Jael e o martelo da trabalhadora

[1) Esse texto é um estudo bíblico indutivo que pode ser feito individualmente ou em grupo 2) Esse estudo bíblico trata de temas sensíveis como violência e guerra, caso esse tema seja um gatilho para você, aconselhamos que leia com cuidado ou pule para o próximo texto]

 

Game Of Thrones deve ser leitura leve para quem já leu a Bíblia algumas vezes. Existem tantos textos bíblicos violentos que podemos nos tornar anestesiados para histórias de guerra, agressão e morte. E tem também muita intriga política. O texto do estudo bíblico de hoje não é diferente, uma narrativa de guerra, política e morte.

Leia Juízes 4:1-24 (NVT)

Depois da morte de Eúde, os israelitas voltaram a fazer o que era mau aos olhos do Senhor. Por isso, o Senhor os entregou nas mãos de Jabim, rei cananeu de Hazor. O comandante de seu exército era Sísera, que habitava em Harosete-Hagoim. Sísera, que tinha novecentos carros de guerra com rodas de ferro, oprimiu cruelmente os israelitas durante vinte anos. Então o povo pediu socorro ao Senhor. Quem julgava Israel nessa época era Débora, uma profetisa, mulher de Lapidote. Ela costumava sentar-se debaixo da Palmeira de Débora, entre Ramá e Betel, na região montanhosa de Efraim, e os israelitas a procuravam para que ela julgasse suas questões. Certo dia, mandou chamar Baraque, filho de Abinoão, que morava em Quedes, no território de Naftali, e lhe disse: “O Senhor, o Deus de Israel, lhe dá a seguinte ordem: ‘Convoque dez mil guerreiros das tribos de Naftali e Zebulom para irem ao monte Tabor. Eu farei Sísera, comandante do exército de Jabim, ir com seus carros de guerra e guerreiros até o rio Quisom. Ali eu os entregarei em suas mãos’”. Baraque disse a Débora: “Só irei se você for comigo; senão, não irei”.
Débora respondeu: “Está bem, eu irei, mas você não receberá a honra nesta missão, pois o Senhor entregará Sísera nas mãos de uma mulher”. Então Débora foi com Baraque a Quedes. Ali, Baraque convocou as tribos de Zebulom e Naftali, e dez mil guerreiros subiram com ele. Débora também o acompanhou. Héber, queneu descendente de Hobabe, cunhado de Moisés, havia se separado dos outros membros de sua tribo e armado suas tendas junto ao carvalho de Zaanim, perto de Quedes. Quando disseram a Sísera que Baraque, filho de Abinoão, havia subido ao monte Tabor, ele mandou trazer seus novecentos carros de guerra com rodas de ferro e todos os seus guerreiros, e eles marcharam de Harosete-Hagoim até o rio Quisom. Então Débora disse a Baraque: “Prepare-se! Este é o dia em que o Senhor entregará Sísera em suas mãos, pois o Senhor marcha adiante de você”. Baraque desceu a encosta do monte Tabor à frente de seus dez mil guerreiros para combater. Quando Baraque atacou, o Senhor trouxe pânico sobre os carros de guerra e sobre os soldados de Sísera, que abandonou sua carruagem e fugiu a pé. Baraque perseguiu os carros de guerra e o exército inimigo até Harosete-Hagoim e matou todos os guerreiros de Sísera. Nenhum deles escapou. Enquanto isso, Sísera correu para a tenda de Jael, esposa de Héber, o queneu, pois havia paz entre a família de Héber e Jabim, rei de Hazor. Jael saiu ao encontro de Sísera e disse: “Venha para minha tenda, senhor. Entre; não tenha medo”. Ele entrou na tenda de Jael, e ela o cobriu com uma manta. “Por favor, dê-me um pouco de água”, disse ele. “Estou com sede.” Ela lhe deu leite de uma vasilha de couro e o cobriu novamente. Sísera disse a ela: “Fique à porta da tenda. Se alguém chegar e perguntar se há alguém aqui, diga que não”. Mas, quando Sísera, exausto, dormia um sono profundo, Jael, a esposa de Heber, se aproximou silenciosamente com um martelo e uma estaca de tenda na mão e atravessou o crânio dele com a estaca, que ficou presa ao chão. Foi assim que Sísera morreu. Quando Baraque passou por lá à procura de Sísera, Jael saiu ao seu encontro e disse: “Venha! Eu lhe mostrarei o homem que o senhor está procurando”. Ele a seguiu até a tenda, onde encontrou o cadáver de Sísera, com o crânio atravessado pela estaca. Naquele dia, o povo de Israel viu Deus derrotar Jabim, o rei cananeu. Dali em diante, os israelitas se fortaleceram cada vez mais contra o rei Jabim, até que o eliminaram por completo.

