Geografia para uma África Bíblica

Pergunte a algumas pessoas qual a capital da África e você provavelmente verá caras confusas antes de qualquer resposta. A África não tem capital. É comum pensar no continente africano como um lugar único e homogêneo, e esse desconhecimento influencia a forma com que as narrativas bíblicas chegam ao nosso imaginário. Conhecer o continente em que acontecimentos divinos importantes aconteceram contribui para inserir perspectivas negras ao nosso arcabouço teológico e devocional. Talvez estejamos familiarizadas com uma geografia bíblica que só precisa de uma atualização política em nossos tempos, que precise situar os países e localizar os fatos para organizar de forma definitiva que as histórias da nossa infância e juventude foram contadas sem contexto, portanto, branquificadas.

Admite-se que a África pertence a um continente muito antigo que sofreu um processo de deslocamento e desunião geográfica e que compreendia a América, o sul da Ásia e a Austrália. O continente africano foi afetado por longas fases de erosão ao longo da história, que resultou em vastas superfícies aplainadas cortadas por rios. Existem regiões mais chuvosas, de onde nascem os rios mais extensos e volumosos, como o Nilo e regiões áridas e semiáridas, em que a hidrografia é formada por rios temporários, oásis e alguns lagos. A existência do deserto do Saara, que cobre aproximadamente um terço do continente, nunca constituiu uma barreira entre o norte e o sul do continente, pois o deserto é habitado por nômades e cruzado por rotas de caravanas há séculos.

Por se tratar de um continente gigantesco, existem regiões em África que foram favorecidas em se tratando de ocupação e desenvolvimento econômico. Existem regiões e países que são situados em paisagens desérticas como a Líbia, o Egito e o Sudão, outros em paisagens tropicais como a Nigéria e a África do Sul. As diferenças culturais e sociais também são grandes, então deve existir um esforço em considerar a África em sua diversidade e recusar um imaginário de homogeneidade dos países e povos africanos.

De acordo com critérios geográficos e direcionais, a África pode ser dividida em cinco grandes regiões. Vamos organizar geo-politicamente e, em seguida, situar algumas narrativas bíblicas e sua localização no continente:

Geografia da África - Mapa com subdivisões por região
Divisão geográfica da África. Fonte: Domínio público.

 

  1. África do norte ou setentrional (roxo): localizada ao norte do continente, próxima aos Mares Vermelho e Mediterrâneo e Norte do Saara. Hoje compreende os países Argélia, Egito, Líbia, Marrocos, Sudão, Tunísia e Sahara Ocidental.
  2. África ocidental (verde): faz divisa com o oceano Atlântico e seus principais países são Burkina Faso, Cabo verde, Costa do Marfim, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Níger, Nigéria, Senegal, Serra Leoa, São Tomé e Príncipe
  3. África central (rosa): considerada a maior região plana, compreende os países de Angola, Camarões, República Centro-Africana, Chad, República Democrática do Congo, República do Congo, Guiné Equatorial, Gabon.
  4. África oriental (cinza): faz divida com regiões do oceano Índico e tem como principais países Etiópia, Quênia, Madagascar, Malawi, Moçambique, Ruanda, Somália, Uganda, Zâmbia, Zimbábue
  5. África Meridional ou austral (vermelha): seu conjunto de países situa-se no sul do continente e são Botswana, Lesotho, Namíbia, República da África do Sul e Suazilândia.

As narrativas presentes na Bíblia relacionadas ao continente africano, em sua maioria, contemplam a região Norte da África, especialmente por causa da centralidade do Egito no livro de Êxodo. 

Lembre-se novamente da sua infância. Os materiais de apoio usados nas aulas na igreja mostravam pessoas egípcias negras? Mais recentemente os produtos culturais da mídia também se recusam a retratar o Egito bíblico como negro, fato observado em filmes, novelas e produções imagéticas. Algumas narrativas bíblicas se passam em África e devem ter seu imaginário atualizado, estudado e compartilhado para estimular um pensamento cristão diverso e antirracista. Vamos examinar alguns lugares.

