Por que negamos uma África bíblica?

As nossas experiências cristãs estão repletas de apagamentos, e um dos mais importantes é o apagamento da presença e da importância da África nas histórias bíblicas. A leitura, o estudo e o compartilhamento da palavra são as experiências mais positivas de um coletivo cristão, mas muitas vezes não há um compromisso em apresentar a diversidade e a presença negra das narrativas.

Apontar que o desconhecimento é a causa principal para as invisibilidades não é de todo correto, visto que atualmente há um desejo e um esforço de mulheres e homens negras e negros em resgatar parte da africanidade e negritude presente na Bíblia, através de estudos históricos e sociais, perspectivas teológicas ou relatos de vivências e devocionais.

Não há reino de Deus sem pessoas negras (Mateus 5.10), e imaginar que durante muito tempo essas pessoas foram negadas, expulsas ou consideradas como inferiores, nos coloca a pensar em possíveis razões para este apagamento e exclusão.

Ao fazermos esse exercício podemos assumir uma postura de recusa. Postura essa que luta para que não existam mais retrocessos ou violência, especialmente contra mulheres negras em instituições religiosas. Muitas vezes as mulheres negras são aquelas que estão mais perto de Deus, orando e servindo na comunidade ao mesmo tempo em que são preteridas e que ouvem comentários, falas e sermões racistas, vindos de lideranças, irmãs e irmãos.

Por que negamos uma África e uma africanidade bíblica, então? Elencamos aqui alguns dos principais motivos:

 

Porque não se admite que o racismo é pecado e crime

O discurso de amor ao próximo e de comunhão de muitos cristãos não se sustenta se o amor e o cuidado não são direcionados para a irmã preta e pobre. A partir da perspectiva de pecado como “aquilo que te desumaniza” [1], o racismo é pecado. O racismo ataca diretamente a imagem de Deus ao desumanizar pessoas por causa de sua negritude. O racismo vai de encontro à perspectiva de justiça social presente em toda a narrativa bíblica e que deve ser aprendida e propagada por nós. O racismo é um pecado que desafia e rompe a perspectiva de coletividade santa proposta por Jesus. A negativa de uma África bíblica está centrada no fato de que as igrejas e comunidades evangélicas desconsideram o racismo como pecado, negam a existência do racismo estrutural, individualizam e não interditam práticas e discursos racistas e se recusam a tratar suas lideranças. A perspectiva política do racismo também é negada nas igrejas. Enquanto o racismo for tratado como problema individual, enquanto não for reconhecido como estrutural nas sociedades e nas igrejas, enquanto não for tratado como crime, as comunidades terão dificuldade para se engajar em ações para eliminar este pecado.

 

Porque não se admite que há um desconhecimento histórico e geográfico sobre África

Existe uma lei sancionada há mais de uma década (10.639 de 09 de janeiro de 2003) que torna obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira. Durante muitos anos professoras, pesquisadoras e lideranças do movimento negro brasileiro têm produzido materiais didáticos para tentar adequar os currículos e cumprir a lei, mas as questões relacionadas à formação de professores e o racismo brasileiro são fatores que paralisam as ações. O desconhecimento sobre história, cultura e geografia africanas e afro-brasileiras durante os anos de formação de crianças e adolescentes atravessa as igrejas, pois nelas não há nenhuma tentativa de inserção das temáticas nos espaços educativos como as EBDs, pequenos grupos, células e turmas avulsas. O ensino de geografia bíblica nas igrejas carece de contextualização e do rompimento de um imaginário branco. A demonização da negritude e das afrobrasilidades também é um impedimento para que se conheça mais sobre a África, vista muitas vezes apenas como lugar de condenação, pecado e miséria.

 

Porque não se admite que os materiais educativos utilizados nas igrejas são responsáveis por uma narrativa branca

Se a educação é parte fundamental para o reconhecimento do racismo como estrutural e pecado, é possível afirmar que nas escolas bíblicas dominicais (ou em grupos de estudos da bíblia) há uma preocupação com a temática? As respostas repousam nas lembranças de infância, aquelas em que os materiais exibidos para as crianças retratavam um Egito branco. Em muitas comunidades, a base da evangelização está centrada em ilustrações em que o preto representa o mal, o pecado, o diabo, a exemplo do “Livro sem Palavras” ou de músicas como “O sabão”. Os materiais visuais retratam homens, sempre com pouca diversidade de corpos e quase sempre brancos. Poucos negros são representados, ou são sobretudo pessoas escravizadas, e até imagens de pessoas egípcias são retratadas sem evidenciar sua negritude. Crianças e adolescentes, sem uma perspectiva crítica nas escolas bíblicas dominicais, não são estimulados a confrontar estruturas racistas e associam África a negro, pecado, podridão, algo sujo [2]. Mesmo um material que se dispõe a discutir a temática há uma perspectiva racista. Produzido pela Aliança Pró Evangelização de Crianças (APEC), o livro “Bola de Neve” é uma história em que um menino ora para deixar de ser negro. A descrição do material informa a sinopse: “Heitor mudou-se para outra cidade e na nova escola, alguns colegas fizeram pouco caso dele só porque ele era negro e zombavam chamando-o de Bola de Neve. Heitor comprou um “sabão milagroso”, mas por mais que se esfregasse, sua cor não mudava. Foi então que sua mãe explicou-lhe: — Deus é tão bom! Foi Ele que fez cada pessoa de um jeito especial. E a cor mais importante é a cor do coração. Bola de Neve, então orou, pedindo perdão e recebendo Jesus como seu Senhor e Salvador. Agora, seu coração estava limpo do pecado e ele estava alegre por saber que Deus o amava do jeito que ele era.” Em toda a história o racismo é tratado como bullying. Como se organiza a fé de crianças negras que veem suas vidas e seus corpos retratados como algo indesejado e sujo? Como esperar que essas crianças tenham um entendimento sobre África que seja diferente daquilo que é socializado nas EBDs ou grupos de estudo?