O livro de Juízes retrata um período bíblico antes de Israel ser uma monarquia. Os juízes não tinham uma função parecida com os que conhecemos hoje, na verdade, atuavam como líderes militares, guerreiros e libertadores. A narrativa de Juízes vai descrever as diversas batalhas e lutas que as tribos de Israel tiveram que enfrentar para consolidarem Canaã como seu território. No exílio babilônico, é provável que essas histórias tenham sido mantidas, contadas e celebradas para fortalecer a ideia de um passado glorioso e trazer esperança para Israel. Cada história em Juízes segue uma lógica parecida com a que lemos: Israel se volta para ídolos dos povos ao redor, perdendo a proteção de Deus e ainda, levando a ira dEle contra o povo. Assim, os israelitas são acometidos por saques, escravização e violência de outras nações. Um libertador se levantava (juiz) e, com a ajuda de Deus, ele liberta e lidera a nação. Mas quando este líder morre, o povo volta a adorar outros ídolos (ARDIÑACH, 2017).

  • Os personagens centrais deste texto são Débora, Baraque, Sísera e Jael. Débora era juíza e profetiza. Quais são os papéis sociais dos outros personagens citados?
  • Existe algo nas funções exercidas pelas mulheres e homens, no texto que estamos estudando, que é diferente de outros textos bíblicos?
  • Pense agora sobre qual o comportamento “ideal” de uma mulher bíblica, geralmente aquele ensinado para nós nas igrejas, Débora e Jael se encaixam nessa ideia?

“Por fim, vale notar que a atitude de Jael não é própria da mulher submissa ao homem. Indica muito mais a qualidade da mulher que luta, tem força e destreza para empunhar o “martelo de trabalhadores” e não titubeia em matar o soldado inimigo. Não se diferencia em nada dos guerreiros que descem ao campo de batalha.” (DREHER, 1984, p. 117)

  • Muitos dos textos e sermões que buscam interpretar essa história insistem em dizer que Jael não era uma mulher violenta, mas que foi muito corajosa e sábia. Que ela era corajosa e sábia é um fato, mas o interessante é que, diante de tantos homens que mataram muito e ainda são considerados grandes homens de Deus como Davi por exemplo, exista uma necessidade por parte desses estudos bíblicos de pontuar que Jael não era violenta. Por que você acha que isso acontece?
  • Ainda, o que você acha que levou Jael a tomar as atitudes que ela tomou?
  • Por que a estratégia de Jael funcionou? Quais os recursos que ela utilizou para ter sucesso em sua empreitada?
  • Você consegue se colocar no lugar de Jael, você faria o que ela fez? Em quais circunstâncias?

Esse texto de Juízes é muito importante em leituras feministas e queer da Bíblia, ele apresenta duas mulheres em posições de liderança, institucional no caso de Débora, e independente no caso de Jael (WERDERITS, 2013). Algumas leituras queer vão além em entender Jael não como mulher e sim como pessoa não-binária, já que seu nome tem uma construção masculina em hebraico mas é apresentada com características femininas (MUSA, 2020). De qualquer forma, Jael era alguém que estava à margem. Uma mulher vivendo e experienciando a guerra e a violência.

