Zípora: existir para exercer o poder espiritual

Partimos da Hermenêutica Negra Feminista para construir uma identidade afro-feminista a partir da recuperação do protagonismo das mulheres negras na Bíblia. Nesse sentido, tem-se falado da Sulamita de Cântico dos Cânticos, de Agar e da Rainha de Sabá, como mulheres negras importantes na história do povo de Deus. Mas, a importante aparição da cuchita Zípora no mundo Bíblico ainda permanece invisibilizada. Hoje é tempo de conhecer sua biografia e chamar-lhe pelo nome, visto que quase ninguém conhece Zípora por seu nome, em geral referimo-nos a ela como a “esposa de Moisés”. Segundo a narrativa bíblica, Moisés é seu esposo, mas seu papel na história do povo de Israel vai muito além do de esposa. Sua aparição, assim como a de Agar, está ligada ao poder espiritual da mulher negra.  

O texto: Números 12. 1-16

1 Miriam e Araão murmuraram contra Moisés por causa da mulher cuchita que ele havia tomado. Pois ele havia desposado uma mulher cuchita. 2 Disseram-lhe: “Falou, porventura, o Senhor, somente a Moisés? Não falou também a nós?” O Senhor os ouviu. 3 Ora, Moisés era um homem muito humilde, o mais humilde dos homens que havia na terra. 4 Subitamente disse o Senhor a Moisés, a Araão e a Miriam: “Vinde, todos os três, à Tenda da Reunião.” Todos os três foram 5 e o Senhor desceu numa coluna de nuvem e se deteve à entrada da Tenda. Chamou a Aaraão e a Miriam; ambos se apresentaram. 6 Disse o Senhor: “Ouvi, pois, as minhas palavras: se há entre vós um profeta, é em visão que me revelo a ele, é em sonho que lhe falo. 7 Assim não se dá como o meu servo Moisés, a quem toda a minha casa está confiada. 8 Falo-lhe face a face, claramente e não em enigmas, e ele vê a forma do Senhor. Por que ousastes falar contra o meu servo Moisés?” 9 A ira do Senhor se inflamou contra eles. E retirou-se 10 e a Nuvem deixou a Tenda. E Miriam tornou-se leprosa, branca como a neve. Araão voltou-se para ela, e estava leprosa. 11 Disse Araão a Moisés: “Ai, meu senhor! Não queiras nos infligir a culpa do pecado que tivemos a loucura de cometer e do qual somos culpados. 12 Peço-te, não seja ela como um aborto cuja carne já está meio consumida ao sair do seio de sua mãe!” 13 Moisés clamou ao Senhor: “Ó Deus”, disse ele, “digna-te dar-lhe a cura, eu te suplico!” 14 Disse então o Senhor a Moisés: “E se seu pai lhe cuspisse no rosto não ficaria ela envergonhada sete dias fora do acampamento e depois seja nele admitida novamente.” 15 Miriam foi segregada durante sete dias fora do acampamento. O povo não partiu antes do seu retorno. 16 Depois  o povo partiu de Haserot e foi acampar-se no deserto de Farã.

Conhecendo o livro dos Números

Quando nos tornamos sujeitos teológicos, não devemos temer criticar o texto bíblico. Pelo contrário, situar cada texto em seu contexto faz-se necessário para compreendermos o sentido por trás das palavras. O livro de Números está inserido numa proposta de reorganização da vida social no período pós-exílio, sob a égide do império persa. Essa reorganização se formatou em torno do Segundo Templo e seu aparato sacerdotal masculino, que legitima a estrutura do poder masculino e, consequentemente, a subordinação, exclusão da mulher. Outros detalhes desse programa de reestruturação social podem ser percebidos nos livros de Esdras e Neemias, que inclui a exclusão das mulheres estrangeiras. Entretanto, a estruturação social a partir do poder masculino no livro de Números não aparece de maneira linear, é possível perceber oposições a essa estruturação social patriarcal. Nesse contexto de resistências, a narrativa de Nm 12 pode ser interpretada como um vestígio de oposição das mulheres à colonialidade do poder.

 

O que dizem as interpretações eurocêntricas e etnocêntricas

O racismo de Miriam e de Araão é o centro da problemática das interpretações clássicas, isto é, das interpretações eurocêntricas e etnocêntricas. Segundo essas interpretações, Moisés, Araão e Miriam são caucasianos e a mulher cuchita é a única negra. E, por isso, Moisés não poderia ter se casado com ela. Afinal, como pode uma mulher negra fazer parte do povo de Deus? Sabemos que esse imaginário permanece até hoje nos púlpitos de nossas Igrejas e que  seguem interpretando a aparição do negro na Bíblia sempre como um intruso a ser removido.