 

Porque não se admite que há a disseminação de teologias racistas nos púlpitos e corredores

O pastor que acredita em uma teologia que admite que os filhos de Cam são os responsáveis por uma “maldição africana” e dissemina essa teologia racista comete pecado e deve ser responsabilizado por essa negativa da africanidade bíblica. Afinal, para muitos, esse continente é amaldiçoado, então, tudo que vem dele, – pessoas, cultura, dança, comidas e espiritualidades -, deve ser condenado. A criação dessa violência simbólica estabelece um projeto de dominação, dominação teológica sobretudo. A teologia dos colonizadores brancos e europeus que chegou ao Brasil seleciona os símbolos de branquitude e relaciona-os à pureza, criando um imaginário social que circula nas igrejas, nos púlpitos e nos discursos dos corredores. Poucas são as pessoas negras em cargos de liderança na igreja. Se a igreja não promove uma reflexão crítica sobre seu racismo, como quer que uma irmã preta e pobre acredite ser amada por Jesus? Se a África de onde parte dos ancestrais brasileiros veio é lugar de perdição, como as pessoas pretas elaboram a perspectiva de graça e reino de Deus?

Porque não se admite que há um imaginário social nas igrejas que é fincado na branquitude

O protestantismo brasileiro pode ter suas igrejas divididas em dois blocos: as tradicionais ou históricas (incluindo aqui as pentecostais) e as renovadas ou neopentecostais. As igrejas históricas sempre apresentaram impedimentos para a população negra, barreiras essas fincadas em um ideal de branquitude. Em sua análise sobre a “religião mais negra do Brasil”, Marco Davi de Oliveira [3] aponta quais são essas barreiras, que, aqui nesse texto, também servem para a criação do imaginário social de uma dualidade branquitude santa versus negritude demonizada. As igrejas tradicionais, segundo o autor, fizeram uma opção pela elite brasileira quando seus missionários fundadores europeus optaram em edificar uma igreja que repetisse as normas das matrizes europeias ou norte-americanas. Também contribui o fato de muitos missionários vindos do sul dos EUA não terem nenhum constrangimento em trabalhar em um país escravocrata, e muitos desses homens não achavam que a escravização dos negros e negras seria um pecado e um processo de desumanização. A dificuldade com a linguagem nos primeiros anos de evangelização também favoreceu a elite branca das igrejas tradicionais. Além de iniciarem os trabalhos em inglês, só aprendendo português anos depois, os missionários também utilizavam uma linguagem rebuscada, pouco inclusiva, refletida ainda hoje em dia. Cânticos traduzidos de uma tradição européia, com palavras difíceis e com temáticas e harmonia distantes do povo brasileiro. A liturgia de muitas igrejas é centrada numa branquitude europeia e colonizadora, por isso não há espaço para uma africanidade ancestral, brasileira, colorida, movimentada e alegre.

 

Porque não se admite que existe uma história única sobre a África bíblica

A história única sobre África em muitas igrejas é uma história de maldição, pecado, miséria e podridão, que se estende para o povo negro, ancestral e descendente deste continente. Nega-se a sua presença nas igrejas por causa de uma falta de compromisso em eliminar essa história única e recontar, reconstruir outras histórias para a África bíblica. A igreja brasileira tem raízes afro-brasileiras porque é composta por pessoas afro-brasileiras. É urgente aprender, ensinar e refazer as histórias de África e sobre África porque serão ferramentas para o combate ao racismo e estabelecimento da justiça de Cristo para todas.

 

QUESTÕES PARA REFLETIR

1. Elabore rapidamente seu conceito de pecado e discuta se ele dialoga com a perspectiva do texto. Ela é mais abrangente e com uma proposta de menos culpa que a tão propagada “pecar é errar o alvo”?

2. Em algumas bíblias há, ao final do texto, uma série de mapas. Você se recorda de ter estudado geografia bíblica de forma sistematizada e articulada? Lembra-se de algum estudo sobre geografia africana?

3. Ao recordar da infância nas comunidades cristãs é comum pensar nos materiais que as professoras utilizavam para ilustrar as histórias. Lembra-se das histórias de Moisés no Egito? Discuta sobre o formato e a cor desses personagens nos materiais visuais de sua infância na igreja

4. Pense em alguns discursos e práticas racistas que você já ouviu na igreja, se for pessoa negra. Compartilhe alguns e construam juntos estratégias que poderiam ser organizadas para que práticas racistas não estejam presentes nas comunidades de fé.

5. A África é um continente feliz, pulsante e vivo. Ore a Deus para que você possa aprender mais sobre e atravessar as narrativas divinas com os espaços e culturas deste continente.

 

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 [1] Perspectiva que faz parte do pensamento e teologia da pastora brasileira Nancy Cardoso.

[2] ALCÂNTARA, Claudia Sales; OLIVEIRA-SILVA, Geraldo Magela. Educação protestante e cultura afro-descendente: uma relação conturbada. Protestantismo em Revista. Volume 17, 2008.

[3] OLIVEIRA, Marco Davi de. A religião mais negra do Brasil: porque os negros fazem opção pelo pentecostalismo. Viçosa, MG: Ultimato, 2015.

 


Autora: Paloma Santos


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

 

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