Uma leitura de ação no combate à violência contra mulher, segundo o evangelho de Jesus Cristo

Ao lermos as bem-aventuranças no evangelho de Mateus, em 5:3-16, percebemos que em Jesus, em sua práxis e discurso, não cabem atos e dizeres violentos. A missão de Cristo não se cumpre em nenhuma forma de violência, opressão, escravidão. Uma leitura atenta no Novo Testamento nos faz perceber que o discurso da não-violência é um dos grandes pilares da mensagem de Cristo.

Se “Deus é amor” não nos basta para ratificar a mensagem de paz que o Messias veio trazer, certamente não há nada mais que nos assemelhe a Ele e nos faça pregadores dessa mensagem. Se um “Ama a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo” (Mc. 12:28-29) e um ousado, indiscreto e perturbador “Amem seus inimigos” (Mt. 5:43) não nos forem suficientes para conceber a ideia de que em Cristo não há espaço para a violência, então nós, indubitavelmente, somos as pessoas que Jesus disse que se perdessem o sabor, não serviriam para nada a não ser para serem massacradas pela humanidade (Mt. 5:13).

Ora, se aquele então que é chamado de “Príncipe da Paz” não poderia se manter calado diante de nenhuma forma de violência, porque nós, seus discípulos, nos calaríamos? Especialmente em se tratando de violência contra a mulher, a necessidade de nos posicionarmos é ainda mais latente, considerando o crescente número de abusos e de agressões que as vítimas sofrem apenas, e tão somente, por serem mulheres.

O Mestre e uma mulher à beira da execução: feminicídio à luz da palavra

Quando olhamos para os evangelhos, percebemos o tratamento de Jesus dado às mulheres de sua época. O contexto histórico era totalmente desfavorável a elas e, mesmo assim, Jesus as incluiu em seu ministério e contava com elas na propagação do evangelho. Diante de uma clara situação de violência Ele não só não se calou, como se posicionou ao lado da vítima. Quando os judeus trouxeram a Ele uma mulher pega em adultério a fim de que fosse apedrejada, como constava na lei judaica, Cristo os questiona dentro da própria lei. A começar pela hipocrisia do cumprimento dessa lei, já que a mulher foi trazida sozinha. Se era um flagrante de adultério, onde estava o homem que também deveria ser apedrejado até a morte, segundo a lei (Lev. 20:10)?

No entanto o Mestre resolve a questão da lei, seja para homem ou para mulher, confrontando os julgadores com seus próprios pecados, convidando aquele que não tivesse pecado a atirar a primeira pedra. Pronto. Naquele contexto a situação estava resolvida. Se a lei é para tirar o pecado do meio de Israel, então todos os pecadores deveriam ser mortos. É isso ou então ninguém deve ser morto. Ou todo mundo morre ou ninguém morre! Nesse caso específico temos uma contundente situação de violência contra a mulher, uma vez que essa mulher estava sendo julgada por homens, por um pecado cometido com outro homem e sem a presença desse homem que havia pecado tanto quanto ela! Claramente essa mulher estava ali apenas por ser mulher. Diante disso o que Jesus faz? Perdoa (Jo. 8:11).
A ânsia em prender Jesus em uma cilada teológica não permitiu aos escribas perceberem que eles mesmos estavam enlaçados por ela. A ideia era dizer que Ele não era tão bom, caso ordenasse que matassem a mulher, ou que não era tão bom se não observasse a lei. Mas o que Ele fez foi executar justiça, pois ser bom ou mau naquele contexto não seria tão difícil, uma vez que bondade não é, obrigatoriamente, sinônimo de justiça e a maldade ali saciaria o ego dos escribas. No entanto, o reino de justiça inaugurado em Cristo pressupõe que Ele mesmo se posicionaria frente a uma injustiça como aquela, mudando o alvo do julgamento e direcionando a luz da lei sobre os julgadores, levando-os a julgarem a si mesmos segundo a luz dessa lei. Fica claro nesse contexto que a posição de Cristo frente à violência é sempre tomar partido pela justiça.

A violência contra mulheres em números

Sendo Jesus a luz que veio para salvar o mundo, ante a violência pecaminosa que o assola, o que isso nos diz sobre nosso papel enquanto corpo de Cristo no combate à violência contra a mulher? Desde sempre a situação da mulher é de vulnerabilidade e de discriminação. A lei da pureza, como podemos ver no livro de Levíticos, relegou a mulher a uma condição de extrema marginalização. A mulher era declarada impura desde o nascimento. Impura por ser mãe, por ser esposa, por ser filha, por ser mulher. Essa legislação é consequência de uma mentalidade patriarcal que diz que a mulher é inferior ao homem e dessa forma o poder de dominação e de subjugação é masculino. Essa mentalidade ainda se faz presente em muitas culturas, inclusive na nossa. Não é possível que fechemos os olhos para essa realidade. Reações a essa mentalidade que gera tanta violência sempre existiram. Não só em Cristo, mas também em Cânticos, Rute, Ester, Judite, Débora, aí vemos a resistência histórica das mulheres. Portanto, da mesma forma, é nosso dever ser a voz dos que não podem defender-se, voz que julgará com justiça em favor dos desamparados, pobres e dos necessitados (Pv. 31:8-9).

