Transcrição: Redomascast 97 – O pão nosso

Música de fundo: Comfortable Mystery 4 (Kevin MacLeod – Incompetech)

[Trecho da notícia:  “19 milhões de brasileiros vivem com fome; consequências na saúde são irreversíveis” via CNN]

“Mais da metade da população brasileira vive com algum grau de insegurança alimentar. O dado é quase inacreditável. Mais da metade da população brasileira vive com algum grau de insegurança alimentar. E pelo menos 19 milhões de brasileiros passam fome. É o que revela um levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Vale sempre lembrar que nós [Brasil] somos um dos principais produtores de alimentos, de proteína animal no mundo e mesmo assim, 19 milhões de brasileiros simplesmente não têm o que comer. Metade de nós tem insegurança alimentar, ou seja, não sabe se vai conseguir e como vai fazer as três refeições mínimas que o indivíduo necessita: café da manhã, almoço e janta.”

Narração: Bianca Rati

Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome; venha o teu reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia dá-nos hoje; e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores; e não nos deixes cair em tentação; mas livra-nos do mal [pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém!

Música de fundo: Rising Tide (Kevin MacLeod – Incompetech)

Carolina Maria de Jesus interpretada por Bianca Ramires

Tem pessoas que, aos sábados, vão dançar. Eu não danço. Acho bobagem ficar rodando pra aqui, pra ali. Eu já rodo tanto para arranjar dinheiro para comer. […] 

É quatro horas. Eu já fiz o almoço – hoje foi almoço. Tinha arroz, feijão e repolho e linguiça. Quando eu faço quatro pratos penso que sou alguém. Quando vejo meus filhos comendo arroz e feijão, o alimento que não está ao alcance do favelado, fico sorrindo atoa. Como se eu estivesse assistindo um espetáculo deslumbrante. […]

Quando eu estou com pouco dinheiro procuro não pensar nos filhos que vão pedir pão, pão, café. Desvio meu pensamento para o céu. Penso: será que lá em cima tem habitantes? Será que eles são melhores que nós? Será que o predomínio de lá suplanta o nosso? Será que as nações de lá é variada igual aqui na terra? E se lá existe favela será que quando eu morrer eu vou morar na favela?

Eu sou Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra e moradora da favela de São Paulo, nos anos 50. No meu diário, depois publicado como o livro Quarto de Despejo, a fome é um dos assuntos que mais aparecem. Eu conseguia alimentar a mim e meus filhos hoje, mas não sabia se conseguiria no outro dia e passava a vida neste ciclo cruel. Será que a realidade da fome no Brasil mudou tanto assim? Quem está ouvindo as Carolinas de 2022?

[Efeito especial: sobreposição de áudios notícia + a primeira parte do Pai Nosso com eco]

Abertura do Redomascast

Bianca Rati

Sejam bem vindes a mais um redomascast! Eu sou Bianca Rati e no episódio você vai embarcar comigo em uma jornada sobre alimentação. Sua fome é de que? Qual a fome dos brasileiros? E nós cristãos, estamos com fome e sede de justiça? 

E para começar essa jornada, eu decidi partir da bíblia, porque eu reparei numa coisa…Vocês já notaram o quanto a bíblia fala sobre comida? Então, para entender melhor essas relações eu conversei com a teóloga Nancy Cardoso sobre comida, fome e bíblia.

Nancy Cardoso

Então, eu sou a Nancy, Nancy Cardoso. Eu tenho 61 anos, quase 62. Eu sou teóloga feminista. Trabalhei durante 20 anos com a comissão pastoral da Terra em diferentes lugares do Brasil. Fui pastora metodista. Atualmente eu trabalho na Igreja Metodista de Angola.

Eu tenho pesquisado muito sobre agricultura, a alimentação e a tragédia que é a fome. E como a bíblia é um livro sobre a vida e é um livro sobre a vida do povo pobre, a gente vai encontrar muito, vai ser muito presente no texto bíblico, tanto essa dimensão da relação entre humanidade e o mundo, e uma dessas formas de relação básica é a alimentação.

Comer é estabelecer uma relação com com o mundo, com a natureza, comer também uma relação social porque significa organizar o trabalho, organizar os saberes, o conhecimento sobre a Terra, sobre as sementes sobre a água. E a alimentação na bíblia é muito importante, porque tem as festas ligadas a agricultura, tem os rituais ligados à alimentação e tudo isso é muito presente no texto bíblico. O jeito mais fácil de entender isso é que dentro da minha tradição de fé que é o cristianismo, é uma refeição que é o sacramento né? 

É a água no batismo e a Santa Ceia, a eucaristia, uma refeição. Então são esses 2 elementos da relação necessária, vital, difícil e linda do corpo pessoal e do corpo social na relação com a natureza, com o corpo do mundo que vai marcar esses movimentos de espiritualidade do cristianismo, a água e a comida. Então a partir desses eixos a gente pode desenvolver muito no texto bíblico. Isso está muito presente nos textos do Gênesis: a água, a comida, a fome, a luta pela água. Isso é muito presente no Êxodo, fundamental na discussão do Êxodo, na história do povo pelo deserto. Isso vai atravessando o texto bíblico. Muito presente nos textos dos profetas. Na profecia isso é muito forte como denúncia das políticas da monarquia, das trocas comerciais dos impérios naquela época. E a profecia sempre se colocando do lado da fome, do povo e Deus sempre se revelando dessa resistência e nessa busca. 

E em Jesus nem nem se fala né? Em Jesus a comensalidade, a mesa é fundamental. Eu concordo com quem diz que a proposta do evangelho é a mesa da igualdade. É na mesa da igualdade que a gente vivencia o Reino de Deus, vivencia o evangelho de Jesus. E a fome é a negação dessa mesa de iguais, dessa mesa comum.

Narração: Bianca Rati

Crescendo na igreja eu sempre escutei muitas coisas sobre a fome, por exemplo: “Ah Jesus disse que no mundo tereis aflições” e também que “sempre teremos os pobres entre nós”. Ou que “no momento do apocalipse vai ter a fome e aí Jesus vai voltar”. Ou ainda “o alimento mais importante que a gente pode dar para alguém é o evangelho”… Aí eu perguntei para a Nancy o que ela pensa sobre esse modo de ler a bíblia e o mundo? Como a gente pode responder a esse tipo de afirmação?