Egito

Principal referência africana da Bíblia, tem destaque em todo o Êxodo. Costuma ser visto e lembrado por causa das histórias de escravização e atitudes autoritárias de seus governantes. Citado pela primeira vez em Gênesis 12: 10-13, passagem em que Abrão se desloca para o Egito por causa da fome em Canaã. O nome hebreu para a terra do Egito é Mizraim, que também é o nome do filho de Cam, irmão de Cuxe, Pute e Canaã. Mizraim, então, seria o patriarca comum dos antigos egípcios. A realidade egípcia está bem descrita no Gênesis, com destaque para a prosperidade e política dos Impérios. José (Gênesis 45 e 46) foi um tipo de primeiro-ministro do Egito e emigrou para lá. O livro de Êxodo retrata todo o processo de refúgio do povo hebreu para o Egito e as relações, acolhedoras no início, e conflituosas até culminar na narrativa da saída. Outra figura de destaque que foi adotado por uma família da realeza egípcia e que viveu muitos anos até liderar a saída do povo foi Moisés (livros de Êxodo e Levítico). O rei Salomão teve relações políticas e econômicas com o Egito e casou-se com a filha do Faraó (1 Reis 9. 16). O rei Nabucodonosor conquistou a região que incluiu Israel e o Egito (Jeremias 43-45) e outros povos os conquistaram: os persas e em seguida os gregos. Os ptolomeus, que sucederam os gregos tomaram para si o título de faraós, sendo Cleópatra, a última dos monarcas que teve seu governo encerrado com a tomada dos romanos.

 

Infância de Jesus no Egito

Um fato pouquíssimo comentado é que, após o nascimento, obedecendo a um comando de Deus dado a José em sonho, a família de Jesus mudou-se para o Egito. Em Mateus 2. 13-18 está escrito que a família de Jesus viveu no Egito até a morte de Herodes, que pretendia matá-lo. O Egito seria o lugar ideal, pois estava, à época, sob domínio romano, mas fora dos domínios de Herodes. Questiona-se quanto tempo Jesus teria vivido no Egito, já que era recém nascido quando se mudou. Estudos relatam entre 2 e 5 anos.

 

Cuxe

Atualmente as terras relacionadas a Cuxe são aquelas onde se localiza o Sudão. O nome dado a esse povo advém de Cuxe, um dos filhos de Cam, que se estabeleceu no nordeste da África (Gênesis 10.7; 1 Crônicas 1.9). Com a presença do império grego na região, os geógrafos gregos consideravam a Etiópia como parte do reino cuxita. Em Números 12.1 a narrativa relata que Moisés recebeu críticas dos seus irmãos por ter se casado com uma mulher cuxita (etíope, na Nova Versão Internacional, NVI). Não há consenso sobre quem seria esta mulher. Um dos estudos mais citados relata que poderia ser Zípora e o termo cuxita teria sido utilizado para desprezar a descendência, negra, da mulher.

 

Etiópia

Quando citada na Bíblia compreende o reino de Cuxe e a região do Sul do Egito. No livro de Ester, a Etiópia faz parte dos domínios do rei persa Xerxes ou Assuero (Ester 1.1), que administrou uma revolta dos egípcios em 486 AEC. O livro de Jó demonstra sua riqueza e suas pedras preciosas (Jó 28.19). O livro de Isaías cita um rei etíope chamado Tiraca ou Taraca (Isaías 37.9), que foi faraó e rei da dinastia etíope ou reino de Cuxe. Associou-se a Ezequias, rei de Judá para impedir iniciativas assírias de conquista da região e comandou um vasto programa de construções na Núbia. A narrativa mais conhecida que relaciona a Etiópia é o evento entre Felipe e o Etíope (Atos 8.26-40), e muitos discursos não relacionam essa personagem a uma autoridade. O homem Etíope, que não tem seu nome relatado, era uma autoridade, que estava a serviço da rainha, “encarregado de todos os tesouros”, o que faz pensar que poderia ser algo como um ministro do tesouro, um ministro da economia. Importante recontar essa história de forma menos colonizadora: o homem etíope era uma autoridade real, homem negro, rico e intelectual que fazia leituras. 

