Mães negras e o mercado de trabalho: a luta das domésticas na criação e formação de seus filhos/as

Quando criança gostava de ir ao trabalho da minha mãe. Era uma forma de ficar mais perto dela, já que sua jornada de trabalho era extensa e nos víamos muito pouco no fim do dia. Mas, há uma cena que nunca consegui esquecer: a patroa parada na ponta da mesa gritando: “Jacy, passa um pano aqui!” Sua simpatia e risada fácil, não fazia com que as empregadas percebessem a relação de dominação. Sim! Tinha simpatia, mas nem de longe havia empatia! Havia uma luta de classes e o preconceito velado. A Jacy passava o pano. Na gíria da periferia, de onde vem a Jacy, passar o pano significa esconder o que há de errado, encobertar a ação do outro.

Talvez, minha mãe, bem como as mais de 7.000 mulheres que, na atualidade, trabalham em serviços domésticos, nem percebesse, mas, estava ali, encobrindo anos de escravidão que ainda refletiam na sua rotina. Limpando o chão da escola e também das casas da elite paulista, sem ter a chance de aprender a ler, pensando apenas nas contas e nas muitas crianças que tinha em casa e que precisava garantir a subsistência.

Sim! Ela sempre foi a empregada doméstica, tal como a minha avó, minhas tias e algumas primas mais velhas que, entre uma faxina e outra, também fazia costuras pra complementar a renda e sustentar a família. Ali, naquela escola, minha mãe  passava o pano ali, enquanto lá em casa, o pano mal cobria as questões existenciais; o pano, não dava conta de limpar a nossa ansiedade e as questões que berravam no nosso corpo e na nossa vida, sem a instrução, com a presença e o peso institucional exercido pela religião, que tentava, vez por outra, sem sucesso, organizar o caos a casa, com o discurso de pecado, confissão e perdão, caminhos para a vida eterna.

Jacy passava o pano, apagando as marcas do achocolatado que havia caído sobre a mesa; de certo, sobrou algum pouquinho na caixinha, e ele não foi para o lixo; ele se uniu ao pedaço de bisnaguinha, recheada com queijo prato, enrolados no papel alumínio e que foram guardados na bolsa. Serviram de lanche para nós, os filhos que, se dependessem de seu salário, não saberíamos o sabor destes alimentos, que ainda seriam aquecidos pelo alumínio e pelas horas de ônibus, do caminho entre a casa e o trabalho. Estranho, mas esta era a forma que ela encontrou para dizer: “me lembrei de vocês!” – um jeito de reforçar o afeto e o cuidado com os seus.

Mas, nesta história toda, não podemos ignorar a “naturalização” desta relação entre patroa e empregada. Segundo Renata Araújo Matos (2015) este mito da harmônica divisão social do trabalho faz parte de uma interpretação hegemônica sobre a formação social do Brasil e é uma herança do período da escravidão. A imagem do bom senhor como elemento fundamental da tranquila relação entre brancos/as e negros/as e consequentemente das boas relações entre escravos/as e seus senhores/as.

A patroa era uma “dona” legal. Ao final do ano, pra compensar as “passadas de pano”, deixava as funcionárias levarem pra casa todos os cacarecos que sobravam das brincadeiras das crianças; deixava também, as meninas da limpeza levarem os restos de doces e salgados que sobravam da festa; tudo enroladinho no papel alumínio, aquecidos pela vergonha e fazendo a manutenção da sociedade escravocrata!

“Jacy! Passa um pano aqui!” – Até hoje ouço este grito!
– “Não! Não era agressivo! Era só o jeito dela dizer! Ela falava alto mesmo!” – dizia a outra empregada que nunca se deu conta do sistema de escravidão! Nunca se deu conta do racismo estruturado que insiste em passar um pano nesta história de opressão; de dominação de classes e da subordinação das mulheres negras, diante de suas patroas brancas!

Jacy não lia. Mas, enquanto limpava as salas daquela escola, dizia para as demais funcionárias: “Eu não sei ler, mas a minha filha vai ser professora!” E os seus olhos brilhavam enquanto ela assim dizia! E seguia sua limpeza, cantando e orando. Pedindo à Deus, que uma de suas filhas pudesse se formar. Jacy não sonhou sozinha. Outras domésticas também estavam lá, por seus filhos e filhas: professoras/es, jornalistas, doutoras/es, engenheiras/os, advogadas/os e tantas outras profissões. Sim! Nós nos formamos.

Nos últimos anos com as políticas públicas, resultantes das lutas articuladas dos movimentos socias, houve um avanço no número de negros e negras nas universidades. Segundo dados da ANDIFES (Associação Nacional dos dirigentes das Instituições de Ensino Superior), nos últimos dez anos o número de cotistas nas universidades Federais triplicou. Mas, ainda é pouco se pensarmos que em cada 10 jovens que cursam ensino superior, apenas um é negro/a.

Entretanto, nós seguimos firmes e fortes, porque a Jacy, tal como outras mães, agiram como verdadeiras profetizas, que trabalharam e esperançaram por dias melhores  para as gerações vindouras. E se elas não leram as letras do alfabeto, da escola e da academia, certamente desenvolveram as suas técnicas e escreveram em nossos corpos e em nossas almas, com uma força divina, as marcas da história, da fé e da resistência.

E por isso, nós, as filhas e filhos das domésticas, aprendemos com elas, que não há mais tempo de “passar um pano” para aqueles e aquelas que insistem nas práticas de racismo, de classismo e muito menos de sexismo. Ocuparemos os nossos lugares de direito, porque nós somos denúncia e anúncio de uma nova história.

Nós estamos na luta e dispensamos o pano e o balde!


Referências:

As eleições de 2018 e a Lei de Cotas. Disponível em:  http://www.andifes.org.br/eleicoes-de-2018-e-lei-de-cotas/ . Acesso em 10 de novembro de 2018.

BETIM, Felipe. No país com mais empregadas domésticas, a vida de 7 milhões de mulheres é uma luta. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/09/politica/1518183910_858999.html. Acesso em 10 de novembro de 2018.

GUIMARÃES, Flávio Romero et al. RETRATOS DA DESIGUALDADE: IDENTIDADE SOCIAL E CONDIÇÕES DE TRABALHO DAS EMPREGADAS DOMÉSTICAS NO BRASIL (2004-2013). Dat@ venia, v. 7, n. 3, p. 08-18, 2017.

MATOS, Renata Araújo. Trabalhadoras Domésticas no Brasil: Desigualdade e luta. Disponível em:http://seminarioamericalatina.com.br/wp-content/uploads/2015/07/Trabalhadoras-Dom%C3%A9sticas-no-Brasil-Desigualdade-e-Luta-Renata-Ara%C3%BAjo-Matos.pdf


Lídia Maria de Lima, formada em Comunicação Social, em Teologia e Pedagogia. Militante negra e teóloga feminista. Professora na UMESP, mãe do Pedro e da Sofia.


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

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