Uma mulher sem nome

*Alerta de gatilho: o texto abaixo trata de temas como abuso sexual, estupro, violência contra a mulher e assuntos que podem despertar gatilhos emocionais negativos em algumas pessoas. Se esse é o seu caso, recomendamos que tome cuidado ou até mesmo não leia. 

 

O nome é uma marca importantíssima de uma pessoa: quando nascemos, recebemos um nome e uma certidão de nascimento; quando somos aprovadas em um concurso, há uma lista com o nosso nome e dos demais aprovados;  quando escrevemos um texto, assinamos nosso nome. O nome nos identifica, nos dá um lugar no mundo, por ele somos reconhecidas e deixar de mencionar o nome de alguém, é querer apagar essa pessoa da história. Esse pequeno texto terá como fio condutor a história de uma mulher que não teve seu nome escrito e, pior ainda, não teve sua vida, corpo e dignidade respeitados: a Concubina do Levita (Jz 19).

Para tanto, precisamos estar abertas à crítica da narrativa dessa história, sim, esse texto apresentará uma crítica à conduta do Levita em relação a sua Concubina e, de forma necessária, uma crítica à conduta patriarcal de algumas lideranças de nossas Igrejas nos dias atuais. Faz-se necessário entendermos que Deus se relaciona com pessoas e que pessoas são falhas, inclusive àquelas que escreveram alguns relatos bíblicos. Assim, baseadas no amor de Cristo, que veio para denunciar os abusos contidos no meio Judeu, vamos apontar algumas raízes do machismo em nossas igrejas.

Em primeiro lugar, há um grave problema no meio cristão, trata-se da interdição do questionamento direcionado à Bíblia. Se está na Bíblia, não deve ser questionado de maneira alguma, a Bíblia é a Palavra de Deus.  Sim, através da Bíblia, encontramos a palavra de Deus, é na sua leitura que vemos histórias de mulheres e homens que se relacionaram com Deus de maneira belíssima, intensa e inspiradora. Contudo, temos que ter um olhar humano para a Bíblia, entender que foi escrita por homens, numa sociedade patriarcal e com tratamentos desiguais para os gêneros. Nessa perspectiva de leitura, sem direito a fazer perguntas aos textos bíblicos, o texto lido é aplicado na literalidade nos púlpitos e nas doutrinas atuais.

Pois bem, quando nos permitimos fazer questões ao texto bíblico, estamos questionando a postura de quem escreveu e não de Deus. Ao mirar a bíblia com olhos sociológicos, de contexto social e comportamental, vemos que devemos fazer muitas perguntas ao texto bíblicos e inclusive, criticá-lo.

Essa postura de olhar com suspeita para o texto bíblico, é o princípio da teologia feminista: olhamos para um texto, vemos quem o escreveu e quem é o protagonista; vemos qual contexto e regras de convívio social; vemos se há diferenças entre o tratamento de homens e de mulheres. Ou seja, suspeitamos do discurso imperialista ou questionamos posturas tomadas em determinadas situações.

Tendo em vista esse princípio e essa maneira de enxergar a Bíblia, trataremos da Concubina do texto de Juízes 19. A história se passa no período de Juízes, uma época que Israel não tinha Rei e era governado por Juízes (dentre eles, Débora, a Juíza corajosa). Trata-se de uma concubina, uma mulher não legítima, que segundo o texto traiu seu senhor (esse homem era um levita, alguém com um cargo na sinagoga local – ou seja na igreja). A moça volta para a casa de seu pai e o seu dono vai buscá-la. No caminho de volta, ele para na cidade de Gibeá para descansar, o levita era originário de Efraim. Um ancião residente em Gibeá, os acolhe em sua residência e, assim que eles entram para jantar, alguns vizinhos batem na porta desse ancião e pedem que ele os deixe ter relações sexuais com o Levita.

Porém o ancião se recusa a entregá-lo e oferece no lugar sua filha virgem e a concubina de seu hóspede. Aqueles homens recusam a troca, mas o Levita joga a concubina para fora da casa, fecha a porta e vai dormir:

 

E o homem, dono da casa, saiu a eles e disse-lhes: Não, irmãos meus, ora não façais semelhante mal; já que este homem entrou em minha casa, não façais tal loucura. Eis que a minha filha virgem e a concubina dele vo-las tirarei fora; humilhai-as a elas, e fazei delas o que parecer bem aos vossos olhos; porém a este homem não façais essa loucura.Porém aqueles homens não o quiseram ouvir; então aquele homem pegou da sua concubina, e lha tirou para fora; e eles a conheceram e abusaram dela toda a noite até pela manhã, e, subindo a alva, a deixaram. E ao romper da manhã veio a mulher, e caiu à porta da casa daquele homem, onde estava seu senhor, e ficou ali até que se fez claro.