Em 2015 o Brasil registrou 1 estupro a cada 11 minutos, número que pode ser muito maior, uma vez que nem todos os casos são denunciados. E quem mais comete esses estupros são homens próximos às vítimas. Dados do Ministério da Saúde apontam que há, em média, 10 estupros coletivos sendo notificados todos os dias no sistema de saúde do país. A cada 7 segundos uma mulher é vítima de violência física, segundo o Instituto Maria da Penha. Em 2013 13 mulheres morreram por dia vítimas de feminicídio, ou seja, apenas por serem mulheres, assassinadas pelos parceiros ou parentes próximos, segundo o Mapa da Violência de 2015. Segundo esse mesmo mapa, o assassinato de mulheres negras aumentou em 54%, enquanto o de mulheres brancas diminuiu 9,8. Esse dado por si só denuncia a discriminação e o racismo estrutural a que mulheres negras estão expostas, pois são elas as vítimas que se encontram na linha de frente em situações de vulnerabilidade.

Também em 2015 o Ligue 180 realizou quase 800 mil atendimentos nesse canal que é a Central de Atendimento à Mulher. 40% das mulheres vítimas de violência doméstica – as agressões físicas e verbais cometidas em casa pelos homens da família, sobretudo maridos e pais – são evangélicas, aponta pesquisa de 2016 da Universidade Presbiteriana Mackenzie. 40% das mulheres vítimas são EVANGÉLICAS! Números estarrecedores. São muitos números, há muitos outros mais. Um dos mais impressionantes diz muito a nosso respeito: somos mais de 86% da população brasileira que se declara como cristã, segundo o IBGE. Então, de alguma forma, esses números não estão batendo.

Se somos tantos, de que forma estamos agindo e atuando em nossa sociedade a fim de que dados sobre a violência diminuam? Que influência exercemos? Que relevância temos? São 166 milhões de pessoas se dizendo sal e luz do mundo, pregadores do evangelho de amor e de paz de Cristo. O que acontece quando casos de violência contra a mulher batem à porta de nossos templos? Que postura temos quando chegam em nossos gabinetes casos em que esposas, filhas, namoradas, sofrem abusos por parte de homens que deveriam protegê-las, respeitá-las, amá-las? E quando casos de violência e de assédio acontecem no nosso quintal? Como nos posicionamos quando líderes de diferentes denominações são acusados e expostos por casos de abuso e de violência sexual, psicológica e moral contra mulheres? Porque não são apenas casos de estupro que são contados nesses números absurdos. A violência que não deixa marcas no corpo também mata. O machismo estrutural enraizado na nossa sociedade tem feito vítimas dentro e fora dos espaços de fé. Como temos reagido a isso? Porque, segundo os ensinamentos de Cristo, nosso Messias, como Sua Igreja não podemos, e nem devemos, estar alheios ao que acontece com a sociedade em que vivemos quando Ele mesmo não estava, nunca esteve e nunca estará.

Trazendo o reino de Deus à terra em atitudes práticas no combate à violência contra a mulher

1) A primeira atitude a ser tomada para nos tornarmos relevantes no combate à violência contra a mulher é justamente não fazer vistas grossas diante dessa violência. Fingir que não era com Ele foi tudo o que Jesus não fez. É preciso se posicionar frente às injustiças e violências inúmeras que acontecem ao nosso redor. Devemos ouvir e não julgar, foi assim que Cristo agiu com aquela mulher que quase fora apedrejada.