Nancy Cardoso

Esses evangelhos essencialistas, ou da prosperidade, espiritualistas, eles tomam as necessidades concretas das pessoas, mas eles são fundamentalistas eles dão as respostas de maneira absoluta e usam o texto bíblico para dizer isso. Mas na verdade o texto bíblico tem que ser lido e atualizado no dia a dia da comunidade. O fundamentalismo é alguém dizer pra gente o que está escrito na bíblia. Mas a bíblia é a leitura de todos os crentes, nós temos que ter essa autonomia de ler o texto e atualizar o texto para os nossos tempos. Então essas teologias vão lidar com as necessidades reais das pessoas, mas elas vão dar respostas prontas fechadas que quase sempre vão culpabilizar as vítimas. Elas dizem: “Se você está pobre, se você tem necessidade, é porque você não deu pra Deus o dízimo ou você não fez a corrente de oração… Porque se você der, Deus vai responder.” Então cria um mecanismo perverso de culpabilizar as vítimas e não fazer as perguntas: por que a pobreza? Por que a desigualdade?

Eu acho que a fome é pecado. Porque é fruto de uma estrutura, um jeito de organizar a sociedade em que as maiorias não têm acesso à natureza, ao território, aos frutos do trabalho. Existe uma elite que controla e exclui as maiorias dessa relação. Então, por exemplo, hoje a nossa relação com os alimentos se dá no supermercado, se dá pelas pela indústria de alimentos e mediada pelo dinheiro. Nós perdemos o vínculo. A mesma coisa com a água. Todos os bens comuns estão hoje mediados pelo mercado e pelo dinheiro. Então é o mercado que organiza e as marcas e eu vou ter acesso ou não através do dinheiro, é o dinheiro que vai controlar isso. Mas a comida é um direito, sem alimento não tem vida, o alimento é fundamental. É colocar na boca o mundo, a natureza e é essa troca com o mundo que vai gerar a energia necessária para viver, para crescer, para ter para ter saúde. Quando a gente nega essa relação é o adoecimento e a pobreza. 

Então a fome é pecado, é ofensa diante de Deus. Porque é a nossa incapacidade de fraternidade e de partilha de solidariedade no mundo. Alguns acumulam enquanto outros são negado acesso a essas coisas. Então é uma reflexão teológica mas que é fruto da realidade das pessoas né?

Bianca Rati

Se é preciso atualizar a leitura bíblica de acordo com a vivência da comunidade, eu pedi para a Nancy alguns exemplos de como a gente pode fazer a leitura de textos bíblicos e quais lições ou ideias sobre a luta contra a fome que podemos extrair deles.

Nancy Cardoso

Os textos de Eliseu falam sobre uma comunidade reacendendo essa esperança. Reacendendo os modos de sobreviver com solidariedade. Então nos textos de Eliseu você tem seca, você tem fome, você tem gente sem casa, você tem criança doente, então é um lugar onde tem muita privação num tempo de guerra.

E aí o profeta Eliseu, ele vai passando pela vida das comunidades, que são consideradas comunidades dos profetas – com mulheres e crianças inclusive –  e essas comunidades estão sendo destruídas, esmagadas pela fome, pela seca, pela doença. E a profecia vai ser justamente fazer as pessoas lembrarem. Como o caso da viúva, que a mulher ficou viúva e o credor vem cobrar a dívida. Ela não tem com que pagar a dívida então ele vai levar os 2 filhos como escravos para pagar a dívida. Então esse é o desespero. É dívida, é as crianças ameaçadas, é uma mulher que não tem estrutura de apoio. Então o profeta pergunta para ela:  “O que que você tem em casa?” Ela diz: “Eu não tenho nada!” Aí ela fala: “Eu só tenho um pouquinho de azeite no fundo do jarro, da vasilha.” Aí ele fala: “Pede para suas crianças irem nas vizinhas e pedir vasilhas”. E aí as crianças vão, saem. E as crianças vão passando pela vizinhança e aí começa o baile das panelas das famílias porque da vizinhança vão surgindo jarras, panela, caldeirão… Vão surgindo e quando a mulher se dá conta ela tem azeite suficiente para vender, pagar a dívida e continuar vivendo. Ela estava sofrendo não só da crise econômica e da ameaça, ela estava sofrendo de falta de relação comunitária, de solidariedade com a vizinhança. Quando ela cria, recria essa conexão – e as crianças participam disso, isso é bem legal no texto. Então esses modos de proteção e de solidariedade reaparecem. É muito parecido com o evangelho de Jesus, em que as pessoas dizem: “Não termos nada, só os pães e os peixinhos… Não é o suficiente!”. E aí Jesus vai fazer as pessoas lembrarem, reacenderem, vai acender esse clarão, para que as pessoas se deem conta que a gente pode sim. A gente não pode se deixar esmagar pelo supermercado, mercado, o dinheiro, o agronegócio. Acendeu uma luz.

Na outra história de Eliseu eles estão passando fome, aí eles vão no mato pegar algumas ervas e raízes para comer, colocam na panela e fazem um ensopado. E aí na hora que vão comer alguém grita: “Morte na panela!” Porque além da fome, os moços que foram buscar as ervas e as raízes já não conheciam as plantas. Eles já não sabiam, eles perderam a relação com o território. E eles já não sabiam distinguir uma raiz boa de uma raiz má, de uma erva boa para uma erva má, uma que é comestível de outra que não é. Então de novo, não está só passando fome. Está passando fome mas também está sofrendo porque perdeu a conexão com a natureza, um saber da natureza que foi interrompido.  E aí então, o Eliseu vai dizer: “Bota farinha na panela.” E aí engrossa e aí dá para comer. Que nem a mãe da gente, as mulher na comunidade, quando o feijão azeda ou quando a receita não sai direito. O povo tem os conhecimentos, a sabedoria de como salvar aquilo, de como resolver. Então o texto bíblico pode ajudar a gente a se reencantar como comunidade e reencantar na nossa relação com a comida, com a água, com a saúde.

E aí a soberania alimentar então não é segurança alimentar. Segurança alimentar é dar comida para quem tem fome. A soberania alimentar é mais ampla, ela pensa essa dimensão a partir dos saberes sabidos das comunidades, pensa a integridade do território, pensa na segurança alimentar. A indústria de alimentos vai botar arroz e farinha de trigo em comunidades que não usam a farinha branca. “Há mas nós estamos dando comida.” Não vocês não estão dando comida, vocês estão matando uma cultura alimentar. Porque lá na Bahia eles não comem pão de manhã, eles comem o inhame, a mandioca, o inhame roxo que é uma maravilha que eu não conhecia…  Então assim, a soberania alimentar é segurança alimentar, mas é mais. Por isso que os movimentos camponeses insistem em soberania alimentar que é a água, semente, as sabedorias, as culturas alimentares. 

