RAINHAS CANDACE: PODER DE MULHER

Em Atos 8 encontramos o diálogo entre Felipe e um funcionário etíope, responsável pelos “tesouros de Candace, rainha dos etíopes” (Atos 8. 27). Candace é citada na Bíblia e aparece ao lado de rainhas bíblicas como Vasti, Ester, a Rainha de Sabá e Jezabel. Neste texto procuraremos caracterizar quem eram as Rainha Candace, que pertenciam a uma classe de mulheres negras governantes e não eram uma mulher única. 

 

Resgatar a história dessas rainhas se faz necessário, especialmente porque é comum se utilizar das narrativas dos grandes reis de Israel e das nações adjacentes, enquanto as rainhas, tão poderosas quanto, que tiveram relações políticas e econômicas fundamentais para o desenvolvimento das regiões, são pouco citadas, estudadas, lembradas.

 

As Rainhas Candace eram governantes do reino de Cuxe (atual Etiópia). Cuxe existiu durante cerca de mil anos e tinha o comércio como sua atividade central. Relatos contam que muitos embaixadores e autoridades cuxitas viajavam e negociavam com os governantes de outros reinos. Cuxe foi governado por várias rainhas chamadas de Candace, cujo significado é rainha-mãe. Ser rainha-mãe significava participar das questões políticas, da administração civil, dos comércios, exércitos, da religião e estabelecer relações diplomáticas com os reinos vizinhos.

 

Um ritual importante das Candace de Cuxe, que apontavam para a importância matrilinear do reino seria a coroação do filho e da nora. Durante a cerimônia, a Candace adotava a esposa do filho, legitimando-a como autoridade que assumiria função futura de Candace. A partir desse momento, a nora adotada teria linhagem real e funções religiosas e políticas relevantes.

 

As  principais  Candaces da história foram: Shanakdakhete (170-160 a.C.), rainha africana mais dominante da antiga Núbia e governou sem um rei (Figura 1) 

Candace Shanakdakhete
Figura 1. Candace Shanakdakhete

A rainha Candace Amaniremas (80-65 a. C.) se destacou pela liderança dos exércitos cuxitas na iniciativa contra os romanos. Exímia guerreira, liderou cerca de 30 mil homens e durante anos exerceu resistência contra o império romano.

 

Já Amanishakete (41-12 a. C.) também foi uma rainha guerreira que derrotou o exército do imperador Augusto, quando lutou no Egito para retomar suas posses no território. Suas joias foram encontradas em uma pirâmide no século 19 e encontram-se expostas nos Museus Egípcios de Berlim e de Munique (Figura 2)

Imagens de esculturas e documentos históricos sobre Candace Amanishakete
Figura 2. Candace Amanishakete

 

A última rainha mais relatada, Amanitare (12-12 d. C.), pode ter sido a rainha da narrativa em Atos 8. Conhecida como a construtora, restaurou templos locais que foram destruídos pelos romanos e reinou num dos períodos mais prósperos de Cuxe (Figura 3).

Escultura em mural de Candace Aminatare
Figura 3. Candace Amanitare.

 

Nas imagens em templos e pirâmides as Candaces foram representadas com  seios fartos e quadris largos que, provavelmente, remetem a um padrão de  beleza das mulheres desta sociedade. Também, as representações voluptuosas  dos seios e dos quadris indicam sinais de grande fertilidade da Candace, principal mãe e mulher de Meroe (capital do reino).

 

Retornando ao texto bíblico, a rainha Candace não recebe nome. Além disso, todas as devocionais e exegeses estão centradas nos homens, Felipe e o Eunuco, que também não tem nome. A rainha não é estudada e passa despercebida muitas vezes. Este texto é utilizado teologicamente para justificar o cumprimento messiânico e justificar a missão helenística, responsável pelo cristianismo primitivo na Etiópia.

 

Como oferecer perspectivas diferentes das dominantes para esse trecho bíblico? É só voltar os olhos para a África de Candace. Segundo a pesquisadora Maricel Mena López:

 

Em termos gerais, pode-se concluir que a África negra sempre esteve presente na tradição bíblica ao lado dos grandes impérios, somente que a partir da linguagem de dominação esta passou a ser marginalizada. Portanto, Atos 8,26-40 não pode ser interpretado como cumprimento de universalização, por um lado, por ser parte da linguagem de dominação, por outro, porque a África sempre fez parte desse universo simbólico igual aos outros povos. Está incluída no projeto de salvação, desde o início do cristianismo, e não desde a cristandade colonial com a qual fomos batizados com ferro, espada e fome. 

 

Resgatar a história das rainha Candace a partir de uma hermenêutica negra e feminista faz parte do projeto de devolver o poder das figuras dessas mulheres, que eram guerreiras, tinham prestígio e riquezas. Contribui também para a desocidentalização do cristianismo, ao não se concentrar em processos de escravização e colonização, mas em mostrar o poder político e narrativas de resistência de mulheres negras, que eram rainhas, e retomar seu papel ativo e político.

 

QUESTÕES PARA REFLETIR

 

  1. Desafie-se a listar as mulheres bíblicas que desempenhavam papéis ou que eram figuras de poder político. Conheça suas histórias e relacione a presença masculina nas suas trajetórias, elas são protagonistas?  Quantas são negras? 

 

  1. Algumas considerações sobre o funcionário de Candace em Atos 8: era um alto funcionário real, estava a cargo da rainha, era culto pois lia Isaías em grego, tinha prestígio e poder, pois podia ler criticamente o rolo sagrado e tomava iniciativas a partir daquilo que entendia ser sua fé. Esse perfil do Eunuco fez parte daquilo que vocÊ ouviu na igreja ou em sua comunidade de fé? 

 

  1. A história das Candace pode exercer uma contribuição para a representação, auto-estima e participação ativa de mulheres negras nas igrejas e espaços de fé? 

 


Referências

CUNHA, Sonia Ortiz; GONÇALVES, José Henrique Rollo. Cuxe: o resgate histórico de um antigo reino núbio. Secretaria de Educação do Estado do Paraná. Disponível em <http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/2546-8.pdf>. Acessado em 22 de novembro de 2019

BISPO, Cristiano. DA ANTIGUIDADE, NEA-Núcleo de Estudos. CANDACES: DOIS DISCURSOS, DUAS REPRESENTAÇÕES. Disponível em <https://docplayer.com.br/36718936-Candaces-dois-discursos-duas-representacoes.html>. Acessado em 22 de novembro de 2019

MENA, Maricel. Bíblia e descolonização: apontes desde uma Hermenêutica bíblica negra e feminista de libertação. Mandrágora, v. 24, n. 2, p. 115-144.

LÓPEZ, Maricel Mena. Leitura da Bíblia desde uma perspectiva negra e feminista. identidade!, v. 2, n. 2, p. 3-5, 2001


Autora: Paloma Santos


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

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