Para minha bisavó indígena, nem 1 centímetro de terra

– Seu olho é puxadinho, você tem parente japonês?

– Não, minha bisavó era indígena

E assim se encerraram muitos diálogos sobre minha ascendência. Uma das únicas coisas que eu sabia sobre minha bisavó Maria é que ela era indígena.

Sempre fui curiosa sobre minha origem, enchia meu pai de perguntas sobre os Petersen e os Thompson, que vieram da Alemanha e Inglaterra no século XIX. Conseguiram terras, se estabeleceram no norte do Espírito Santo e fundaram igrejas protestantes. Imagino que eles tenham sido beneficiados pelas leis que favoreciam a existência da população branca no Brasil,  como parte da política de embranquecimento da população. É o caso do decreto 528, de 1890, que regularizava a entrada de imigrantes no Brasil:

Art. 1º É inteiramente livre a entrada, nos portos da Republica, dos individuos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos á acção criminal do seu paiz, exceptuados os indigenas da Asia, ou da Africa que sómente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admittidos de accordo com as condições que forem então estipuladas.¹

Já minha mãe nem sempre conseguia responder minhas perguntas sobre nossa origem. De que país da África meus ancestrais negros vieram? Será que algum deles foi escravizado? Será que sofreram muito com a escravidão? Não havia como responder tais perguntas, essa parte de nossa história foi apagada e queimada.

Mesmo assim, minha mãe me ensinou o que significa ser uma mulher negra e sofrer com as dores do racismo.

Mamãe me ensinou que gente da nossa cor tem que estudar muito pra conseguir um lugar no mundo, andar sempre com documento e andar sempre bem arrumada na rua, principalmente se for no médico, ou não vão tratar a gente igual gente. E ela continua me ensinando:

No entanto a luta continua por aquelas meninas que estão vindo. Elas precisam saber que são preciosas. Que são lindas. Que são capazes e precisam manter o foco em seus ideais, independente do mundo exterior. O cabelo é lindo, né Luciana? Você que está me fazendo gostar do meu cabelinho crespo. E, se existe algo que ninguém pode tomar da gente é o talento, o corpo, conhecimento e a fé. Ninguém é dono de ninguém. Afinal de contas, Deus nos fez diferentes e é isso que torna o mundo mais interessante e belo.

(Trecho do texto “Cantos e dissonâncias – A vida da mulher negra musicista”, texto de Silvana Ribeiro Petersen, para o Projeto Redomas)

 

Minha mãe me contou o que sabia sobre minha bisavó Maria, origem do meu olho puxadinho. Vovó foi sequestrada à laço, aos 5 anos, em sua aldeia indígena, para trabalhar em casa de branco. Dona Mocinha, dona da casa, a maltratava muito, na hora da raiva chegava até a jogar xixi nela. Vovó morou na casa de Dona Mocinha até casar.

Casou com um homem que quando sóbrio era uma beleza, mas do contrário era extremamente agressivo. Uma vez minha avó Valdemira, sua filha, teve que salvá-la de uma machadada.

Em 1983, a pedido da bisa Maria, meus pais foram até Resplendor (MG), a terra natal que ela nunca pôde chamar de sua, em busca de informações. Vó Maria sabia muito pouco sobre si mesma. Além do nome da cidade, deu para minha mãe os nomes Nilo e Julia, seus possíveis irmãos. Lá não encontraram nada, nenhum parente, nenhuma terra indígena.

O que você sabe sobre a população indígena no Brasil?

Mesmo dentro dos movimentos sociais, a causa indígena é muito invisibilizada. Costumamos lembrar da existência dessa população no Dia do índio e no Carnaval, quando são exibidas as fantasias mais estereotipadas³, com cocares e pinturas esvaziadas de significados.

Entenda porque as palavras “tribo” e “índio” não são adequadas.

Segundo o Instituto Socioambiental, estima-se que, na época da chegada dos europeus, mais de 1.000 povos indígenas viviam no Brasil, somando entre 2 e 4 milhões de pessoas. Atualmente encontramos no território brasileiro 255 povos, falantes de mais de 150 línguas diferentes, somando uma população de 896.917 pessoas, segundo dados do Censo do IBGE de 2010, 0,47% da população total do país. Desse total, 324.834 vivem em cidades e 572.083 em áreas rurais.

Na igreja, seguimos reproduzindo um olhar colonizador sobre os povos indígenas. Muitas vezes parecemos mais preocupados em levar uma suposta “civilização” aos povos indígenas, esquecendo que o Reino de Deus é lugar de diversidade, encontro de todas as nações, tribos, povos e línguas com suas próprias culturas.

Confrontando essa visão, uma fala de Jader Terena, pastor indígena, exorta nossas missões brancas: “A verdade nos libertará até da cultura branca que eles quiserem nos impor”.

Se você pouco sabe sobre os povos indígenas para além da fantasia, hoje quero falar da história não contada da minha bisavó e de milhões de indígenas que, historicamente, tiveram seus direitos retirados, terras e vidas roubadas. Vale ressaltar que parto do lugar de uma mulher negra de ascendência também indígena, que mesmo juntando todas as forças para resgatar suas origens, ainda encontra grandes buracos nessa colcha de retalhos. Meu lugar de fala é a incerteza.