Eu convivendo na Comissão Pastoral da Terra, eu tive esse tempo de aprendizagem de conviver com comunidades camponesas em muitos lugares do Brasil, em São Paulo, no Rio Grande do Sul, no Rio de Janeiro, na Bahia, no Mato Grosso, em Rondônia… Então eu consegui perceber essa luta. Tem uma luta de resistência no Brasil de 500 anos, que é do povo se reconectar com o território, ter acesso ao território, à água, à terra, às plantas. Sem essa ligação, a vida vai para uma artificialidade do mercado e do dinheiro. Então hoje são os movimentos camponeses, da agricultura familiar, são as comunidades indígenas e quilombolas que ainda lutam por essa relação de autonomia com o território, que conseguem oferecer os elementos para pensar uma outra maneira da gente se relacionar, de organizar o trabalho. Temos que produzir alimentos para garantir as necessidades de todos, mas não podemos fazer isso destruindo a natureza, que é o que o agronegócio faz. Existem outras maneiras de se organizar, é possível produzir alimento de qualidade e garantir a alimentação e proteger a natureza, comer da terra sem destruir do planeta.

Música: Tempos Difíceis (Racionais MC’s)

Eu vou dizer porque o mundo é assim.

Poderia ser melhor mas ele é tão ruim.

Tempos difíceis, está difícil viver.

Procuramos um motivo vivo, mas ninguém sabe dizer.

Milhões de pessoas boas morrem de fome.

E o culpado, condenado disto é o próprio homem.

O domínio está em mão de poderosos, mentirosos.

Que não querem saber.

Porcos, nos querem todos mortos.

Pessoas trabalham o mês inteiro.

Se cansam, se esgotam, por pouco dinheiro.

Enquanto tantos outros nada trabalham.

Só atrapalham e ainda falam.

Que as coisas melhoraram.

Ao invés de fazerem algo necessário.

Ao contrário, iludem, enganam otários.

Prometem 100%, prometem mentindo, fingindo, traindo.

E na verdade, de nós estão rindo.

Tempos… Tempos difíceis! (4x)

Bianca Rati

Depois dessa conversa com a Nancy, eu precisava entender melhor como que a gente pode tentar resolver esta questão da fome no mundo e aprender mais sobre alimentação. Especialmente quando ela fala sobre “matar uma cultura alimentar” e sobre as diferenças entre soberania e segurança alimentar. Por isso, convidei a Bruna Oliveira, da Crioula Curadoria para uma conversa sobre isso. Eu comecei perguntando para a Bruna o que é essa tal de alimentação saudável. 

Bruna Oliveira

Eu sou Bruna de Oliveira. Eu sou muitas coisas e de forma muito resumida e rascunhada, posso dizer que sou formada em nutrição e estou mestrando em ciências sociais. Sou pesquisadora e ativista alimentar com foco na ecologia e na ancestralidade africana. Também sou vegana e sou ecossocialista. Vejo nas minhas práticas uma relação muito dialógica com aquilo que eu leio com aquilo, que eu consumo e com aquilo que eu manifesto no mundo: uma sociedade antirracista, antifacista, não ecocída. Lutando sempre contra os opressores tentando manter a saúde mental em dia buscando motivos de encantamento para as nossas vivências.

Uma alimentação saudável – eu vou utilizar o conceito de segurança alimentar e nutricional – que nos mostra ou nos indica caminhos do que seria a garantia do direito humano à alimentação adequada. E pensar na alimentação nessa chave dos direitos humanos nos convida então a refletir sobre o que é esse saudável. Esse adjetivo da alimentação é um termo que está muito em disputa desde a sua criação. A gente pode até considerar que tem estudos que trazem essa discussão de que é uma forma de biopoder, de exercer poder sobre os corpos a partir de um conjunto de normas que seria o padrão ouro ou alimentação saudável dentro do campo do comer e nutrir.

Então é difícil defender o conceito, a expressão de alimentação saudável, dentro dos moldes sistêmicos que nos regem hoje, desde a revolução industrial, desde a consolidação do capitalismo enquanto um político um sistema político-econômico. É muito difícil porque os sistemas alimentares atuais não necessariamente estão juntos nos processos e fenômenos que a gente entende necessários para garantia do direito humano à alimentação adequada. 

E esse conceito ele fala da necessidade do acesso a alimentos em quantidade e qualidade suficientes para o desenvolvimento das atividades de uma pessoa. Sem que esse acesso impeça essa pessoa de acessar outros direitos de trabalho, moradia, saúde, educação, lazer, deslocamento… Então a segurança alimentar e nutricional preconiza que as pessoas tenham acesso a alimentos que sejam saudáveis no sentido de não estarem contaminados, de serem nutritivos, que acolham as necessidades nutricionais e culturais das pessoas especialmente respeitando as bases culturais, respeitando as culturas, as sociabilidades e também respeitando o ambiente que cerca essa pessoa.

Então o conceito de segurança alimentar e nutricional é muito abrangente e ele é muito interdisciplinar. Que mostra as multifaces que a alimentação tem na nossa vida. Para a gente ter uma alimentação saudável, ou seja, para a gente poder garantir o direito humano à alimentação adequada na vida dos brasileiros, a gente precisa não somente dessa dimensão assistencialista e paternalista de doação, distribuição. Mas a gente precisa da construção de sistemas alimentares que respeitem o ambiente, que sejam socialmente justos e ambientalmente sustentáveis, respeitando as culturas locais, respeitando os alimentos locais, respeitando as memórias e as construções simbólicas das pessoas em relação ao que elas comem.

Bianca Rati

O assistencialismo, que a Bruna comentou agora pouco, é essa prática geralmente esporádica e momentânea de doações – de vários itens, desde roupas a alimentos –  a comunidades em situação de carência ou pobreza. Essa é uma prática muito comum nas nossas igrejas, mas será que isso é suficiente para resolver o problema da fome? É possível acabar com a fome no mundo?

Bruna Oliveira

Eu sempre detestei a interpretação de quando Jesus fala que os pobres sempre estarão conosco, essa abstração do pobre, essa reflexão sobre a pobreza, de que ela necessariamente está associada à miséria, de que ela necessariamente está associada à escassez. E a gente é muito levado a pensar nas pessoas pobres ou na pobreza de uma forma depreciativa. Mas a pobreza só existe porque existem os ricos. Os pobres só existem porque existem os ricos, existe uma riqueza que é absurdamente acumulada. Então essa disparidade, essa relação, essa equação nunca vai ser resolvida dentro do sistema político econômico porque a gente vive. A gente pode e deve pesquisar as notícias que nos mostram como bancos empresários pessoas já ricas, consolidadas nesse lugar de ser rico, de ter posses,  ganharam, lucraram em relação a esse período em que mais de 20 milhões de pessoas estão em situação de fome. E aí a gente também pode pensar que dessas mais de 20 milhões de pessoas, muitas dessas famílias são chefiadas por mulheres negras.

