As mulheres do Nilo

Para os egípcios na Antiguidade, havia um deus que representava o Nilo. Conta-se que Hapi era fluido e saía de seu lar, atravessava céus e a terra dos mortos até chegar em solo egípcio. É apresentado como um homem que possui seios pendentes, indicação de sua fertilidade e com barba definida. Seu corpo possui uma barriga que se destaca pela protuberância, significando boa nutrição e fartura. O cinto amarrado em sua cintura, quando Hapi o desatava, liberava a cheia do Nilo. Sempre carregava uma bandeja nas mãos com muitos alimentos e sua pele azul ou verde também significava fertilidade.

O culto a Hapi era popular, principalmente com a proximidade das cheias. Estátuas da divindade eram espalhadas para que a boa enchente viesse marcando um novo ciclo agrícola para a comunidade ao redor do Nilo e todo o Egito.

Hapi, deus egípcio
Inscrição de Hapi, deus egípcio
Hapi, deus egípcio

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Possuir uma divindade específica dentro do panteão demonstra a importância do Nilo para o Egito Antigo. Disputa o título de maior do mundo com o Rio Amazonas e está situado entre Uganda, Tanzânia, Ruanda, Quênia, Congo, Sudão, Etiópia e Egito. A economia e a sociedade durante o Antigo Império Egípcio se organizavam a partir da sazonalidade das cheias, da agricultura e dos cultivos de alimentos antes e depois dos períodos férteis. É um dos rios mais conhecidos da Bíblia, pois suas águas abrigaram Moisés quando bebê e muitas mulheres conviviam em suas margens.

Como confrontar a narrativa bíblica com os estudos sobre o papel das mulheres nas sociedades faraônicas? Em se tratando de divisão de trabalho, na Antiguidade egípcia, as mulheres raramente eram representadas em cenas relacionadas às atividades agrícolas e não apareciam realizando funções artesanais. Eram retratadas, porém, produzindo pão e cerveja, fiando, e em atividades de tecelagem. As ocupações no exterior da casa eram majoritariamente masculinas e as do interior poderiam ser masculinas e femininas. No reino egípcio antigo haviam mulheres que desempenhavam funções estatais, controlando bens e obras, porém pertencentes à família real. Em atividades burocráticas eram raras as mulheres escribas. As mulheres egípcias desempenhavam papel importante nos cultos religiosos, mas apenas as pertencentes das classes altas trabalhariam como sacerdotisas, cantoras ou dançarinas. A igualdade para mulheres no Antigo Egito tinha que encontrar respaldo na riqueza e na base familiar.

Thermuthis – A filha de faraó

Uma mulher rica e poderosa de destaque que tem relação com o Nilo é a filha do Faraó que resgatou Moisés das águas. Semelhante a muitas mulheres na Bíblia, ela existe, porém não é nomeada. Tem participação fundamental para a vida de um homem que vai se tornar um dos patriarcas, mas sua biografia é reduzida a apenas uma ação. Essa mulher tem nome e estava cercada de outras mulheres ao redor do Nilo. Além das divindades, das mulheres comerciantes, daquelas que aproveitavam as extensões das águas para se banhar ou trabalhar, havia uma princesa e seu séquito, havia uma mãe e uma irmã escondidas aflitas pela vida de um bebê. Aqui nesse texto nos interessa contar uma delas, a princesa. Quem era ela? Por que estava ali? Qual sua importância e o que sua vida nos ensina?

Antes do nascimento de Moisés, os reis do Egito eram chamados de faraós, uma palavra que significa rei do sol. O faraó que reinou quando Moisés nasceu em seu reino africano emitiu um decreto de que todos os bebês hebreus do sexo masculino seriam mortos (Êx 1: 15-22). Joquebede escondeu seu filho recém-nascido, Moisés, para que ele não tivesse esse destino. Quando a mãe de Moisés não conseguiu mais escondê-lo do decreto de infanticídio do faraó, ela fez uma arca para levar seu bebê pelo rio Nilo, a 6.000 milhas de comprimento, na esperança de que alguém o encontrasse e cuidasse dele (Êx 2: 2-4).

De acordo com o historiador judeu Flavius ​​Josephus, juntamente com o registro escrito por Moisés do evento, quando a filha do faraó, cujo nome era Bathia ou Thermuthis, “desceu para se lavar no rio; e suas donzelas caminharam à beira do rio; e quando viu a arca no meio do mato do rio, mandou sua criada buscá-la. E, quando a abriu, viu a criança; e eis que o bebê chorou. E ela teve compaixão dele e disse: Este é um dos filhos dos hebreus” (Êx 2: 4-10, Jasher 68: 17-23).

 

Segundo o Talmud, Thermuthis não teria ido ao Nilo para se lavar, mas em um ritual de purificação. Já na literatura rabínica, ela frequentava o rio com frequência, sempre acompanhada de mulheres que a acompanhavam, pois possuiria uma doença de pele, cujas lesões acalmariam ao se banhar nas águas do Nilo. Sua iniciativa em adotar Moisés também apresenta variações, para a tradição judaica, ela não poderia ter filhos e dar seguimento à linhagem da família, sendo sensibilizada com o bebê. 

 

Thermuthis tem muitas vezes sua participação reduzida apenas àquela que tirou Moisés das águas, mas ela, além disso, agregou a irmã e a mãe nos primeiros anos da criança, desafiou um decreto real ao adotá-lo e foi responsável por nomeá-lo e cuidar de sua educação. Além de ser a resgatadora, Thermuthis acumulou funções que excedem o papel único que muitos discursos a localizam.

 

Ela também era uma mulher em uma situação de liderança e poder. Qualquer que seja o olhar que se direcione para a sua vida, reduzi-la a mãe adotiva de Moisés é negar a complexidade de uma autoridade real e egípcia. Todas as atitudes que ela tomou vão de encontro ao esperado por uma princesa, mas só alguém em uma posição superior e privilegiada poderia quebrar regras que seriam fundamentais para o estabelecimento do judaísmo e do cristianismo.

 

Finalmente, Thermuthis era uma estrangeira. No meio das águas do rio, no meio de tantas mulheres, o resgate foi feito por uma estrangeira, egípcia e – por mais que os discursos, teologias e até obras de arte, queiram negar – preta. Já que o discurso arquetípico da adoção é utilizado para ilustrar a graça divina, espero que sempre lembremos de Thermuthis.

 

Referências:

PETRUSKI, Maura. Um rio… Nilo, um deus… Hapi, uma deusa… Anuket e um festival. REvista Mundo Antigo, Ano V, v. 5, n. 11, 2016.

SOUSA, Aline Fernandes. O papel das mulheres na sociedade faraônica: a igualdade em discussão. Anais do Fazendo Gênero 8. Florianópolis, 2008. Disponível em http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST70/Aline_Fernandes_de_Sousa_70.pdf

WARDEN, James. Blacks in the Bible: The original roots of men and women of color in scripture. AuthorHouse, 2006


Autora: Paloma Santos


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

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