Pesquisando sobre nações indígenas em Resplendor, terra da minha bisavó, encontrei informações sobre uma nação indígena que resiste na cidade. Os Krenak² pertencem ao grupo lingüístico Macro-Jê e falam o idioma Borun. São os últimos que sobreviveram dos Botocudos do Leste, denominação dada pelos portugueses. A nação Krenak resiste até hoje entre as cidades de Resplendor e Conselheiro Pena, numa reserva de 4 mil hectares, concentrando cerca de 126 famílias às margens do Rio Doce.

A “Guerra Justa” contra nações indígenas

Em 1808, o Príncipe Regente, D. João, decretou a “Guerra Justa” contra os Botocudos. Em suas três Cartas Régias, autorizava a criação de uma tropa especializada no combate de indígenas, o confisco de terras indígenas pelos que se destacassem nas guerras, aldeamento de indígenas que se submetessem e demonstrassem “boa disposição”, além de livre acesso ao trabalho dos indígenas capturados em atitude combativa por doze a vinte anos, dependendo do grau de rusticidade e dificuldade dos aprisionados em aprenderem as novas formas de trabalho.

Em 1957, os Krenak sofreram uma remoção forçada de Resplendor para a região de Águas Formosas, com aval do Serviço de Proteção aos Índios, como parte da última etapa da ação do para liberar as terras para colonização. Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, “Frente às péssimas condições de vida no posto de Águas Formosas, os indígenas retornam à pé, de carro e de trem em uma viagem de três meses e cinco dias.”

A nação Krenak durante a Ditadura Militar

O Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) estimou que 8.350 indígenas foram mortos durante a ditadura militar, em um levantamento parcial, que não conseguiu levar em consideração todos os povos afetados.

Durante a Ditadura Militar, foi construído em Resplendor um “Reformatório Indígena”, definido no Relatório da CNV como um “campo de concentração” que prendeu 121 pessoas de 23 etnias, sem contar as que não foram registradas. Oredes Krenak conta à Comissão da Verdade:

Bater era normal para eles. Se o índio tentava se justificar por alguma acusação, batiam com cassetete grande, depois jogavam na prisão. Não podiam nem perguntar por que estavam sendo punidos. Também batiam de chicote. Algemavam o preso dentro da cadeia e ele não podia falar, argumentar. Ameaçavam com arma. Os mais antigos contam que quando matavam um índio, jogavam no rio Doce e diziam pros parentes que tinha ido viajar.

 

Assista o documentário Reformatório Krenak:

 

“O Watu morreu” – os Krenak e o crime ambiental de Mariana

A dizimação dos Krenak não ficou só no passado. No dia 5 de novembro de 2018, o rompimento da barragem da Samarco em Mariana (MG) completou três anos. Considerado o maior crime socioambiental do Brasil, o desastre teve grandes consequências na vida dos Krenak, agora impedidos de realizar as atividades mais básicas para sua sobrevivência e cultura. A caça e a pesca foi impedida pela contaminação do Rio Doce, batismos e rituais sagrados realizados nas margens e pequenas ilhas do manancial, extintos, assim como a prática de esportes e o lazer da população.

O que isso diz sobre minha bisavó?

Hoje, continuo tendo perguntas não respondidas. Será que minha avó foi sequestrada aos 5 anos por apresentar “atitude combativa” diante as tropas de extermínio de indígenas? Onde estavam nossos parentes quando minha mãe foi a Resplendor a procura deles? Presos no campo de concentração indígena? Removidos de suas terras? Algum dia será feita justiça para a população atingida pelo crime ambiental da Vale/Samarco? Haverá ao menos 1 centímetro de justiça feita e terra demarcada aos verdadeiros donos dessa terra brasileira?

Eu gostaria que esse texto fosse mais pessoal. Gostaria de contar das tradições africanas e indígenas que aprendi com minhas ancestrais. Gostaria de fazer menos suposições sobre a história de minha avó, ter mais certezas.

No entanto, o passado, presente e futuro dos povos negros e indígenas no Brasil nunca foi de certezas. Cada direito conquistado é resultado de anos de luta contra os donos do poder, principados e potestades.

Mas nossas histórias nunca se calam completamente. Resistem nos quilombos e aldeias, na tradição oral, no campo, na cidade, nas entrelinhas, nos negro spirituals, nas orações.

E é pelo poder do Deus de minha bisavó, minha avó e minha mãe que eu resisto junto com minhas irmãs e irmãos e luto em favor da justiça ao órfão, à viúva, às mulheres negras e indígenas como manifestação do Reino de Deus em nosso mundo caído.

“Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; fui estrangeiro, e vocês me acolheram; necessitei de roupas, e vocês me vestiram; estive enfermo, e vocês cuidaram de mim; estive preso, e vocês me visitaram”. Mateus 25.35-36

 

¹ Texto reproduzido conforme a grafia da época

² A gráfia das étnias brasileiras, por convenção, é no singular e não plural.

³ Se você tiver interesse em desconstruir estereótipos sobre povos indígenas a partir do lugar de fala da pessoa indígena, indico esse vídeo da Katu no canal da Ellora e o canal do Wariu no Youtube.


Luciana Ribeiro Petersen é estudante de Comunicação Social – Jornalismo na UFSJ. É cristã, feminista negra, já pensou ser de exatas e agora é de confusas.


O conteúdo e as opiniões expressas neste texto são de inteira responsabilidade de sua autora e não representa a posição de todas as organizadoras e colaboradoras do Projeto Redomas. O objetivo é criar um espaço de construção e diálogo.

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