Então a gente não deixa de racializar esse debate da riqueza e da pobreza porque quem são os pobres e quem são os ricos? Quem são os pobres que estão na miséria e quem são os ricos que estão na abundância? Pensar isso, questionar isso, é extremamente importante porque não podemos de forma alguma reduzir a pessoa ao espaço-tempo em que ela vive, porque ela não é só isso. Ela é um sujeito com as suas subjetividades, com seus desejos, com seus sonhos, com a potência de materializar algo que se transforme numa vida digna e dignidade de vida não é sinônimo de riqueza acumulada.

Isso para mim é muito importante, fazer essa diferenciação, não é porque a gente sempre vai ter pessoas pobres nos espaços, nos territórios e ao longo da história que as pessoas não merecem dignidade em suas vidas. E isso hoje se faz por meio de políticas públicas. Quando a gente fala dessa questão da fome associada um contexto religioso, essas práticas [assistencialistas] sempre existiram porque a caridade, a generosidade estão postas na construção das práticas cristãs, das igrejas mais pobres e periféricas as mais ricas, existem pessoas preocupadas com a ação social, inclusive tem seus departamentos de ação social para realização dessas ações, dessas campanhas.

E eu acho a igreja de uma forma geral estacionou aí. Estacionou esse lugar de assistencialismo, de caridade esquecendo que existe uma função social da igreja, dos cristãos, que não é essa que a gente vê na bancada da bíblia e com os representantes evangélicos que apoiam o governo Bolsonaro. Então de forma alguma esses discursos e esses ecos deveriam fazer qualquer sentido para as pessoas que estão de fato preocupadas com essas pessoas pobres. O assistencialismo e a caridade, em certa medida, tenta ocupar o lugar do Estado mas não consegue, porque não é dever das próprias pessoas enquanto sociedade dar conta de problemas que são estruturais e que são dever do Estado. 

E aí eu falo de políticas públicas sem esquecer de uma frase que o Betinho falou. Betinho foi fundador do Movimento da Ação da Cidadania, muito importante na década de 90 na questão do combate à fome. Ecoando o que José de Castro dizia, a fome é uma doença social, para isso é preciso uma agenda política é preciso uma agenda pública para viabilizar ações e estratégias que cheguem nessas pessoas. Quando lembro do Betinho falando “que quem tem fome tem pressa”, eu aprecio e valorizo a ação das igrejas, mas acho também que essas ações acabam se tornando moedas de troca para que as pessoas de alguma forma acessem esses espaços religiosos, essas igrejas e se tornem membros. Porque afinal de contas, a gente tem que levar a palavra a todos os cantos do mundo. E é complicado, assim, quando a gente só faz uma salada de versículos bíblicos tentando criar um contexto desse livro que é tão importante pra racionalidade cristã e criar pretextos para as nossas ações a partir dessa salada de versículos.

Acredito que a fome é um problema estrutural que deve ser solucionado pelo Estado, no lugar de ações assistencialistas. Essa pessoa está passando fome porque ela não tem saneamento básico em casa, por vezes ela recebe uma cesta básica com arroz e feijão e ela não tem água. Ela não tem gás. Ninguém come arroz cru e feijão cru. Como eu vou botar feijão de molho se eu não tenho água para colocar esse feijão de molho? Como é que eu vou cozinhar esse arroz e não tenho água para cozinhar esse arroz? Se eu ganhar uma cesta básica mas eu não tenho 100 reais para comprar um gás que vai me durar um mês, um mês e meio? A depender do número de pessoas que estão na casa e a quantidade de vezes em que se cozinha. A marmita começa e acaba naquele lugar e ela tem efetividade no tempo em que a pessoa consome essa marmita.

Então é muito raso, é uma ação que é necessária porque as pessoas precisam comer. Mas ela é rasa e não se aprofunda dentro das demandas que a gente precisa. Imagina se a gente tivesse igrejas participando dos conselhos de segurança alimentar e nutricional? Imagina se ao invés de dizer que a gente sempre vai ter os pobres ao nosso redor, a gente falar que assim como Jesus multiplicou o pão e o peixe eu quero estar nesse processo de multiplicar o acesso à alimentação às pessoas que não têm? Ações sociais pontuais não vão resolver qualquer problema das desigualdades sociais no Brasil, mas sim uma ação engajada participação nos conselhos, reconhecendo as pessoas como sujeitos de direito e que precisam ser reconhecidas como tal para que construam juntos esses caminhos de emancipação de soberania. Isso acontece a partir da cidadania, isso acontece por meio da prática cidadã das pessoas.

Bianca Rati

Conversando com a Bruna, ficou evidente para mim que nós temos um sistema alimentar atual: o agronegócio. Mas eu também sei que ela estuda propostas alimentares ancestrais, que vem dos povos africanos e indígenas. Então eu pedi para explicar um pouquinho melhor como o agronegócio funciona e como essas sabedorias ancestrais oferecem alternativas a esse sistema?

Bruna Oliveira

Bom, o agronegócio é um dos, se não o principal, setor econômico do país ele que compõe boa parte do PIB. Mas isso não significa que ele seja benéfico para a sociedade como um todo. Não é sinônimo. Esse desenvolvimento trazido a partir do agronegócio é um sistema que se retroalimenta dentro dessa noção de acumulação. E ela é uma grande bolha que se importa muito mais com aquilo que pode ser exportado do que com o suprimento das necessidades internas do nosso país.

Um exemplo disso é o arroz, que existiam estratégias políticas de regulação dos preços desse grão, desse cereal, melhor dizendo, que eram os grandes silos públicos. A gente tinha uma agenda em que o governo comprava parte da produção do agronegócio, de agricultores médios, talvez pequenos também, para ter uma reserva. Para que essa reserva fosse uma salva guarda dos preços para que as pessoas continuassem tendo acesso. Mas esses silos, essa política de abastecimento, foi se desfazendo ao longo dos governos e aí a gente tem uma demanda de arroz que não é suprida, porque o arroz que é produzido é exportado  comercializado em outros países, que também tiveram perdas nos na sua produção que, enfim, precisam comprar e é muito mais vantajoso para esses empresários – eu não vou de forma alguma chamá-los de agricultores, porque eu acho isso o fim da picada – esses empresários, viram muito mais vantagens em exportar do que vender para o público interno, vender para para esse consumo interno no país. O arroz nos mostra isso que os valores, o que vale mesmo, é a apropriação disso tudo, acumulação, ser detentor de toda essa cadeia e poder fazer o que bem entende com aquilo que é produzido, porque não é uma questão é social ou política mas é uma mercadoria que eu sou dono, porque eu produzo eu vou fazer o que eu quiser com ela.