2) Paralelo a isso devemos denunciar. Encobrir pecados nunca foi diretriz do Mestre. Ele os expunha e confrontava as pessoas com seus próprios pecados, fossem quem fossem, a fim de que se examinassem e se arrependessem, como Ele fez com os escribas. Acolher, proteger e incentivar ao renovo de vida foi o que o Salvador fez de imediato àquela mulher. Uma nova chance de vida foi dada a ela independentemente de ela ser quem era e do que pudesse ter feito ou do que lhe tivesse acontecido. É preciso, sim, intervir em relacionamentos abusivos e violentos quando esses chegam até nós. É preciso proteger e orientar a vítima. É necessário exortar o agressor, inclusive denunciando-o aos órgãos competentes, quando for o caso, e/ou incentivando-o a procurar tratamento médico e psicológico, além de, obviamente, apresentar-lhe a missão salvífica de Jesus. Ele também precisa de Cristo. Quando os abusos e casos de violência vêm de líderes, então, aí que nosso posicionamento deve ser ainda mais crítico, uma vez que nós devemos julgar os de dentro pela régua do próprio Cristo. Não podemos ser coniventes e levianos com os nossos. Isso chega a ser imoral à luz das escrituras (I Co. 5:11-13)!

3) Além disso, é preciso ensino. Há um claro receio em empoderar mulheres no meio cristão, receio em não dar-lhes voz e vez. Seria medo de se perder o “controle” sobre elas? Há um nítido incentivo em ensinar aos meninos que mulheres não estão em pé de igualdade em relação aos homens. Essas atitudes, além de silenciar mulheres e inibir a equidade entre as pessoas, reforçam comportamentos machistas e, sobretudo, violentos.

4) Precisamos falar sobre abusos físicos e psicológicos a que muitas mulheres estão sendo submetidas, inclusive as pertencentes às comunidades cristãs. Precisamos ensinar e falar claramente como, quando e onde esses abusos se dão. Não podemos, de forma alguma, naturalizar atitudes violentas, machistas e discriminatórias, nem tampouco endemonizá-las, sejam elas de dentro ou de fora do meio cristão. Não se trata de uma questão meramente espiritual. Relações abusivas e casos de violência, sobretudo as que acontecem dentro de casa, não se devem à falta de fé, de oração ou de virtudes da esposa. A responsabilidade por esses crimes não é da mulher. Isso precisa ser dito.

5) A violência é um fenômeno social, pautado por estruturas humanas e discriminatórias, reforçadas pelo silenciamento e apagamento das vítimas, bem como pela conivência de quem deveria se posicionar com justiça e equidade como Jesus fez. Esse papel é hoje da Igreja de Cristo. É de todos aqueles e aquelas que uma vez alcançados pela graça não podem calar-se (Tg. 4:17). A inserção desse tema, e de mulheres que sofrem violência, no contexto da igreja é imprescindível. E não é tão difícil fazê-lo. Formar grupos de acolhimento e de escuta a essas mulheres, grupos de prevenção à violência contra a mulher, grupos de debates sobre cultura machista, incluindo aí os homens, senhores, meninos e jovens pertencentes à igreja, podem contribuir com clareza e assertividade que esse não é um assunto só para mulheres, só de mulheres e que não deve estar à parte das pregações de domingo. Não é preciso esperar que tragédias aconteçam para então se lamentar. Elas podem até ser prevenidas se não faltarmos com a verdade.

Se em Cristo somos um e isso por si só já aniquila qualquer diferença entre homens e mulheres (Gal.3:27), se não devemos tratar ninguém com favoritismo (Tg. 2:1) e se não podemos nos omitir de fazer a coisa certa (Tg. 4:17), por que é então que ainda tratamos casos de violência e de abuso contra mulheres com tanta timidez e parcimônia? A igreja precisa falar sobre isso! Precisamos cuidar uns dos outros e dar especial atenção aos que não podem defender-se.

Esse é o nosso chamado para hoje. A relevância da Igreja de Cristo reside aí: cuidar das pessoas como se a Cristo estivesse cuidando (Mt 25:34-46). E se nesse número não forem contadas aquelas que sofrem as mais variadas formas de violência, então não vivemos o evangelho que pregamos, pelo menos não na íntegra. E se não o vivemos integralmente nos tornamos culpados por quebrá-lo integralmente (Tg.2:10). Portanto, que a integralidade do Evangelho salvador chegue também às mulheres que sofrem, ainda que isso nos custe um alto preço. Jesus não se negou a pagar o dele por nós. E nós, 166 milhões, nos negaremos a pagar o nosso uns pelos outros e por amor a Cristo?

 


Bianca Ramires é professora de Língua Inglesa do ensino médio na rede pública estadual do RS, Doutoranda em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG; membro do Coletivo Abrigo e da Comunidade Cristã Abrigo; Secretaria de Comunicação, Arte e Cultura da Aliança Bíblica Universitária/Região Sul; membro da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência/Núcleo Porto Alegre. Mulher, negra, moradora da periferia da capital rio-grandense, é também mãe, tia, irmã, filha, amiga leal e do tipo casca-grossa-faca-na-bota. Inquieta, crítica, exigente, muito autoexigente, cri-cri, questionadora e chata. Muito chata.


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

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