Os homens não definem a nossa história | Ester

Ester não é um livro fácil de ler, embora seja praticamente uma novela, com um enredo envolvente de traição, intriga e estratégia. A moça judia, também chamada por Hadassa, é conhecida pela sua beleza intrínseca e graça irradiante, que favoreceram seu caminho até a realeza. Ela foi a peça central naquela fração da história que poderia ter culminado num holocausto precoce. Ela esteve encurralada desde o início de sua jornada, iria morrer de um jeito ou de outro, e em um desses momentos teve que tomar partido. Convocou um jejum do seu povo em seu favor antes de se expor ao Rei Assuero, e Deus usou o jeito dela para trazer libertação a um povo todo da maligna trama de Hamã. Ela tinha muitas qualidades e atributos: bonita, dócil, sábia, atenciosa, ousada, estrategista, compassiva, e temente a Deus.

Quando atentamos para Hadassa com outro olhar, podemos sentir pena, pois o seu cativeiro e preparação para substituir outra mulher (Vasti) chega a ser objeto de repulsa e causa indignação ao exercermos o mínimo de empatia. Foi, ao longo da sua jornada, aquela cujo pai morreu, a prima e afilhada de Mordecai, a queridinha de Hegai (o encarregado das moças do palácio), a mulher de Assuero, a adversária de Hamã. Não obstante esses homens bons, maus ou ‘neutros’ que influenciaram muito do seu caminho e aquilo porque Ester viria a ser reconhecida, o livro bíblico aqui estudado não tem o nome de nenhum deles: é o nome dela, a história dela, o protagonismo dela.

Isolando-a um pouco do contexto histórico, a pessoa de Ester dialoga com nossa realidade na medida em que sua atitude influenciou uma nação inteira, aproveitando a oportunidade que lhe era dada, muito apesar das adversidades da sua condição natural: mulher, judia, cativa. Portanto, ela nos inspira uma ousadia ímpar; contudo, não pode servir para nos limitar a uma conduta padrão.

Muitos homens querem que sejamos a Ester da vida deles – beleza, atitude cristã, obediência. Essas coisas por si só não são ruins, na verdade são boas. Mas não somos a judia Ester. Eles não são o Rei Assuero ou qualquer outro personagem masculino do seu roteiro. Temos nossos nomes, nossa pátria, nossa história e os homens que influenciam o nosso contexto social, espiritual e cronológico.

Olhar para Ester como uma personagem forte, com características próprias, que foi colocada onde esteve por uma série de “coincidências divinas”, nos faz voltar a atenção para o momento em que nos encontramos, o nosso hoje, o nosso agora. Quer na situação de filhas, solteiras ou casadas, trabalhadoras, mães, somos antes indivíduos do sexo feminino, ou seja, mulheres, e nossas condições não deveriam ser encaradas apenas como limitações ou um passo antes na caminhada do privilégio.

Ser filha pode ser difícil em um ambiente restritivo, recebemos mais ‘nãos’ do que os nossos irmãos, temos que cuidar para não manchar o nome da família, para sermos ladies. Essa ‘preparação’ dura uns bons 18 anos, e cada vez a nossa geração canguru sai mais tarde de casa. Antigamente éramos desposadas mais cedo, e assim passávamos da tutela parental para a marital.

Ser solteira seria a angústia de esperar ser desposada pelo príncipe, pelo único homem das nossas vidas que vai definir os rumos da nossa história, até então, pausada? Seremos finalmente a esposa ambicionada e invejada, desde que ‘esterilizadas’. E não há nada de errado em querer casar e ser uma boa esposa. Mas, por que fazer da vida de outra pessoa o único sentido da nossa? E o que faremos, por exemplo, com a nossa solteirice e limitação financeira, encerradas sob obrigações e desrespeitadas dentro de lares até Deus sabe quando?  Charo Washer nos dá uma dica: de nenhuma maneira é uma tragédia ser uma mulher cristã solteira, mas o caminho do mundo mais uma vez se infiltrou na Cristandade com a falsa ideia de que é. Umas das maiores mentiras é que se você não “tem alguém” ou não está “procurando alguém”, há algo de errado com você”.

O aqui e o agora são condição de que devemos nos aperceber e aprender com elas. Essa narrativa nos ensina que não somos a Rainha Ester por muitos motivos que vão nos apontar, porque não somos tão lindas, tão obedientes ou tão cristãs como queriam que fôssemos, e que nunca seremos, pois não passamos pelas mesmas experiências que moldaram o seu caráter e a sua personalidade. Nos assemelhamos, porém, quando somos colocadas em situações adversas e reconhecemos que temos uma esfera de autonomia sobre isso, por mais que não pareça.

Às vezes teremos de enfrentar o relacionamento abusivo e correr o risco de sairmos difamadas, largar uma faculdade em busca de um sonho próprio e não o da família, denunciar o chefe que comete assédios constantes, erguer a voz contra os professores e sermos, sim, perseguidas. Somos Ester em atitude, não em personalidade, cada vez que nos levantarmos contra a opressão que nos cerca.

E, muitas vezes, com clamor, oração, jejum, união, confissão e sim, coragem uterina, Deus nos livra e faz o jogo virar – e com isso influenciar toda uma geração e muitas pessoas ao nosso redor, pessoas que sequer conhecemos. É importante termos noção dessa coletividade que é muito além dos homens que nos cercam.

O Livro de Ester nos ensina que as adversidades moldam as situações, as pessoas influenciam, Deus está lá mesmo que não pareça, e que, ao final, a história é apenas sua. O livro foi, inclusive, escrito por alguém que não ela: a Rainha não contou a história, mas fez história. Ester nos ensina a sermos protagonistas da nossa própria história.


Cristina Alves, 25 anos, aluna de Ciências Jurídicas na UFRGS que ingressou no curso tardiamente para os padrões da turma. Aprecia cafés e se aborrece com calor (e muitas outras coisas).


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição institucional da ABUB, outra instituição ou de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

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