Bianca Rati

É a tal da commodity?

Bruna Oliveira

Exato, a tal da commodity. Commodity nada mais é do que alguma produção que ela tem um valor comercial na bolsa de valores e ela é especulada lá. E é exportada muito mais do que fica aqui no país. Isso é algo que é muito ruim, a gente ter essa presença tão intensa de um setor que não pensa na soberania alimentar do país. Não pensa, porque até a soja, que serve de ração para animais da pecuária que vão se tornar alimento para as pessoas, essa carne também não fica aqui, ela é exportada. O que fica é aquilo que foi rejeitado nos portos internacionais e que volta ser comercializado, ou se tem presença de algum microrganismo ou alguma coisa que algum país não aceita, eles deixam aqui também. Então o que o agro alimenta? O agro ele fornece uma parte dos nossos alimentos, numa qualidade muito inferior que não conseguiu ser comercializada fora e aí acaba se tornando, oferta, promoção ainda que essas ofertas e promoções nesse lugar que a gente está vivendo, nesse tempo que a gente está vivendo, não é promoção, não é oferta porque não está acessível para as pessoas, não está acessível para as classes mais populares periféricas. E isso também é perverso, também é perversa a lógica com que o agronegócio atua para fingir que alimenta o Brasil, enquanto está alimentando o mundo, mas está alimentando o mundo porque há uma troca comercial vantajosa.

O agronegócio não alimenta o país. O agronegócio grila, rouba terras indígenas, rouba terras quilombolas, desmata biomas importantes como o Cerrado e a Amazônia. O agronegócio tem como valores e princípios aqueles que também estão inseridos no capitalismo. E estou falando isso porque é realmente importante que a gente entenda os princípios e valores desse sistema político econômico que rege o mundo inteiro. Ele faz parte dessa perversão social que não atua de acordo com o desejo, a motivação, a agenda política de combater a fome e garantir o direito humano à alimentação adequada e de respeitar as culturas originais e ancestrais. A gente está falando aí de toda a contribuição indígena, de toda a contribuição africana, de todas essas ciências e tecnologias que estão presentes em muitas comunidades e muitos povos que ainda conseguem permanecer juntos.

E o que a gente precisa, não é resgatar a palavra, mas é reconhecer. E também não é dar voz, porque essas pessoas têm voz, e a gente pode ressignificar nossa escuta, ressignificar a nossa acolhida, a forma como a gente recebe essas mensagens, que estão à margem. Felizmente estão à margem desse sistema. Felizmente porque estar no centro desse sistema significa ser um empresário do agronegócio que contribui para a fome no país. 

Quando a gente pensa na nossa ancestralidade africana e indígena, a gente percebe um cuidado com a natureza e com a gente mesmo extremamente importante. Por isso que eu falo da necessidade das pessoas cristãs evangélicas, colocarem a sua fé dentro dos contextos de produção de vida, dentro das ações de políticas públicas em direitos em favor dos direitos humanos. E que essa integração possa acontecer e emergir de uma forma potente e genuína. Por que que eu falo isso? Porque quando a gente estuda ou quando a gente se aproxima de povos da das religiões de matriz africana, das cosmovisões indígenas, a fé ela está muito relacionada com essa conexão com o território, com o meu corpo, com os ancestrais, essa conexão entre mente coração, a emoção fazendo parte das escolhas das práticas de construção de sociedade. Não é só a razão mental que precisa, que deve reger as nossas ações, mas a nossa intuição, as nossas emoções, o nosso coração conectado, sintonizado num território. E aí essa relação toda ela também vai de alguma forma num respeito com aquilo que é produzido, aquilo que é colhido, distribuído, é escolhido, cozido, comido.

Esse é o processo da alimentação para mim. A alimentação é um padrão universal, é um padrão ecológico e universal, é um padrão da natureza, todo mundo se alimenta: a Terra se alimenta, as plantas se alimentam, a Terra se alimenta do Sol as plantas também, os animais se alimentam das plantas. Os fungos que se alimentam da matéria que ainda existe frente a vida que se foi. E essa ciclagem de nutrientes e de energia, isso é alimentação, isso é o que acontece no nosso metabolismo. Tudo isso naturalmente é humano, mas também ecológico, então desde da menor bactéria, do menor fungo da menor alga, até os ciclos hídricos, até os grandes biomas, ecossistemas e tudo o que está relacionado à manutenção da vida na Terra isso são processos de alimentação. 

E essas coisas a gente não aprende na escola, a gente não aprende na mídia, a gente não aprende em lugar nenhum. E os povos de comunidades tradicionais eles estão aí nos ensinando essas relações, estão aí nos ensinando a forma como a gente deve se relacionar com a comida, a forma como a gente deve se relacionar com os nossos em relação ao comer. E eu sinto que a gente só perde de não reconhecer, não reconhecer esses saberes, porque eles estão vivos dentro das dos salões, dos espaços dos terreiros das religiões de matriz africana. Eles estão juntos nas comunidades e povos indígenas com todos os seus rituais. E essas coisas estão acontecendo ainda hoje. É o que nos cabe enquanto pessoas ocidentalizadas, embranquecidas, regidas por valores colonialistas, por valores machistas, por valores racistas, por valores que fazem parte da supremacia branca. É muito difícil que essas coisas se quebrem, mas de alguma forma, talvez seja por um podcast, seja por um filme, um documentário, um livro que você leu… Alguma coisa que chegue em você, que encontre você e faça sentido no seu coração. Porque tudo isso que está acontecendo a nível ambiental, político e econômico em relação a esse centro do capitalismo, essa centralidade do capitalismo que visa acumulação de riqueza, em detrimento da distribuição – que vai permitir a vida de muito mais pessoas.

Tem feito muito sentido para mim, conhecer e pesquisar a alimentação a partir de uma afro perspectiva porque eu não só entendo esse processo como algo externo, mas isso entra em mim e ressignifica muitas coisas dentro de mim, é como se eu tivesse me reencontrando. Reencontrando a partir desse lugar de respeito e honra da ancestralidade. E o Ronilson Oliveira fala que a bíblia é o livro negro lido e interpretado por pessoas brancas, lido interpretado pelo colonialismo branco. E com alimentação não é diferente. A alimentação moderna, alimentação que existe no Brasil, em outros tantos países, é um fenômeno que tem sido lido e interpretado por pessoas brancas que não nos aproximam dessas outras perspectivas e panoramas que podem de alguma forma criar novas dinâmicas, novas relações, novos sistemas de comer e nutrir de uma forma mais participativa, mais cooperativa e reconhecendo a diversidade sem esse lugar da destruição, da degradação e da acumulação para poucos.

