Copos descartáveis, Priscila e um lugar que se repete

Saúdem Priscila e Áquila, meus colaboradores em Cristo Jesus (Romanos 16:3)

Este é um estudo bíblico sobre a liderança invisível de mulheres. A personagem escolhida é a Priscila, que aparece no Novo Testamento sempre acompanhada de seu marido Áquila. Ambos eram judia e judeu que decidem mudar de vida, e têm papel importante no suporte material e emocional de Paulo, o apóstolo. Ainda que se trate de Priscila e Áquila indissociadamente, nosso foco é em Prisca, cujo diminutivo é Priscila, e que pouco sabemos, mas que nos faz refletir muito sobre as relações de liderança e serviço em comunidades de fé, nas famílias e nas organizações em geral.

 

Questão 1. Os copos e a liderança invisível

  • Você já parou para pensar que existe uma pessoa específica que abastece os copos descartáveis? Quem é essa pessoa, é uma mulher? Pense nas duas experiências em comunidades na infância, adolescência e atualmente. Ser responsável pelo cuidado com os copos descartáveis é considerado um lugar essencial ou invisível? Mas se eles não estiverem lá, você já pensou em toda uma comunidade com sede?

As mulheres estão em toda parte. As habilidades e as orações delas são o centro pulsante de qualquer coletivo e ponto fundamental de seu funcionamento. Mas existe um único lugar proibido: o púlpito, a fala pública, o andar do verbo, a parte principal da liturgia, da reunião. Quando éramos crianças e adolescentes, os principais ensinamentos e as questões espirituais chegavam primeiro por mulheres. Eram as mulheres que estavam em casa – mãe, avó, tia – nas igrejas, as nossas professoras, as líderes de grupo de crianças e adolescentes e algumas mulheres mais próximas. As pastoras, com a visibilidade e força equiparável aos pastores, geralmente, só conhecemos durante a vida adulta, ainda que o exercício do pastorado esteja evidente o tempo todo.

A liderança feminina ainda é uma questão teológica que arrepia muitos cóccix e causa furor. Evidenciar mulheres líderes e suas práticas na igreja primitiva, olhando para seus contextos (principalmente por serem mulheres), buscando uma proximidade devocional que nos leve para mais perto de Deus e, em consequência, para mais perto de outras mulheres, é um grande desafio, porque há sempre a interdição da fala. A fala é um instrumento muito poderoso. A fala cria universos (Gênesis 1.3), inicia projetos (João 1.1) e os encerra (Lucas 23.46). As mulheres podem circular em qualquer lugar, mas não podem se fixar no lugar da anunciação.

Priscila é citada seis vezes na Bíblia. Ela era uma judia que morava em Roma e, após o decreto do imperador Cláudio, se mudou para Corinto, onde conheceu Paulo e dividiu com ele o cotidiano de trabalho, viagens e construção de uma comunidade de fé e igreja. Paulo conviveu com Priscila e seu marido por quase dois anos e o casal e o amigo tinham como principal fonte de renda a fabricação de tendas.

 

Questão 2. Em casa e no afeto

As igrejas da província da Ásia enviam-lhes saudações. Áqüila e Priscila os saúdam afetuosamente no Senhor, e também a igreja que se reúne na casa deles. (1 Coríntios 16:19)

  • Tecnicamente, muita gente relaciona liderança à autoridade. À um lugar superior e de comando. Você lembra de alguma conversa ou encontro reconfortante com uma mulher em que você pôde trocar ideias, tomar um café e se sentir ouvida?

O lugar da acolhida é uma liderança invisível e afetuosa. Imagine quantas vezes você teve que ouvir uma pessoa que queria confidenciar um segredo, pedir um conselho ou apenas desabafar. Você se dedicou a uma escuta ativa, doou seu tempo e praticou empatia durante horas. Existem mulheres que abrem suas casas e suas vidas umas às outras. Essa liderança é, muitas vezes, invisível. Há uma demanda por uma liderança representativa, por alguém que seja o rosto ou a voz de alguma organização ou coletivo. A pessoa que será convidada para palestrar, para dar a última palavra, para estar em ocasiões festivas. Essa pessoa não fabrica tendas, essa pessoa não troca os copos. Ela abre a casa, oferece um colchão para passar a noite, faz companhia durante uma videochamada, envia um alimento em dias cinzas.