Nessas interpretações, por outro lado, ninguém questiona o fato de somente Miriam ser castigada, visto que Araão também fez a mesma crítica. A interpretação tradicional não atribuiu o castigo à oposição de Miriam contra a mulher cuchita, mas à sua atitude de questionar a exclusividade de Moisés. Como pode essa mulher reivindicar para si um poder igual ao de Moisés? Merece mesmo é ser castigada por esse disparate, diz o patriarcalismo. Tanto a construção da narrativa quanto as interpretações que se seguem têm por objetivo neutralizar e inviabilizar o poder espiritual da mulher. Castigar Miriam na narrativa serve para intimidar as mulheres, que não devem se opor ao projeto de reconstituição nacional.

 

Além do feminismo clássico

A hermenêutica negra feminista decolonial deseja ultrapassar a interpretação do feminismo clássico que mantém a mulher cuchita no silêncio e na invisibilidade. Há certo consenso no feminismo clássico de que a problemática de Números 12 centra-se na “disputa de poder”, como crítica ao modelo de poder piramidal e hierárquico. Em geral, críticas feministas centra-se na recuperação do profetismo de Miriam e quase nada se diz da mulher cuchita. Também, podem-se encontrar leituras feministas que continuam afirmando que o problema é o racismo de Araão e Miriam. Percebe-se que o imaginário eurocêntrico prevalece nessas interpretações, pois se pressupõe que todos os personagens – salvo a mulher cuchita – sejam caucasianos. Ora, é preciso denegrir o nosso imaginário e, concomitantemente, trazer a mulher cuchita das margens para o centro da narrativa.

 

Desvendando o rosto de Zípora: mais que esposa, uma sacerdotisa

É muito bom falar de minha ancestral Zípora, a mulher cuchita. Nela origina-se nossa vinculação bíblica com o poder espiritual da mulher negra. Se Números 12 refere-se à mulher de Moisés como cuchita, Êxodo 18 chama-a por seu  nome: Zípora.  Longe de reduzir o papel de Zípora à esposa de Moisés, essa estrangeira cuchita parece ser o vestígio de um passado de Israel antes do nascimento do judaísmo, que se deu depois do Exílio babilônico. Zípora vem de uma família sacerdotal de Midiã. Êxodo 18.1-12 narra o encontro de Moisés e seu sogro Jetro, o sacerdote midianita e Zípora, colocando em evidência a relação fecunda entre israelitas e midianitas.

Entretanto, não é por ser filha do sacerdote Jetro que podemos afirmar que Zípora é sacerdotisa. Antes, essa afirmação se ampara no fato de que Zípora foi a única mulher a circuncidar um homem, como se pode constatar na passagem de Êxodo 4.24-26. Sabe-se que ela circuncidou o seu filho Gerson e com isso salvou a vida de Moisés. É sobre esse poder espiritual da mulher que se estrutura a narrativa de Números 12. 1-12. É contra o silenciamento do exercício deste poder  que se opõe Miriam e Zípora. Miriam foi exemplarmente castigada.

Não pensemos, por outro lado, que Zípora ficou calada diante da violência imposta a Miriam (que não teve medo de questionar o projeto sacerdotal representado na figura de Moisés). Seu castigo foi “cuspe na cara e lepra”, isto é, foi a humilhação e segregação. A exclusão da comunidade é o castigo de quem ousa contestar a lógica da exclusão patriarcal, que advoga a exclusividade masculina na mediação com a divindade. O exercício do poder espiritual de Zípora revelou-se ainda mais profundo em sua sororidade à Miriam. Esta sororidade não é coisa de uma opção em relação a uma única mulher, uma que pense como nós, ou que pratique a mesma religião que a nossa. Não, a verdadeira sororidade se revela todas as vezes que qualquer mulher torna-se vítima de violência e nos fazemos presentes e solidárias. Sob a liderança de Zípora, enquanto Miriam esteve fora do arraial, ninguém pôde prosseguir.

Ademais, essa imagem de um Deus patriarcal que cospe no rosto da filha não passa de idolatria. Sabemos que líderes religiosos que não permitem que se questione sua forma de exercer o poder são, na verdade, pessoas que têm o desejo de dominar o outro, de colonizar sua mente e escravizar o seu corpo. Ora, contra uma liderança desse nível nós mulheres negras nos opomos.

 

Nos passos de Zípora: existir para a liderança espiritual que não coloniza o outro

Aproximar-se de Zípora nesta hora faz parte de um projeto que busca desenvolver uma hermenêutica com certa capacidade terapêutica que cure as feridas traumáticas da dominação colonial do passado e do presente. E mais, que sejamos capazes de fortalecer e engendrar novos processos comunitários na contramão dos projetos de dominação do outro. Recuperar, pois, a memória de Zípora nos investe de poder espiritual capaz de  engendrar uma nova comunidade, na qual caibam todas as pessoas em sua irreversível diferença. Onde existir alguém segregado pela religião que cultua um Deus patriarcal que “cospe no rosto” de outrem, ali nos faremos presentes e solidárias. Que nenhum homem venha nos impor uma imagem idólatra de um Deus Todo-poderoso que se impõe, pois o Messias Jesus já nos revelou a face do Deus Todo-amoroso que a ninguém segrega, mas que a todas acolhe.

 


Dr. Cleusa Caldeira, pastora auxiliar na 7a IPI de Maringá.

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