Música de transição: Rising Tide (Kevin MacLeod – Incompetech)

Carolina Maria de Jesus interpretada por Bianca Ramires

Os preços aumentam igual as ondas do mar. Cada qual mais forte. Quem luta com as ondas.   Só os tubarões. Mas o tubarão mais feroz é o racional. É o terrestre. É o atacadista. […] Passei no açougue para comprar meio quilo de carne para bife. Os preços era 24 e 28. Fiquei nervosa com a diferença dos preços. O açougueiro explicou-me que o filé é mais caro. Pensei na desventura da vaca, a escrava do homem. Que passa a existência no mato, se alimenta com vegetais, gosta de sal mas o homem não dá porque custa caro. Depois de morta é dividida. Tabelada e selecionada. E morre quando o homem quer. E morta enriquece o homem. Enfim, o mundo é como o branco quer. Eu não sou branca, não tenho nada a ver com estas desorganizações.

Música: Tem gente com fome (Ney Matogrosso)

Vem sujo da Leopoldina

Correndo, correndo, parece dizer

Tem gente com fome, tem gente com fome

Tem gente com fome, tem gente com fome

Tem gente com fome, tem gente com fome

Tem gente com fome

Bianca Rati

E eu sei o que você deve estar pensando, que essas propostas sobre alimentação parecem muito utópicas. Eu estava pensando nisso também. Mas se tem 2 coisas que ficaram evidentes nas minhas conversas com Bruna e Nancy é que a fome é um pecado que necessita de reparação urgente, mas também que existem povos, comunidades, pessoas que estão vivendo e lutando por uma outra forma de pensar a vida e comida. Lembra que elas mencionam os povos indígenas, quilombolas, camponeses…? Pois bem, eu resolvi terminar esse programa conversando com a Ceres, ela é Diretora Nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) aqui no Paraná e mora no norte do estado. Eu precisava conhecer melhor o MST e entender o que eles fazem de diferente por lá, que pode ajudar a gente a enfrentar a fome e a desigualdade.

Ceres Hadich

Olá, eu sou Ceres, sou assentada na região norte do Paraná, no assentamento Maria Lara, em Centenário do Sul o município. E ali, junto com a minha família, meu companheiro, meus filhos, a gente produz comida. Comida orgânica, agroecológica, sem veneno e certificada pela rede ecovida de agroecologia. A produção destinada tanto para o nosso auto sustento, quanto para alguns programas institucionais, atualmente bem poucos, e também para venda direta por meio do mercado convencional, feira, armazém do campo e tudo mais. Eu estou na direção nacional do MST. Estou há quase 20 anos no movimento. Na verdade nasci e fui criada também em cidade, mas sempre com um vínculo parental forte com o interior, e na transição do ensino médio para universidade, por questões financeiras, acabei optando por fazer agronomia em função de que esse era um curso que me interessava por ter relação com a natureza, relação com as pessoas, mas também era possível de ser ingressado na Universidade Federal do Paraná que era onde minha família efetivamente tinha condição de continuar me mantendo por questões financeiras. Então foi uma aliança entre interesses relacionados às questões gerais do curso, mas também uma questão financeira.

E logo no início do curso já tive contato com o MST, nunca tinha visto, participado de nenhuma atividade, tinha uma militância bastante incipiente ainda no movimento estudantil secundarista, partidário também. Mas efetivamente fui conhecer o MST já na universidade, quando já estava com 18 anos. Então começamos a estabelecer relação por meio do movimento estudantil universitário, a federação do estudante agronomia do Brasil a FEAB, e aqui no Paraná, a partir da construção da Via Campesina no estado e das Jornadas Agroecologia. Fui realizando o estágio, projetos de extensão em acampamentos do movimento, estágios de vivência também. Então foi ao longo desse período da faculdade que eu fui descobrindo melhor e conhecendo melhor o movimento, não só aí na região de Curitiba mas também no interior do estado e em outros estados do Brasil. Com a finalização do período da faculdade, foi quando eu já tinha um vínculo muito forte com o movimento e definimos então coletivamente de eu seguir a militância no MST. Vim para inicialmente para um acampamento no litoral do Paraná, acampamento José lutzenberger fica em Antonina, onde já tinha um vínculo antigo ali de relação, de trabalho com a comunidade e permaneci ali por um período. Depois fui deslocada para outro acampamento na Lapa, lá permaneci por cerca de 3 anos na escola latino-americana de agroecologia, após passar por um período curto no Assentamento Contestado na assistência técnica mas daí da escola latino-americana de agroecologia foi quando eu vim ser assentada aqui no norte do estado junto com meu companheiro que já morava aqui no norte também e então a gente está em Centenário do Sul no nosso nosso Acampamento Maria Lara.

Bianca Rati

Uma das pautas principais do MST é a reforma agrária, que de uma forma simplificada é uma proposta de redistribuição de terras, de forma justa. Ou seja, impedindo que quantidades de terras enormes fiquem concentradas nas mãos de poucas pessoas, o que hoje já gera não somente grandes desigualdades econômicas, mas também aumenta o número de terras improdutivas. Essa questão tem muito a ver com a forma que o agronegócio funciona, seu viés acumulativo e visando o lucro e também as monoculturas, que é o cultivo de apenas um tipo de planta ao mesmo tempo em uma terra, por exemplo, aquelas plantações gigantes de soja que a gente vê por aí. Então eu pedi para a Ceres falar um pouco tanto sobre esta questão da reforma agrária pela perspectiva do MST e também sobre como o movimento oferece uma contrapartida ao modelo do agronegócio.

Ceres Hadich

A luta pela reforma agrária é uma luta essencialmente democrática, é uma luta de direito de todos, é uma luta de toda a sociedade. Lutar pela reforma agrária é uma das bandeiras de nosso movimento. Nosso movimento na verdade tem 3 objetivos que se vinculam diretamente: a luta pela Terra, a luta pela reforma agrária e a luta pela transformação da sociedade. 