Juízes 19, 23-26

 

No outro dia, quando o  Levita vê que a moça estava morta, leva-a para sua casa,  com um cutelo a despedaça e manda uma parte do seu corpo para cada tribo de Israel, convocando uma vingança.

Esse texto é uma violência de gênero declarada, não é possível ler sem questionar essa atitude do Levita (por tal motivo que Juízes 19 quase não é lido e explicado nas igrejas). Temos que observar que essa era uma prática no Velho Testamento, lembram da visita dos Anjos à Ló, sobrinho de Abraão, na cidade de Sodoma? Os sodomitas pedem que Ló deixe que eles tenham relações sexuais com os Anjos e o que Ló faz? Oferece suas filhas no lugar dos Anjos:

E chamaram a Ló, e disseram-lhe: Onde estão os homens que a ti vieram nesta noite? Traze-os fora a nós, para que os conheçamos¹.

Então saiu Ló a eles à porta, e fechou a porta atrás de si,

E disse: Meus irmãos, rogo-vos que não façais mal;

Eis aqui, duas filhas tenho, que ainda não conheceram homens; fora vo-las trarei, e fareis delas como bom for aos vossos olhos;

Gênesis 19, 5-8

 

Olha só, vemos duas passagens que consideram um visitante homem, hospedado na casa de um Judeu, mais importante do que as próprias mulheres que habitavam a casa. Isso era uma prática, uma regra de etiqueta: era melhor entregar suas filhas, do que um homem hospedado em sua casa ser desrespeitado. Ou seja, como aquele anfitrião ficaria frente à sociedade se não conseguisse manter a segurança de um hóspede?

Quando olhamos que no texto bíblico estão escritos hábitos reprováveis de um povo, hábitos que contrariam até mesmo o fundamento antropológico de Deus de Gn 1,27 (Deus criou homem e mulher à sua imagem), fica evidente que para aquela sociedade um homem valia mais que uma mulher! Hoje em dia, podemos não mais entregar as mulheres aos estupradores, tal qual a Concubina e as filhas de Ló, mas ainda permanece a máxima  de que um homem vale mais que uma mulher; que as mulheres devem submissão por serem inferiores. Sim, está no nosso imaginário social o princípio que vale mais proteger um homem do que uma mulher. Se um pastor adultera com uma fiel da igreja, ela que o provocou. Se um marido bate na esposa, ela mereceu, foi insubordinada. Sim, seguimos protegendo os homens e entregando as mulheres à violência, à desvalorização, à difamação.

A concubina, que nem sequer é nomeada, foi usada como escudo, para proteger a integridade física do Levita e, posteriormente, foi usada como estandarte convocando a vingança pelo ultraje sofrido pelo Levita. Em outras palavras, o Levita era um cidadão de bem, com cargo e nome em Efraim, a sua imagem precisava ser defendida, nem que isso custasse esquartejar o corpo de uma mulher, que já tinha sido estuprada até a morte. A concubina não teve nome divulgado e nem um enterro digno. Ela não teve sua dignidade e nem sua humanidade respeitadas.

Por fim, chamo todos à reflexão: será que não devemos olhar para bíblia de modo que refutemos as atitudes humanas cruéis ali contidas, atitudes essas que tratam, principalmente as mulheres, com menos valor? Será que, também, não devemos analisar nossas doutrinas, regras, usos e costumes, que são baseados em comportamentos altamente reprováveis do povo Judeu? Será que apenas não pregar sobre os textos de Juízes 19 e de Gênesis 19, faz com que superemos a ideia expressa por eles de que: mulheres valem menos?

A concubina sem nome, é aquela mulher que sofre violência em sua casa, mas as igrejas não interferem, porque o casamento é a vontade de Deus; é aquela mulher que foi seduzida por um líder de igreja, mas preferimos protegê-lo e culpá-la por depravação; a concubina é a criança, a adolescente, que é abusada e queremos fazê-las acreditar que não foi bem assim. A concubina é toda mulher que de alguma forma foi vista com menos valor e teve sua vida, corpo e dignidade violados em nome da proteção de um homem. A concubina, em certa medida, somos todas nós. Deus tenha misericórdia de nós!

¹ Conhecer no texto bíblico é a palavra usada para expressar “ter relações sexuais”.


Simony dos Anjos é evangélica, feminista, formada em Ciências Sociais, mestranda em Educação, autora do Blog Sim, Genuflexos e colunista da coluna (fé)ministas, do Portal de notícias Justificando.


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

One thought on “Uma mulher sem nome

  • 27 de maio de 2023 em 21:36
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    Simplesmente maravilhoso

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