  • O que vem à mente quando você pensa em mulheres em situações de guerra? Quais guerras você se lembra? Você consegue descrever o papel das mulheres nesta guerra?

Depois de refletir, leia o relato de Dionisia Calderon:

“Dionisia Calderon vende frutas e batatas no seu vilarejo natal de Morochucos, Ayacucho, Peru. Essa mulher de 54 anos enfrentou diversas perdas durante o conflito interno que trouxe violência e sofrimento à região. O seu primeiro marido desapareceu sem deixar rastro. O segundo foi raptado e duramente torturado. Finalmente, morreu em decorrência dos ferimentos. Recusando-se a viver em silêncio sobre as injustiças que ela e a sua família sofreram, passou a ser representante das mulheres que sofriam abuso sexual durante o conflito. “Eu me perguntava: ‘Por que nasci mulher? Por que não nasci homem?’ Nós, mulheres, passamos por tantas coisas, com os soldados e o Sendero Luminoso. Foi difícil suportar tanta violência. Fomos marginalizadas, criticadas pelo que tivemos que passar. Eu me sentia horrível. Devo a minha vida às mulheres que me disseram ‘Você não é o que você pensa. Você não é o que as pessoas dizem que você é, porque elas não te conhecem. Você é uma mulher e uma batalhadora. E precisa continuar lutando. Precisa enfrentar essas coisas’. Fui uma vítima do conflito interno armado e agora me tornei uma mulher que luta pela justiça e pela verdade.” (As mulheres e a guerra – Comitê Internacional da Cruz Vermelha)

Quando falamos sobre violência, é sempre importante ter em mente que ela vem com um preço e aqueles que são submetidos a ela sabem bem quanto custa. Não podemos prever as nossas reações diante de situações extremas, não sabemos o que de fato faríamos até que determinada situação se apresente a nós. Mas ao mesmo tempo, há algo muito interessante e potente na violência de Jael. Vamos retomar uma parte importante do texto, no versículo 9, lemos que “Débora respondeu: “Está bem, eu irei, mas você não receberá a honra nesta missão, pois o Senhor entregará Sísera nas mãos de uma mulher”.”

  • Qual é sua impressão sobre este trecho? Na sua opinião, porque Débora faz essa profecia?
  • Discuta com o grupo ou reflita pessoalmente: porque conhecemos a história de tanta participação de homens nas guerras e lutas e não das mulheres? Existe algo de importante em conhecer essas histórias?

A guerra e a luta não estão restritas àquelas de países uns contra os outros, pelo contrário, existem vários tipos de guerras. No Brasil, vivemos diversas guerras todos os dias, que são protagonizadas pela luta de muitas mulheres. A guerra pelo direito à terra e moradia, pelo direito à alimentação e educação, pela vida de seus familiares negras, negros ou indígenas. O trecho bíblico a seguir é um salmo composto por Débora e Baraque após a vitória de Israel, ele pode ser lido na íntegra em Juízes 5.

Jael, esposa de Héber, o queneu, é a mais abençoada entre as mulheres. Que ela seja a mais abençoada das mulheres que vivem em tendas! Sísera lhe pediu água, e ela lhe deu leite. Numa vasilha digna dos nobres, trouxe-lhe coalhada. Com a mão esquerda, pegou uma estaca de tenda; com a direita, o martelo de trabalhador. Com eles atacou Sísera e esmagou sua cabeça; de um só golpe, rachou e atravessou seu crânio.
Juízes 5:24-26

  • A bíblia traz o “martelo de trabalhador” como a arma de Jael, a partir disto, que podemos concluir a respeito de Jael e sua representação para o povo de Israel?
  • Quem são as mulheres Jael de hoje? Você as conhece? Elas estão na sua igreja?