A reforma agrária no sentido clássico da palavra – inclusive quando surge como objetivo do movimento lá no início dos anos 80 pelo nosso surgimento em 1984, durante o primeiro Congresso em 1985, quando vão se definindo essas questões – fica claro para nós que a luta pela reforma agrária, era uma luta pela reforma agrária clássica, vamos dizer assim, no padrão daquilo que é uma reforma agrária que possível de ser realizada inclusive dentro do sistema capitalista. Uma reforma agrária distributiva de Terra democrática que permita acesso que permita os direitos básicos da vida no campo. Porém, com o avanço do agronegócio com uma expansão do capitalismo no campo e com o aumento dessas contradições – que é a lógica do capitalismo no campo: só gera cada vez mais desemprego, mais êxodo rural, mais miséria, mais desigualdade e injustiça social – a gente foi entendendo que a luta pela reforma agrária, especialmente a partir do final dos anos 90 anos 2000 e hoje cada vez mais claro, é uma luta por uma reforma agrária que seja popular e assim a gente denomina a reforma agrária pela qual a gente luta hoje. A reforma agrária popular como um processo de acumular força para a gente construir uma sociedade diferente. 

Então reforma agrária para nós, no sentido popular, é uma reforma agrária que sirva, claro, para democratizar o direito do acesso à Terra, para todos e a todas aquelas que queiram um pedaço de Terra para poder trabalhar e viver. E viver dignamente, então viver dignamente é mais do que ter Terra, é ter casa, ter estrada, ter água, ter saneamento básico, saúde educação, cultura, ter uma comunidade, ter renda… É lutar por essa totalidade da vida com dignidade no campo, mas também a reforma agrária ela dialoga diretamente com a cidade, porque a gente entende que a missão da reforma agrária popular é produzir comida, comida de verdade, comida saudável e para isso a gente precisa se conectar diretamente com as grandes massas de trabalhadores e trabalhadoras que estão nas cidades. Então para nós esse é o sentido da reforma agrária gente poder ter a nossa Terra para a gente poder trabalhar, tirar dela nossa existência nossa dignidade, plantar pra gente comer, plantar também para a gente praticar solidariedade com aqueles que não têm, mas também plantar para a gente poder gerar renda para quem está no campo e fazer com que esses alimentos cheguem com qualidade e preço justo na nas cidades. É uma via de mão dupla, a gente entende que não pode abrir mão da reforma agrária.

Se a gente andar pelos Campos brasileiros, se a gente for olhar por um processo histórico brasileiro nos últimos anos, cada vez menos tem gente no campo e as pessoas foram expulsas, por falta de oportunidade, por falta de renda, por falta de trabalho, de dignidade, de condições mesmo, de perspectiva de viver no campo. Isso para dar lugar, a cada vez mais, a essa grande cara de fazenda, a grande fazenda que produz poucos produtos. Hoje a nossa produção majoritária no Brasil está concentrada em apenas 5 produtos de exportação especialmente, então isso vai limitando a nossa capacidade de fazer qualquer debate acerca de soberania alimentar. 

Hoje na verdade no Brasil a gente não tem sequer uma política de segurança alimentar, na verdade a gente está vivendo um momento extremamente delicado em nosso país que nos coloca numa condição de insegurança generalizada, não só alimentar. Mas se a gente for olhar historicamente, o Brasil não conseguiu nunca implementar uma política séria de segurança alimentar. Que seguramente teria que passar pela reforma agrária, inclusive, não tem como você discutir segurança alimentar sem discutir reforma agrária. Mas eu acho interessante esse tema do podcast, de chamar atenção justamente para esse tema da soberania alimentar que como a gente defende no MST, na Via Campesina, é um termo extremamente complexo e vai muito para além da segurança alimentar. 

Soberania é a gente poder ter autonomia para decidir, o que comer, quando comer, como comer, a gente tem qualidade, a gente ter diversidade, a gente respeitar a nossa cultura, a sazonalidade dos nossos territórios, a nossa história. Então falar de soberania alimentar e falar da nossa história, da nossa vida, da nossa identidade, da nossa identidade enquanto povo brasileiro. É um debate muito interessante, muito bonito, mas ao mesmo tempo é triste saber que a gente está em pleno século 21, que a gente tem um país do agro e que a gente tem muito brasileiro passando fome. Então ao mesmo tempo que a gente se mantém muito comprometido com esse debate da reforma agrária, da soberania alimentar como saída para a construção da nossa liberdade, da nossa autonomia, da nossa história de Brasil nação, a gente sente esse aperto no peito de saber que hoje tem gente que não comeu ainda e tem gente que vai dormir sem comer porque a fome chegou de novo na casa de milhões de lares brasileiros. E a gente precisa olhar para isso. 

E mais do que fazer a crítica, precisamos olhar para as possibilidades de alternativas e a gente aponta no nosso programa de reforma agrária popular saídas que passam, claro, pela reforma agrária, pela realização da reforma agrária, pela efetivação do acesso do direito desse acesso à Terra massivamente inclusive, próximo aos grandes centros porque é lá onde está a maioria da população brasileira que precisa ser alimentada. Nosso programa ele propõe a produção massiva em escala de alimentos saudáveis baseados na agroecologia como nossa matriz tecnológica, estabelecimento de outras relações com a natureza com os bens comuns da natureza, com a água, com a biodiversidade e com as sementes, o desenvolvimento de tecnologias apropriadas para isso, para esse cuidado também e para essa produção com eficiência na agroecologia. E estabelecer outras relações entre as pessoas também a gente entende que é o contraponto a esse projeto desumano de colocar o lucro acima da vida, de colocar a mercadoria à frente das pessoas e esse desenfreamento do capitalismo na busca por cada vez mais acumular, cada vez mais lucrar em detrimento do desenvolvimento das pessoas que a gente aposta é no desenvolvimento humano, de novas relações humanas, da educação, da cultura, da saúde, de relações respeitosas entre as pessoas, entre nós e a natureza, entre nós e as demais formas de vida. Enfim, acreditamos que precisamos repensar valores de uma sociedade que precisa ser reconstituída. E na centralidade disso para nós está a agroecologia, ela é a saída, ela não é o ponto final da história é o caminho. A agroecologia é um caminho para a gente construir o nosso programa de reforma agrária popular, um projeto popular para o Brasil, um plano de soberania alimentar. Agroecologia é mais do que não botar veneno na Terra, não usar insumo é sintético químico, agroecologia são novas relações que a gente pretende estabelecer e faz isso efetivamente no nosso dia a dia na condução dos nossos territórios com a natureza, com as pessoas, com a produção, as nossa relação com a vida. Ela nos se coloca numa condição de repensar a centralidade da vida.