De acordo com o que lemos na primeira carta de Paulo ao povo de Corinto, a hospitalidade e o afeto faziam parte do projeto de liderança de Priscila. Claro que era uma prática cotidiana, e não um projeto sistematizado como temos hoje. E, pensando nessa nossa contemporaneidade, que requer rostos a serem exibidos, era uma liderança invisível. Mas é preciso reconhecer que hoje, nesses dias em que estamos quebradas e quebrados, nos comunicando por telas, com a ausência do corpo e do coletivo, será que um discurso eloquente valeria mais do que casa aberta, ouvidos atentos, oração genuína? Quem é aquela que prepara a cama para você deitar? Quem é aquela que clama a Deus sem você pedir? Quem é aquela que te escuta e apoia com paciência e autoridade?

 

Questão 3. A líder que te convida para aprender em casa e voltar para a rua

Logo começou a falar corajosamente na sinagoga. Quando Priscila e Áqüila o ouviram, convidaram-no para ir à sua casa e lhe explicaram com mais exatidão o caminho de Deus (Atos 18:26)

  • Você já foi uma jovem considerada inteligente, mas desmedida com as palavras? Você já corrigiu pessoas ou recebeu correções em público? Como se sentiu? Quais as suas lembranças de momentos disciplinares aplicados por mulheres em igrejas ou comunidades de fé?

Priscila estava em Éfeso quando conheceu Apolo. Eles tinham em comum o fato de serem judeu e judia e duas pessoas cultas. Apolo compartilhava com o público as coisas que aprendera sobre Jesus e ensinava às pessoas sobre ‘O Caminho’, de forma considerada corajosa, mas equivocada. Apolo convidava as pessoas para debater dentro da sinagoga (Atos 18. 24-28), mas seu discurso incluía apenas o conhecimento sobre o batismo de João. Inclinada a colaborar, Priscila convida Apolo para ir à sua casa e reafirma que o espaço de compreensão, ensino, ajustes e até alguma repreensão é no privado.

Este é um princípio de liderança considerado fundamental. Quantas vezes presenciamos situações em que chefes considerados líderes fazem reprimendas ou alinhamentos duros na frente de um coletivo que seriam facilmente menos vexatórios se fossem feitos no privado. Lembra-se que para algumas pessoas a imagem e o lugar de autoridade é muito importante? Para algumas delas, um pouco de humilhação pública garante que essa autoridade seja reforçada. E mulheres sofrem em instituições machistas e que as desconsideram como indivíduos. É comum o mal estar, a dor de cabeça, a ida para chorar no banheiro. Na empresa ou na igreja, é triste que ainda aconteça.

Aprendemos com Priscila que, se a hospitalidade é um fundamento, ela pode ser utilizada também como ferramenta para o aprendizado, não apenas para o conforto. Se sentir à vontade e acolhida facilita o diálogo e faz com que ajustes, alinhamentos e até broncas, sejam recebidas e entendidas como parte do processo de crescimento. O resultado para Apolo foi positivo: recebeu encorajamento e continuou sua jornada como liderança. Imagino que o tempo passado na casa de Priscila o tenha mudado bastante, como é comum quando somos recebidas e cuidadas.

Acredito que a vida de Priscila desafia a invisibilidade a partir do estabelecimento de uma liderança que nos ensina sobre igualdade, empatia e acolhimento. Ao mesmo tempo em que é necessário que os lugares sejam deslocados. Precisamos de mais mulheres liderando mulheres, e mais mulheres liderando homens e mulheres, assim como Priscila. O resultado pode ser homens e mulheres falando e se ouvindo, abastecendo copos, limpando banheiros, financiando cursos para outros homens e mulheres, sendo reconhecidas e reconhecidos como parte de uma comunidade que inclui e visibiliza em todos os lugares e apesar de qualquer posição.


Paloma Nascimento dos Santos é professora de Química, mulher negra e feminista interseccional. Pernambu-cana-de-açúcar.

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