 

Sabá

O reino de Sabá é citado na Bíblia e no Alcorão. Sua localização geográfica inclui o leste da África e o sul da península arábica. Poderia então se situar entre a atual Etiópia e o Iêmen. Esta localização permitia aos moradores de Sabá (os sabeus) o comércio marítimo com a África e a Índia. Conta-se que Sabá seria uma sociedade matrilinear, onde o poder é ascendente pela via feminina e suas rainhas são conhecidas como poderosas. O império seria uma mistura entre povos africanos e da Arábia, riquíssimo. Citado em Gênesis 10.7 como um dos filhos de Raamá e em 1 Reis 10 há o relato do encontro entre Salomão e a Rainha de Sabá. O comércio de ouro, jóias, mirra, incenso e especiarias do Oriente, feito pelas caravanas, foi facilitado pela domesticação de camelos. Nenhum outro animal de carga poderia sobreviver às longas distâncias entre as fontes de água. Os sabeus, que tinham a reputação de saqueadores, talvez fossem descendentes de Abraão por parte de sua segunda esposa Quetura. Os sabeus mudaram-se do norte da Arábia antes do século X AEC e construíram uma capital em Marib, sustentada por uma grande represa, que coletava águas das chuvas sazonais. Os empreendimentos marítimos de Salomão ameaçavam o monopólio comercial dos sabeus, e muitos estudiosos especulam que a rainha deles visitou Salomão com o propósito de firmar um acordo comercial.

 

Mar Vermelho

É um golfo que se localiza entre a África e a Ásia. Se comunica com a península do Sinai e o canal de Suez. Os países banhados por esse corpo de água são a Arábia Saudita, o Egito, a Eritreia, Israel, Jordânia e o Sudão. A identidade do mar vermelho é objeto de debate. Tem papel central na história da saída do Egito (Êxodo 13). O nome hebraico para o mar vermelho é yam suph, que significa mar de juncos. Muitos hoje acreditam que o candidato mais provável para o mar vermelho bíblico seja o lago Timsa, ainda que outros lagos e a ponta norte do golfo de Suez também sejam possibilidades, corroborando com a hipótese de que seria um pântano raso com juncos em que as bigas egípcias teriam ficado presas.

 

Cirene

Cirene localizava-se na costa norte da África, perto da ilha de Creta e atual Líbia. É mencionada diversas vezes no Novo Testamento. Nos evangelhos (Mateus 27.32; Marcos 15.21; Lucas 23.26) é referenciada como a cidade natal de Simão, Simão de Cirene ou Simão, o cireneu, homem que carregou a cruz para Jesus. No livro de Atos, os cireneus estiveram presentes no evento de Pentecostes e se dispersaram num projeto de falar sobre Cristo para os gregos e gregas. 

 

QUESTÕES PARA REFLETIR

  1. Reflita sobre a importância de se estudar e apresentar geografias bíblicas. O quanto esse esforço contribuiria para inserir mais África em nossos discursos cristãos?
  2. A partir dos lugares de África expostos, é possível reconstruir histórias com as pessoas envolvidas e que sejam completamente diferentes da perspectiva colonizadora que circulam nas comunidades cristãs? Usar como exemplo o que foi apresentado sobre Felipe e o Etiópe.
  3. Temos, em nossas comunidades, envolvido historiadoras e geógrafas nos momentos de estudo? O quanto essas pessoas poderiam contribuir com o projeto de África Bíblica?

 

Referências: 

História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África / editado por Joseph Ki-Zerbo. – 2.ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. 992 p.

SILVA, Andreia. O continente africano. Especialização em História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Disponível em: https://historiaecultura.ciar.ufg.br/modulo2/capitulo5/conteudo/arquivos/historiaafrica_mod2cap5.pdf. Acessado em 10 de outubro de 2019

Bíblia de Estudo Arqueológica NVI. Equipe de tradução: Claiton André Kunz, Eliseu Manoel dos Santos e Marcelo Smargiasse. São Paulo: Editora Vida, 2013.


Autora: Paloma Santos


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

 

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