Bianca Rati

Eu acho que a maior parte das pessoas não têm um contato direto com o MST, o que acaba alimentando os nossos preconceitos, baseado especialmente naquilo que a gente ouve na mídia e de certos grupos políticos. Durante a produção desse programa eu refleti muito sobre o fato de vivermos num país com a bancada do boi, da bíblia e da bala como algo conjunto e como isso é um dos resquícios do nosso processo de colonização, os mesmos europeus que trouxeram a sua versão de cristianismo (hoje a mais praticada e aceita no pais) trouxeram também consigo uma forma de lidar com a terra, sejam os vegetais ou animais, de maneira violenta e exploratória. Tudo isso veio no mesmo “pacote”. E por isso que o MST, comunidades indígenas e comunidades de resistência afro-brasileiras, como as quilombolas são muito importantes, porque elas nos lembram que há vida em plenitude e harmonia, há possiblidades de comer sem destruir da terra.

Ceres Hadich

Dom Pedro Casaldáliga tinha uma frase muito bonita, ele dizia que “Se o MST não existisse a gente ia precisar criá-lo”. Demorei bastante tempo para assimilar a profundidade desse pensamento. O Dom Pedro com tanta sabedoria, profetizou isso já faz muitos anos e hoje mais do que nunca, especialmente nesse período da pandemia, fica muito claro para a gente o que quer dizer essa linda e tão pequena mas tão profunda frase de Dom Pedro.

O MST é um bem do povo brasileiro, ele veio para resolver mazelas da questão agrária, da injustiça social histórica e estrutural que a gente tem no campo, mas na nossa sociedade brasileira como um todo. O nosso movimento ele é parte da nossa história, ele é parte da história do povo sem Terra, do povo negro, do povo que luta pelos seus direitos, das mulheres, da população LGBT, das crianças. Ele é um movimento que está à disposição do Brasil, do Brasil dos brasileiros e das brasileiras, do Brasil daqueles e daquelas que daqui fazem sua luta diária, constroem suas vidas, seus sonhos e acreditam que esse aqui é o nosso país. Que a gente precisa construir, mudar e transformar para melhor, sempre para melhor. Então o nosso movimento ele é humildemente é um pedaço do Brasil, a gente está aqui porque a gente acredita que a gente precisa se somar a ampla maioria dos brasileiros para construir um Brasil diferente, a nossa parte a gente tenta fazer. Na luta pela Terra, na luta pela reforma agrária, na luta pela transformação da sociedade, do nosso jeito. Contestando é claro, radicalmente, e seguiremos fazendo isso, contestando as mazelas do agronegócio, do latifúndio. Contestando porque os donos dessa Terra são os trabalhadores e trabalhadoras, são os indígenas, são os negros que foram escravizados, é o povo que lavra essa Terra há mais de 500 anos, que trabalha nela. Então essa contradição a gente vai seguir escancarando pro mundo, para a sociedade brasileira. A terra é de quem trabalha, a terra é do povo brasileiro por isso a gente vai seguir ocupando terras.

A gente vive num país maravilhoso, com tanta diversidade, com tanta riqueza, com tanta gentes e histórias e a gente precisa poder usufruir disso, poder ter o direito de comer e comer bem, viver e viver bem. Então essa é a nossa luta, pela reforma agrária que permita que todos e todas saibam ler e escrever, que todos e todas possam ter uma casa com dignidade com água limpa, com saneamento. A gente acredita que esse mais do que um sonho, é um direito de todos e todas nós e vamos seguir lutando também por uma sociedade mais justa, a gente merece isso, o povo brasileiro merece isso. É uma história, de lutas, de resistências, de construções, de sonhos e a gente sonha muito com a nossa liberdade enquanto povo brasileiro. Então o MST ele é isso é uma pequena grande parte do povo da história do Brasil.

Nosso movimento é o movimento mais longo camponês de luta pela Terra do nosso país, ainda que tenhamos uma história bastante curta, a gente não tem nem 39 anos ainda de construção, mas esperamos também e muito mais além disso. Estamos construindo planos e projeções muito boas para o nosso futuro porque a gente entende que a nossa missão não acabou. Enquanto tiver gente sem Terra e Terra sem gente, a nossa missão tem que continuar, enquanto a gente puder seguir avançando para produzir comida de verdade, para produzir comida saudável e que isso caia cada vez mais no entendimento no gosto do povo brasileiro, a gente vai seguir com essa nossa missão de continuar cultivando vida, plantando árvore, produzindo comida porque esse é o verdadeiro sentido da reforma agrária e esse é o verdadeiro sentido de o MST existir. Então que a gente possa seguir semeando como bons camponeses e camponesas que somos, semeando com paciência, com carinho, com cuidado essas sementes de Esperança de amor, de acolhida, de respeito, de resistência porque a gente acredita que esse é o caminho para a gente construir uma nova sociedade.

Música de transição: Rising Tide (Kevin MacLeod – Incompetech)

Carolina Maria de Jesus interpretada por Bianca Ramires

O João entrou dizendo que estava com dor de barriga. Percebi que foi por ele ter comido melancia deturpada. Hoje jogaram um caminhão de melancia perto do rio. Não sei porque é que estes comerciantes inconscientes vem jogar seus produtos deteriorados aqui perto da favela, para as crianças ver e comer. Na minha opinião os atacadistas de São Paulo estão se divertindo com o povo igual os Cesar quando torturava os cristãos. Só que o Cesar da atualidade supera o Cesar do passado. Os outros era perseguido pela fé. E nós, pela fome! Naquela época, os que não queria morrer deixavam de amar a Cristo. Mas nós não podemos deixar de comer.

Bianca Rati

Senhor, te damos graças,

porque em volta desta mesa

renova-nos a força

de lutar contra a pobreza.

Transforma a nossa gula,

nossa sede de abastança,

num novo sentimento de justiça e de esperança.

Senhor, que os nossos pratos,

numa terra dividida,

um dia se dividam

numa terra reunida.

Perdoa-nos, agora,

nesta injusta refeição,

até que a terra inteira

se alimente do teu pão.

Esse poema que você ouviu é na verdade uma música, ela se chama Senhor te damos graças – Bênção de mesa, de Jaci Maraschin.

Bianca Rati

Este episódio é o primeiro de uma série de quatro programas que vamos lançar agora em abril aqui no Projeto Redomas. Eles são parte do meu projeto final para o programa Fellowship da ong estadunidense CreatureKind, da qual tenho a honra de participar.

A missão da CreatureKing é encorajar os cristãos a reconhecerem as razões, baseadas na fé, para se preocuparem com o bem-estar de animais usados para alimentação e a tomarem ações práticas em resposta. 

Minha profunda gratidão a Nancy Cardoso, Bruna Oliveira e Ceres Hadich, entrevistadas neste programa. Também agradeço a Bianca Ramires, que lindamente interpretou a Carolina Maria de Jesus em trechos do livro Quarto de Despejo: o diário de uma favelada. 

Obrigada a quem ouviu até aqui e até o próximo redomascast!

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