Thiago Rodgers por ter interpretado o trecho do livro Francisco, de Guilherme Samora, sobre São Francisco de Assis, o santo da ecologia e dos animais.

Produzir esses programas foi uma jornada trabalhosa e incrível. Eu sei que eles estão longe de esgotar esses assuntos tão complexos e importantes. Mas eu também confio em nossa vontade e capacidade de seguir nos informando e lutando por um mundo que reflita a justiça divina. Na semana que vem não tem redomascast, mas tem o lançamento de um livreto de estudos bíblicos que eu produzi com os temas que conversamos aqui durante esse mês, soberania alimentar, justiça climática e ética animal. Além de um estudo bônus falando um pouco sobre esperança. Os estudos podem ser feitos individualmente ou em grupo e também contam com materiais complementares, o livreto será digital e gratuito para baixar.

Obrigada a quem me acompanhou nessa jornada por 3 temas tão importantes e até próximo redomascast!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.