Se engana quem pensa que as mulheres de luta não estão nas igrejas, empunhando seus martelos. A doutrina machista que subjuga as mulheres é a mesma que é desafiada pela necessidade de luta para sobreviver. No artigo “Quando a fé encontra a luta: as vozes das mulheres evangélicas do MST – Parte 2” (Angelica Tostes e Delana Corazza) podemos observar isso acontecendo na prática:

“Nas diversas negociações que as mulheres fazem dentro das suas múltiplas identidades, a vida cotidiana e a luta vão moldando suas formas de estar no mundo, não sem contradições, como trouxemos; são elementos internos e externos que seguem em diálogo e em conflito. […] A Bíblia, o culto, a luta são partes dessas tantas formas, e a Igreja e o MST são fundamentais para suas escolhas e suas leituras de mundo.”

Costumamos associar a ideia de guerra com a masculinidade, mas a verdade é que as mulheres não somente foram e são afetadas por todas as guerras de maneira bastante nociva, como muitas diretamente participam e participaram de guerras na história mundial. Essa não é uma afirmação para glorificar a guerra ou dizer que há algo necessariamente empoderador nisso, essa é a afirmação de um fato. Fato que escancara que a mulher está e sempre esteve em luta, que a luta é a única opção de muitas mulheres. A resistência e resiliência que a luta exige, é vista em muitas mulheres que hoje, que seguram o martelo da trabalhadora com uma mão, a estaca com a outra, e esmagam o crânio do patriarcado e tantas outras opressões, todos os dias. Mas tomara que um dia, a gente possa parar de lutar.

 

“Fui punida… Por quê? Talvez por ter matado? Às vezes eu penso isso também… Na velhice, tenho muito tempo… Penso e penso… De manhã fico de joelhos, olho pela janela. Peço a Deus… Rezo por todos… Não guardo mágoas do meu marido, há muito tempo o perdoei. Dei à luz minha filha… Ele olhou para nós… Ficou um pouco e foi embora. Saiu dando bronca: ‘E uma mulher normal vai para a guerra, por acaso? Aprende a atirar? Por isso que você não é capaz de ter um filho normal’. […] Eu amava a pátria mais do que tudo no mundo. Amava… A quem eu posso contar agora? Para a minha filha… Só para ela… Eu me lembro da guerra, e ela pensa que eu estou contando contos de fada. Historinhas de criança. Contos terríveis para criança…”
A guerra não tem rosto de mulher, p.306 – Svetlana Aleksiévitch

 

No dia de hoje, ore pelas mulheres em situação de guerra no Brasil e no mundo. Ore também pelas mulheres refugiadas. Ore por paz, justiça e amor.


Referências

ARDIÑACH, Pablo R. “Introdução ao livro dos juízes.” Ribla 75.2: 11-22.

BACHMANN, Mercedes L. García. Mulheres no Livro dos Juízes.

DREHER, Carlos A. O cântico de Debora – Jz 5: conflito social e teologia num episodio
da história do Israel pré-estatal. 1984. 178p. Mestrado em TEOLOGIA, São Leopoldo.

MUSA, Aysha W. et al. Jael Is Non-binary; Jael Is Not a Woman. 2020.

WERDERITS, Debora Cabanas Kanhet. Débora e Jael: uma análise da liderança institucional e difusa na perícope de Juízes 4.4-24. 2013.

Quando a fé encontra a luta: as vozes das mulheres evangélicas do MST – Parte 2 – Angelica Tostes e Delana Corazza

As mulheres e a guerra – Comitê Internacional da Cruz Vermelha

Bíblia Online (NVT) – Juízes 4 e 5


Bianca Rati tem 24 anos, nascida no interior do Paraná e uma das fundadoras do Projeto Redomas, hoje atua na editoria de conteúdo, apresentação e produção do Redomascast. É formada em design gráfico e mestranda em design pela UFPR, com foco em gênero, filosofia e visualidade. Filha de um lar evangélico, aprendendo a reler a vida e a fé com seu próprio alfabeto de letras encontradas em meio a crises, devaneios, intuições, descobertas, lágrimas e, porque não, risadas.

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